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Segunda-feira, 30/6/2003
São Paulo: veneno antimonotonia
Daniel Piza

Toda grande cidade vale pelos pequenos achados. E São Paulo é uma cornucópia de pequenos grandes achados. A cidade tem muitos e sabidos defeitos: pode ser bastante hostil, falta-lhe verde e segurança, esbanja-se descaso com o passado, há muita desorganização e pouco espírito público. Mas tem uma qualidade que ninguém lhe tira: aqui só morre de tédio quem quiser. Por baixo do manto de poluição, por entre o cinza das construções, o colorido de São Paulo é incessante, insuperável, sob qualquer parâmetro. Como na letra da canção, esta cidade é um veneno antimonotonia.

Um equívoco comum é pensar que na lista das melhores coisas de São Paulo só devem ser incluídas as atrações de luxo, como os restaurantes cinco-estrelas, as casas de espetáculos, as lojas de grifes. Nada disso. Há, por exemplo, duas verdadeiras instituições paulistanas que escapam a esse rótulo: as padarias e as pizzarias. É claro que há pizzarias chiques e caras, assim como há padarias que se auto-intitulam butiques de pães, e merecidamente. Mas o que chama primeiro a atenção é a variedade. A quantidade de boas padarias e pizzarias, em praticamente todo bairro da cidade, é impressionante.

Algumas padarias vendem pães e doces que deixariam pasmos muitos franceses. E a melhor pizza do mundo, já se sabe, é feita na capital paulista, melhor do que em Napoli ou qualquer outro lugar. Minha padaria habitual é a Benjamin, na rua Maranhão, Higienópolis, que tem tudo que se possa imaginar, inclusive aqueles sonhos – ou quaisquer doces com creme – que os nutricionistas inutilmente pedem para a gente evitar. E minhas pizzarias são a Cristal, a Piola e a Bráz, mas isso porque não quero abusar das citações.

Sem conhecer as boas padarias e pizzarias de São Paulo, em resumo, você não terá conhecido São Paulo. Padarias não são apenas lugares para comprar pãezinhos. Para muita gente, aquele endereço na esquina é a única outra referência de estabilidade urbana além do lar, nem sempre doce lar. Ali se toma café ou cerveja e se discute futebol e política; ou seja, ali se realiza boa parte da vida social da cidade. E a pizza é um ritual no mínimo semanal para a maioria dos habitantes. Depois do fim de semana de agitos, encomendar “uma redonda” no domingo à noite para comer em casa é uma praxe.

Há vários outros achados que não rompem a barreira do seu cartão de crédito. Ir a feirinhas artesanais nos fins de semana, no Masp, na Benedito Calixto, no Bixiga ou no Embu, não fazem muito meu gênero, mas elas são também emblemas paulistanos. E na da Benedito Calixto, uma praça em Pinheiros, pode-se sempre visitar a banca de doces do Obeni e provar um inesquecível doce de banana puxado no suco de laranja. Deve ser único no mundo. Ou experimentar um pastel de queijo numa feira de rua, geralmente frito por uma família japonesa bem à sua frente na hora. Ou, claro, ver um jogo de futebol no charmoso Pacaembu.

Além disso, e apesar da carência de natureza em São Paulo, há alguns parques que valem a visita por sua peculiaridade. Pouca gente nota – até porque nos fins de semana ele fica lotado –, mas o paisagismo do Ibirapuera é riquíssimo; poucos parques no mundo têm tanta variedade de flora. Pena que a sujeira, a bagunça e a dificuldade de acesso prejudiquem tanto. Se você se interessa por passeios em parques, há também o Horto, o Jardim Botânico e o Oscar Americano, entre outros. Em qualquer um deles um prosaico piquenique com pipa ainda é possível.

Mas é claro que São Paulo é o que é – venenosamente novidadeira – por causa de seus atributos culturais e gastronômicos de porte internacional. É a menos provinciana cidade brasileira neste aspecto. Qualquer consulta aos roteiros da imprensa pode deixar alguém louco com tanta oferta.

