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Segunda-feira, 22/9/2003
Lô Borges e a MPB
Ronald Polito

Em 1972 foram lançados discos antológicos da música popular brasileira. Para ficar apenas nos óbvios: Transa e Araçá Azul, de Caetano Veloso, que compõem realmente um heteróclito casal, Quando o carnaval chegar, de Chico Buarque, Caetano e Chico juntos e ao vivo, além de Expresso 2222, de Gilberto Gil, Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, Água & Vinho, de Egberto Gismonti, Acabou Chorare, dos Novos Baianos, and last but not least, o disco de Jards Macalé que inclui “movimento dos barcos”, “farinha do desprezo”, “mal secreto” etc. Trabalhos de exilados e entendidos, experimentos vanguardistas, outros caminhos abertos – ainda estamos ligados visceralmente a muitas das músicas ou interpretações desses discos, e cada um deles ou seu conjunto renderia extenso comentário.

Mas 1972 foi também o ano de gravação de outro trabalho que passou bem mais despercebido. Penso em Lô Borges que, além de co-autor de Clube da Esquina, no mesmo ano reúne suas composições de juventude (ele estava então com 20 anos) e grava seu primeiro LP como compositor individual. Sem título, só seu nome. Sem encarte (não era ainda uma mania...). Na frente a foto de um velho par de tênis branco com listras pretas laterais, cadarços em desalinho, sobre uma grama verde, desfocada e pouco firme. Atrás, em p&b, o compositor sentado em uma cadeira, de braços cruzados, pernas cruzadas, sério, nos olhando nos olhos, num canteiro central (mais um cruzamento) de uma avenida de uma grande cidade (Belo Horizonte).

Ainda que nunca tenha alcançado popularidade, tanto mais ao lado de Clube da Esquina, este LP é uma peça singular na história da música popular brasileira, fato notável para Tom Jobim, ao avaliar que ali estava uma grande promessa. Tal não se efetivou. Após longo interregno, Lô Borges só voltou a gravar seu segundo LP, Via Láctea, em 1979, sete anos depois. As composições de seu primeiro disco, por outro lado, não serviram de base para os caminhos inovadores que a música popular brasileira veio a conhecer a partir dos anos 80. Mas é raro um verdadeiro aficcionado da música popular brasileira que não conheça este LP e tenha por ele um carinho especial.

Pois este disco compõe um microcosmo. Anotando pequenas vivências ou projeções, ajuizando experiências passadas e presentes, mapeando opções de comportamento e reação, o que vemos é um roteiro fragmentado de uma subjetividade que busca o isolamento, de uma personalidade intimista, insubmissa e, mesmo, agressiva, quando precisa manter sua integridade ameaçada. A música, por outro lado, tendo sua própria linguagem e orientação, comparece geralmente em sistemática sintonia ou em contra-voz com os apelos da fala, quando esta se faz presente. Porque também há o tempo só para a música, onde toda palavra seria ruído. Coisa incomum na MPB do período, com tendência a uma super-valorização da letra das canções.

Há outras rupturas com os padrões mais recorrentes. São quinze composições, quase todas curtas, algumas com pouco mais de um minuto, em consonância com letras-poemas (áporos, aforismos?) que não ultrapassam uma pequena estrofe, numa recíproca ilustração entre texto e música. O rock de abertura dá o tom geral – e some. Só reaparece mais à frente, em “Aos barões”, em “Pra onde vai você”, ou secundando o “baião” de “Não foi nada”. A forma da balada, ainda que em diálogo com as baladas do próprio rock, parece que retoma a toada do cancioneiro popular e da viola caipira de algumas regiões mineiras e é dominante no restante das composições. Desta forma híbrida de balada decorre a força das melodias, amplificadas por um pano de fundo jazzístico que lhes realça a maleabilidade.

