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Segunda-feira, 19/5/2003
Fragmentos de um Paulo Francis amoroso
Daniel Piza

Paulo Francis já me conhecia por escrito, cartas e textos que eu, ainda com 20 anos, enviara para ele, mas demorei quase um ano para conhecê-lo pessoalmente. Foi no lançamento, em 1991, de Cronistas do Estadão, uma coletânea que vai de Euclides da Cunha até ele, organizada pelo Moacir Amancio. Telefonei para o Moacir e perguntei se precisava de convite para ir até a Sala São Luiz porque o Francis viria ao lançamento. Moacir disse que era só aparecer, apareci, vi o homem que lia na Folha e em livros e assistia no Jornal da Globo havia tanto tempo, sem perder nada. Mais alto e elegante do que eu imaginava e, sobretudo, menos sério e mal-humorado.

“Ôôôô, rapaz! Tudo bem?”, festejou ele quando me apresentei. Alguns minutos depois, veio e me puxou pela mão para uma roda onde estavam Luis Fernando Verissimo, Lygia Fagundes Telles e outros, me apresentando com elogios hiperbólicos enquanto eu buscava a desenvoltura perdida lá na avenida JK. Dali em diante, por seis anos, seria sempre assim: Francis emitia ondas de ternura e informação, pessoalmente (quando vinha ao Brasil, umas quatro vezes por ano, ou quando eu ia para lá, pelo menos uma) ou por telefone (se o telefone me acordava à 1h da madrugada, tinha certeza de que era ele), e nunca tivemos nenhum desentendimento sequer. A seguir, algumas cenas do meu baú mental, sem ordem mas com progresso.

O Estadão certa vez pôs Francis num hotel no Largo do Arouche – portanto, decadente. Bati na porta do quarto, ele a abriu e mal me cumprimentou, já foi virando as costas. Estranhei aquele comportamento. Francis começou a reclamar com alguém e vi que era com um encanador negro e forte que tentava estancar o gotejar do chuveiro. “Ainda bem que você chegou”, disse Francis, “senão eu ia acabar levando uma surra.”

Em outra ocasião ficou muito mais bem instalado. Francis gostou muito do L’Hotel, na avenida Campinas, e do seu restaurante, Trebbiano, então no apogeu (que seria breve). Ao final do jantar, fez questão de pagar, como sempre, e deixou uma nota de 50 reais como gorjeta. Falei: “Como assim, Francis!? Isso é muito dinheiro.” “Ah, é?”, ele se espantou. “Então veja aí pra mim.” Peguei 5 reais e adicionei aos 10%. A vista não era um dos seus fortes. Quase despencou da escada quando saímos, mas foi salvo pelo manobrista.

Dois famosos jornalistas de São Paulo bateram boca, feio, na casa de um editor igualmente famoso, durante jantar oferecido a Francis. O assunto era uma viagem a convite aceita por um deles. Francis só dizia algo como “Calma, meninos”. Pensei que nunca o veria na turma do deixa-disso.

Fui apanhá-lo em algum hotel cujo nome não recordo. Francis entrou no carro com um sorriso quase infantil. “Que foi, Francis?” Ele respondeu que tinha estado em três restaurantes cinco-estrelas desde a noite anterior, quando chegara ao Brasil, e não o tinham deixado pagar a conta em nenhum deles.

Fomos caminhar pela Bienal do Livro, acho que em 1996. Contei uma piada maliciosa que nem sei mais qual era. Francis: “A coisa mais engraçada que escutei estes dias veio do Millôr: você já reparou como todos os velhos ficam com uma cara de pinto?”, disse, gesticulando com as mãos para mostrar que a cabeça fica careca e alongada. “Eu não quero ficar com cara de pinto.”

Um pouco incômoda era a quantidade de pessoas que o ficavam olhando em lugares públicos. Incômoda para mim. Ele gostava. Uma vez num restaurante japonês em Nova York uma jovem de olhos puxados, na mesa ao lado, não parava de olhar para a nossa mesa. Francis começou a encarar de volta, provavelmente intrigado com o motivo por que ela o olhava tanto. Até que ela disse, em português brasileiro sem sotaque: “Você é o Paulo Francis.” Ele fez que sim com a cabeça. Ela soltou aquela risadinha envergonhada característica dos descendentes de orientais. Era mais uma brasileira em Noviorque, telespectadora da Rede Globo.

