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Segunda-feira, 6/5/2002
Dizem que a crítica acabou; só se foi quando o verão chegou
Luís Antônio Giron

Virou bordão quase proclamar que a "grande crítica" musical já acabou, que os jornais já não dão espaço para a "boa" crítica. Esse tipo de afirmação ou é feita com má-fé ou tem origem em alguma frustração de ex-crítico. Não consigo ver o fim da crítica, especialmente em música erudita. Pelo contrário, assisto à insistência tenaz de uma atividade crítica de boa qualidade nos jornais e revistas.

Os nomes dos críticos militantes são muitos, e a nova geração já chegou, fazendo seu papel de propagação e análise. Exemplos, para citar os que atuam na Paulicéia: os dois Coelhos de reverencial erudição – João Marcos e Lauro Machado – , de longas barbas e carreiras, convivem com jovens de fino ouvido, como Arnaldo Lorençato, Irineu Perpétuo, Artur Nestrovski e João Luiz Sampaio. E há Luiz Krausz, Regina Porto, Jota J. de Moraes, eu próprio que não paro de escrever folhetins há vinte anos premido no sanduíche das gerações e agoro leciono crítica... A propósito, que fim levou J.B. Natali que deixou de escrever seus deliciosos textos? Até o inesquecível Ênio Squeff, que virou pintor mas continua melômano, às vezes aparece para dar uma palhinha. Eles estão em todos os concertos, produzindo belos artigos no calor das performances. Nunca se fez tanta crítica. Jamais a crítica distribuiu tantos louros e pontapés! É, como diria nosso antepassado Júlio Reis, pura música de pancadaria.

Claro que não existe mais o rodapé que premiou as trajetórias de medalhões como Oscar Guanabrino, Mário de Andrade ou mesmo Caldeira Filho. Mas o espaço da crônica dos eventos musicais e discos segue forte, espalhado pelas páginas dos cadernos de artes e espetáculos, nas revistas, nos programas de concerto.

Pode-se criticar esta ou aquela leviandade, uma observação infundada, talvez por imaturidade ou hipérbole do zelo. Mas não há como negar que os "folhetinistas" de hoje vão merecer estudos no futuro. Alguns escrevem livros, como importante série sobre a história da ópera de Lauro – e não vou hipocritamente deixar de citar o meu Minoridade Crítica, a sair em agosto pela Editora do Brasil em co-edição com a Edusp... E muitos lançam coletâneas de críticas, de alta importância pelo registro que fazem de um tempo e do gosto do tempo. O pecadilho cometido em boa fé por de um crítico de hoje pode ser a gargalhada da posteridade. Atire a primeira pedra o crítico que não errou. Louvem-se, porém, seus acertos.

A crítica é uma espécie de crônica, na qual se misturam conhecimento, tiradas cômicas, impressões, sentimentos. Ela forma um gênero literário e como tal é o único a ter resistido à massificação castradora dos jornais contemporâneos. Crítica é obra de arte, sim, ainda que tardia e passageira. Seu objeto, como diria Mencken, é outra obra de arte, mas isso só lhe dá especificidade.

A crítica era chamada, até inícios do século XX, de "folhetim teatral". Na época romântica, ela dividia o espaço dos rodapés com os acrósticos e os romances seriados. Curiosamente, hoje todo mundo pensa que "folhetim" só se refere a estes últimos. Isso porque a ficção, mais explicitmente literária, caiu nas graças dos estudos literários da academia. O folhetim teatral, a crítica, apesar de ser literatura, e muitas vezes de primeira água, nunca comoveu os universitários. E é ela, a enjeitada, que persiste mais viva do que nunca.

Perseguir esse mundo perdido da literatura e construir seu cânone tem sido minha mania nos últimos dez anos. Alguns dirão que puxo a brasa para a sardinha de meus antecessores e colegas. Mas vamos convir que a série do folhetim crítico foi até agora menosprezada. É preciso começar a estudá-la com mais atenção. Mesmo porque a crítica atua como uma câmera que fixa a vida musical de uma época. Só porque atacamos esta ou aquela soprano ou instrumentista, passamos a vida recebendo saraivadas de desafetos. Sofremos com as frustrações alheias, passamos corretivos na desafinação e caímos na boca da orquestra. Porque músicos são críticos frustrados – com a honrosa exceção de Júlio Medaglia. Os críticos queremos um lugar, mesmo que modesto, ao sol da cultura. Dizem que a crítica está morta. Só se foi entre novembro e março, no verão, quando não há temporada...

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Concerto, edição de abril de 2002.

Luís Antônio Giron
São Paulo, 6/5/2002

 

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