O tom melódico geral é melancólico, triste, sorumbático, ainda que nunca linear ou repetitivo (os momentos corais são longos lamentos). Às vezes torna-se mais reflexivo, como em “O caçador”, com leve insinuação à primeira vista surreal, “com seu revólver apontando para a lua”. Há também uma violência comedida no aparentemente pacato. Mas o rock de abertura e outras duas canções, “aos barões” e “Pra onde você vai”, já citadas, interrompem esta dominância, instalando melodias mais agressivas, tanto quanto as letras que as acompanham. Rock agressivo, baladas intimistas e românticas. Em primeiro ligar, note-se a diferença em relação à MPB do momento. Em segundo, a internalização no país de certo modelo da música pop internacional. Em terceiro, as dificuldades implícitas nestas opções que poderiam resvalar em incongruências sonoras ou rarefações ideológicas de segunda grandeza. E tal não acontece.

As letras das músicas, por outro lado, podem abrir para um leque tão amplo de problemas e tradições – até porque são de vários autores, Lô Borges, seu irmão Márcio, Ronaldo Bastos, Tavinho Moura... – que aqui só poderemos eleger alguns cortes, pontuações únicas ou recorrências, como instantâneos fotográficos de uma constelação de brilhos permutados e intermitentes. Talvez estas letras permitam uma aproximação mais imediata das disposições presentes que a música, muito impermeável à linguagem. Deve-se ter em conta a ordem das músicas em cada lado do disco: 8 no lado A; 7 no lado B. No lado A, apenas a penúltima é instrumental. No lado B, a primeira e a sétima são instrumentais, balizando-o. Os rocks são as faixas 1 (“Você fica melhor assim”) e 8 (“Para onde vai você”) do lado A, também demarcando o território, e 4 (“Aos barões”) do lado B, que ocupa o seu centro. São posições, portanto, que obedecem a alguma geometria.

São balizas, também, a primeira e a última letra, que dialogam entre si e recebem modulações no percurso. No tom geral, ecoam nelas e em outras os temas baudelairianos e os percalços da modernidade. Você, que “fica bem melhor assim”, da música de abertura, é a primeira palavra cantada, você companheiro, testemunha, confidente, do que vai sendo dito. Você que faz o quê? Que colore o espaço em branco deixado pelo passado. Mas sem ilusões: “Pise no sol da manhã”, tenha alguma brutalidade indispensável nisto, mas “limpe o sangue das mãos/ você fica bem melhor como está”. Trata-se de um convite a um modo de imobilismo. “Não tente mudar o mundo. Você só tornará as coisas piores” (John Cage). Por isto a última canção deste primeiro lado do disco, a oitava, retoma o problema deixado na de abertura: sua minúscula letra reza apenas:

“Para onde vai você?”

Para onde vai você?
Que pressa você tem?
O sangue nas paredes nunca foi o seu!

Note-se o grifo do termo, a primeira de apenas duas ocorrências em todas as letras, sublinhando e fechando este primeiro lado, e que insiste em permanecer no martelado seqüencial da percussão que decresce finalizando a composição. Você é também aquele que tem notícias de meu passado, dirá de mim para os outros e de mim se lembrará se ouvir essa “Canção postal”, a segunda faixa do lado A; você é, ainda, quem experimenta o imponderável, o inominável, como em “Pensa você” (lado A – sexta faixa). Para você é o manifesto “Faça seu jogo” (lado B – 2 faixa) e a composição de amor “Não se apague esta noite” (Lado B – 3 faixa). Você, por fim, “meu irmão”, porque “eu sou como você é”, titulo da última composição com letra, a penúltima do disco. Saímos todos “do mesmo escuro”, andamos “por aí”, atentos para não cair, pois há “mais de mil abismos” que “esperam no jantar”. Para quê? Melhor: como? “Aprendendo”, dirá o refrão.

As letras mais explicitamente agressivas, como se notou, são as dos rocks, a música de abertura e “Pra onde você vai”, ambas com tanto sangue aparente. Lembramos ainda “Aos barões”, com elementos que delineiam condições, digamos, existenciais ou de entorno: “Uma rua um buraco/ ficam sentadas umas pessoas (...) E os outros olham para a gente/ como se a gente fosse gente? E a gente fica esperando uma coisa, uma coisa que eu não sei o quê...” A rua, pátria última do poeta, a rua como lugar de um “estranho silêncio”, onde passa “Um incêndio calado num homem”, como se dirá ainda em outras composições. A rua, afinal, por onde andou o par de sapatos da capa e onde está o músico da contra-capa.