Francis telefonou para mim na redação da Folha. Eu devia estar no café e quem atendeu foi uma redatora iniciante. Quando voltei, ela me disse: “Daniel, ligou um cara dizendo que era o Paulo Francis e queria falar com você. Eu falei pra ele dar trote em outro lugar.” Depois de gargalhar, contei a verdade a ela. Ela: “Bem que eu vi que a imitação era muito boa.”

Francis só tinha consciência parcial do que era sua voz e sua figura na TV. Uma vez o vi gravar o comentário para o Jornal da Globo. Enquanto revia o teipe, de repente ele me perguntou: “Você acha que pareço cabotino? Me dizem que pareço cabotino na TV.”

Chego tarde da noite e há uma mensagem na secretária eletrônica. É do Francis, falando com um vozeirão: “Daniel, aqui é o Paulo Francis imitando a voz do Nelson Rodrigues. Por favor me ligue” etc. Jamais ri tanto. Sei imitar bem o Francis falando como falava na TV (no cotidiano tirava a batata quente da boca). Mas aquilo ali era inimitável, além de inesquecível.

Falávamos de mulheres numa esquina em Nova York e Francis me parou (ele volta e meia parava o outro enquanto falava caminhando). Queria entender como eu tinha me casado com uma mulher não jornalista (minha primeira mulher se formou em publicidade). “O ambiente de redação no meu tempo era quase incestuoso.”

Francis via prostitutas em tudo que era lugar, especialmente em restaurantes de luxo. Dava certeza a quem estivesse com ele que aquela moça ali era garota de programa, apontando para uma jovem beldade ao lado de um velho rico. Às vezes eu sentia certeza também. Numa delas, no Bravo Gianni, o rico era realmente velho e se levantou para ir ao banheiro. Cinco minutos, não voltou. Dez minutos, não voltou. A moçoila, muito vistosa e alta, não sabia mais para onde olhar, o que fazer, qual expressão manter na cara. O velho reapareceu quinze minutos depois, com aspecto de quem estava passando mal ou tinha bebido muito. Foram embora, sem ele ter mexido no prato. Francis, com sorriso sacana: “Hoje ela vai ganhar sem trabalhar.”

Francis se sentou no sofá de casa e pediu o controle remoto da TV. Queria dar uma geral na TV brasileira. Nada. Tentou ver basquete num canal do cabo. Nada. “Sabe quem eu queria ver?” Não. “O Tiririca.”

O maior prazer era caminhar com Francis por Nova York, comprando livros e discos e depois indo jantar em ótimos lugares. Quando descobriu o VL, naqueles tempos em que o DVD era apenas uma promessa, parecia criança com brinquedo novo. Entrava na HMV e só saía depois de juntar mais VLs do que podia carregar. Comentário à saída: “Putz, a Sonia (Nolasco, sua mulher) não pode me ver entrar em casa com isso aqui.”

As sessões de ópera e cinema em seu escritório, no duplex onde morava, também eram imperdíveis. George Solti num ensaio regendo Birgit Nilsson nos “Nibelungos”, com suor pingando pelo nariz adunco. Renata Tebaldi e Fischer-Dieskau no dueto de “Fígaro”. O clássico secreto “Zulu”, com Michael Caine. A cena de Gielgud com Brando em “Júlio César”. Etc. etc. Francis revia tudo como se um adolescente vendo pela primeira vez.

Francis enchia a minha vida. Na noite anterior à sua morte, nos falamos por telefone. Minha mulher estava grávida. Contei para ele, achando que ele fosse me repreender. Que nada. Ele ficou esfuziante. Brinquei: “Agora você vai ser avô.” Mais tarde, soube, comentou a notícia com o Ivan Lessa. Morreu na manhã seguinte, sem conhecer a Letícia. Está perdoado.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no site PauloFrancis.com, de Marcelo Vita.

Daniel Piza
São Paulo, 19/5/2003

 

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