Livrarias, por exemplo. Minhas preferidas são a Cultura e a Fnac, que têm de tudo sem perder a sofisticação, mas há as livrarias mais segmentadas, como a Francesa, a Landy (de autores alemães e do Leste Europeu), a Letraviva (hispânicos), etc. Há salas de cinema às dezenas, como as bem-sucedidas Multiplex e aquelas que privilegiam clássicos e filmes de arte, como o Espaço Unibanco e o Cinesesc. Os teatros, as casas de shows e musicais e as salas de concerto estão cada vez mais modernos e numerosos, como o Abril, o Credicard Hall, o Tom Brasil e meu preferido, o Cultura Artística. A fartura da programação só deixa a dever para Nova York, Paris e Londres.

Os museus são um capítulo à parte. Há espaços muito ativos, como a Oca e o MAM (ambos no Ibirapuera) e a Faap. Mas você vai encontrar surpresas, de verdade, nos acervos de dois museus que estão com dificuldades administrativas: o Masp e o MAC. O Masp fica na avenida paulistana por excelência – ou melhor, por eleição –, a Avenida Paulista, e tem uma coleção que vai de Mantegna a Van Gogh com escalas importantes em quase todos os períodos e mestres. (É o tipo de museu que aprecio: pequeno e precioso.) O MAC, que fica na Cidade Universitária (o campus da USP, a principal universidade do país), dá continuidade na coleção do Masp, com obras-primas do século 20 de Matisse, Boccioni, Kandinsky e outros. Infelizmente, a freqüência de visitas a esses dois acervos são de envergonhar a cidade.

Quanto aos restaurantes, há razoável consenso sobre os melhores: italianos como Fasano e Massimo, franceses como Café Antique e Roanne, portugueses como Antiquarius, japoneses como Jun Sakamoto, casas de carne como Rubayat e Esplanada Grill. São todos, principalmente os cinco primeiros citados, bastante caros. São Paulo, com exceção das pizzarias, não tem muitos restaurantes de preço médio (digamos, R$ 40 per capita) e comida ótima, como é comum na Europa ou mesmo em Nova York. Mas há, de novo, os bons achados. Entre os italianos, por exemplo, há o Vicolo Nostro, no Brooklin, a Vinheria Percussi, em Pinheiros, e o Venitucci, no Sumaré, se bem que este é mais caro. Há uns poucos restaurantes a céu aberto, como o do Museu da Casa Brasileira, o Capim Santo e a Casa da Fazenda. E muitas, muitas churrascarias onde se pode comer algo que o brasileiro adora: picanha.

Outro defeito de São Paulo é não ser uma cidade muito “caminhável”. As calçadas são ruins, o relevo é irregular, a qualidade de ar e som não é convidativa, há pouco metrô, as ruas à noite são um tanto arriscadas. Talvez por isso o paulistano goste tanto de shopping center (o “mall” dos americanos, que chama assim mesmo, “shopping center”, sabe-se lá por quê), onde pode fazer as coisas que mais faz, além de trabalhar: comprar, ver um filme e comer. Mas uma caminhada luxuosa é pela rua Oscar Freire, oásis das grandes grifes, parando em restaurantes moderninhos como o Vítreo. Uma caminhada por lojas de design étnicas e joviais é pela Vila Madalena. E uma caminhada pela versão local do pós-modernismo arquitetônico é pela avenida Berrini.

Como toda cidade construída por gente de diversas origens, São Paulo é fascinante à medida que permite você conhecer todo tipo de pessoa. A colônia de italianos (o Brasil tem a segunda maior fora da Itália, depois dos EUA) se concentra aqui, assim como a de japoneses (a maior fora do Japão), a de libaneses (e sírios e turcos e árabes), a de judeus, etc. Mas, embora algumas se distribuam mais ou menos em bairros (os japoneses na Liberdade, os judeus em Higienópolis, etc.), não há nem nunca houve guetos em São Paulo. Os imigrantes já na segunda geração se sentem mais brasileiros que estrangeiros. E isto faz de São Paulo, que às vezes parece a menos brasileira das capitais, a mais brasileira delas. Tão cosmopolita quanto provinciana. Tão construtiva quanto destrutiva. Contraditória – e de um modo único.

Nota do Editor
Texto inédito. Gentilmente cedido pelo autor ao Digestivo Cultural.

Daniel Piza
São Paulo, 30/6/2003

 

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