A composição, contudo, mais violenta, é uma das mais delicadas, talvez precisamente por isso, tal o contraste que instaura. Seu título não oculta nada. Ela é mesmo “Como o machado”. O poeta anda triste porque vive “na rua”. Espera mais frio, mas já aprendeu “a ser como o machado/ que despreza o perfume do sândalo!”. Nela se esclarece mais ainda o ponto de vista do poeta: “A verdade é negra, eu sei/ e o homem é mau”, nesse admirável novo mundo hobbesiano. Porque, afinal, “aprendi a ser como o meu gato/ que descansa com os olhos abertos!”, é que posso esperar “um pouco mais esse ódio”, posição que lembra o Drummond de certa fase poética.

Entre ruínas, a reação é possível, mesmo que deslize em direção a uma tragicidade inarredável. Em “Homem na rua”, com o “Sonho no chão”, o poeta acredita “nas histórias”/ em todas as histórias do mundo”, ênfase que é, em si mesma, pura amplificação dilemática. E quando o sol se apaga, “preciso e procuro não me apagar”. No entanto, não há nenhuma garantia de bom resultado, “E quando chego na minha cama”, no máximo “Eu te imagino melhor”! Nítido em quais sentidos? “Sonho no chão”, repetirá contudo o poeta, sem esclarecimentos. Mesmo uma festa “não apaga/ o estranho silêncio da rua/ o estranho silêncio da rua” (segunda e última palavra grifada nas letras).

Limpar o sangue das mãos, desprezar o sândalo, manter-se imóvel, não ter pressa. Afinal, ir para onde? Para onde o caçador não possa “mirar em cima de você/ ele quer achar o seu coração”. Esperar o quê? O ódio, ao descansar com os olhos abertos. E ainda, neste presente, aprender. Aprender precisamente “que amanhã tem mais/ que a gente muda e continua a sonhar”. Sabendo também que, toda manhã, encontramos “tantas emoções antigas no mesmo lugar”, e não sabemos “como começar”. E é só o que se aprende. Outra saída: “Jogue sua vida na estrada/ como quem não quer fazer nada/ ouça bem as vozes do mato/ como quem abriu o seu coração”. Não tente fazer muita coisa, ao menos a estrada parece ir além das ruas. O passado? Zona de nebulosas. O poeta tentou “sorrir” e espera o seu sorriso ao se lembrar dele. Nada mais. Um futuro? Também desfocado. “Eu queria levar você/ ao deserto sem nome”, dirá a letra de “Não se apague esta noite”. O futuro é o vazio inonimado. É preciso, de qualquer modo, tentar “dormir em paz” (como é difícil dormir em paz!), se soubermos ser, eu e você, “como o touro e a rosa”, tão distintamente complementares, como “o pão e a fome”. É preciso, sobretudo, nestas condições de imobilidade, deixar manifesto que o poeta sonhou “outro mundo, meu amor/ e a paz morava na nossa casa/ mil pessoas como nós/ sem palavras por viver”. (Faça seu jogo”).

“Sem palavras por viver” , repita-se. Num contexto de puras palavras de ordem, slogans políticos de esquerda & direita, nada poderia soar mais estranho e ininteligível. O tangenciamento das coordenadas da contra-cultura, do movimento hippie (de “On the road” a “Easy rider”) e da conjuntura do pós-68, perspectiva melhor ouvir as “vozes do mato” que ladeiam a estrada. Essa “utopia”, localizada num futuro que é apenas sonho ou num pretérito imperfeito é, no entanto, uma economia da escassez, está longe do idílio do “Flower & Power”, pois “o sonho acabou”, mas também das reformas e revoluções mais à mão. Acordados, a gente fica esperando “uma coisa que eu não sei o quê...” E quando sonhamos, ou ele está no chão, ou batemos de frente em uma aporia. Diz toda a letra de “Não foi nada”, que não é nada mesmo:

Sonhei
Que eu nunca existi
E vi
Que eu nunca sonhei...

E é tudo. Ou melhor, já é alguma coisa, mesmo que as letras e músicas ainda apontem para outras figuras também luminosas. Como a presença da noite, tão constante companheira, da comunhão do sangue dos amantes à fuga do caçador. Ou a liberação do texto de compromissos sociais, políticos e ideológicos de certo tipo, poder-se-ia dizer, mais imediato, o que lhe confere, por contraste, um poder de metaforização não simplista deste mesmo rol de questões, se quizéssemos submetê-lo a uma inquirição desse tipo. Ou ainda a liberação do texto da própria música. Pois se há músicas sem letra, há também letras sem música; afinal, constam frases nas letras, em seu início ou meio, que não são cantadas ou ditas. As letras das músicas reivindicam, assim, maior autonomia e passam a valer também em sua estrita condição diferencial de texto.

Essas coordenadas descontínuas, de qualquer forma, são suficientes para conferir à obra um grau de realização muito superior à média da MPB, não sendo etiquetável com simplicidade em termos tanto ideológicos quanto musicais, e nisto reside sua força. Notável que essas músicas, praticamente, não tenham sofrido nenhuma regravação importante. Mesmo o próprio Lô Borges volta a elas com moderação em suas apresentações ao vivo. Notável também que há uma confluência entre este disco e as composições de que participa Lô Borges no Clube da Esquina. E elas estão entre as mais populares do LP duplo: “Tudo o que você podia ser”, “O trem azul”, “Nuvem cigana”, “Um girassol da cor do seu cabelo” e “Paisagem da janela”, o que não deixa de ser uma dessas contradições do destino. É razoável, ainda, tentar certa aproximação do LP do Lô Borges e Araçá-Azul, de Caetano Veloso. Afinal, ambos intimistas, em pianíssimo. No entanto, no caso de Caetano, o experimentalismo (algumas vezes inócuo) e as preocupações com a crítica social mais evidenciada comparecem com maior insistência, além de que o intimismo de sua obra só chegaria a uma realização mais própria nos discos seguintes, Bicho e Jóia, e possui outra natureza. Tal como é ainda outra a natureza do intimismo de alguma MPB dos anos 80/90, por vezes tão frívolo em sua claustrofóbica ansiedade de mediana classe média.

O disco de Lô Borges possui certa precedência ao inaugurar no repertório da MPB certas temáticas e, ainda, o tratamento musical que as mesmas recebem. Este intimismo entranhado, esta sensação de auto-suficiência da obra e que implica, também, em algum grau de desistência diante das coisas, a sua completude, enfim, foi conquistada a duras penas, ao preço de um doloroso procedimento até certo ponto anti-narcísico, porque de esvaziamento de sentidos, que devolve a nós um corpo repartido a ser levado adiante. Com isso chegamos ao ponto zero, ao completo vazio, se isto não é um oxímoro. Com efeito, a obra é um círculo e seu fluxo. E isto agora é perceptível desde o diálogo entre as imagens da capa e contra-capa, duas temporalidades de uma mesma circunstância. Igualmente, os últimos acordes da última composição do lado A podem ser identificadas facilmente nos primeiros acordes da primeira música do lado B. Tanto como os acordes da última composição do lado B sugerem, mesmo que extremamente travestidos, certos acordes do rock de abertura. Mais ainda. A última música do disco, “Toda essa água”, “resumo” de todas as anteriores, em si mesma possui uma estrutura estritamente circular, amplificando a recorrência geral. E líquida, tendo em conta sua plasticidade e fluidez em retornar sempre à origem. É tal a evidência “minimalista” deste círculo, que aos passos iniciais a modo de pergunta, respondem outros de igual duração, os primeiros dissolvendo a tensão inicial e os últimos, em nota contínua, reconstituindo-a. Algo tão auto-referente é que permite a pura elipse da própria pergunta, contida afinal na resposta, que se repete até o fim do disco, em queda perpétua.

Um brinde a este conhecimento da intimidade!

Nota do Editor
Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal O Estado de Minas, em 1997.

Para ir além


Ronald Polito
Tóquio, 22/9/2003

 

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