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Segunda-feira, 17/11/2003
Jornalismo cultural: quem paga?
Ana Maria Bahiana

Um excelente artigo de Julio Daio Borges, no sempre interessante site Digestivo Cultural levanta a bola da vez no jornalismo cultural - a revista de marca, ou, no jargão marketeiro dos dias de hoje, mídia customizada.

É tema dos mais apetitosos, cujos ecos, em gritos e sussurros, têm chegado aos meus ouvidos vindos de algumas das pessoas que mais respeito no nosso surrado métier.

O assunto é particularmente pertinente porque, por coincidência (e existem coincidências?), vive-se um momento em que, globalmente, discute-se quem deve pagar pela cultura de um país.

A Europa, sempre generosa no setor subsídios, anda encolhendo as participações estatais em várias áreas, especialmente o cinema. Nos EUA, que nunca foram mesmo muito chegados a isso, o Public Broadcast System, sofreu uma das reduções mais drásticas em seu orçamento - uma pena de fato, já que a rede pública de TV e rádio é responsável pelo que considero um dos melhores trabalhos tanto no departamento cultura quanto em todos os outros.

E no Brasil, as recentes marchas e contra-marchas em torno da Ancine e das leis de incentivo revelam claramente que o que se busca definir é, exatamente, quem paga a conta pelas despesas da cultura - e o que ganha em troca.

O jornalismo cultural é um bom prato para esse churrasco, porque ele não apenas cobre o setor mas, muitas vezes, se confunde com a cultura que cobre, produz elementos que irão se incorporar ao próprio tecido cultural.

E quem irá pagar essa conta?

A resposta ideal seria: o leitor. Este é o paradigma clássico de todo jornalismo, aliás: ele existe para servir ao leitor, e ao leitor deve satisfação e satisfações.

Mas você e eu sabemos que isso é, como todo ideal, uma utopia de proporções olímpicas.

Um país com uma tradição de centralização do poder responderia: o estado. Eu, pessoalmente, acho que essa é sempre uma equação muito perigosa, com a sombra da propaganda pairando em cima. E instável, com parâmetros, prioridades, verdades e mentiras se alterando a cada nova administração.

Historicamente, o anunciante tem pago o grosso da conta, no jornalismo cultural. Dificil ter ilusões a esse respeito. O jornalismo político, econômico e de cidade lida com outras margens de valor agregado que podem ser manobradas em troca do vil metal - não estou falando de matérias compradas, é claro, estou falando do mecanismo que todos nós conhecemos pelo qual investidores endinheirados colocam suas preciosas fichas num veículo de comunicação, em busca do intangível lucro da influência.

Espero não estar tirando a virgindade de ninguém com este singelo raciocício.

O poder do jornalismo de cultura é de ação lenta, homeopática. Há que se construir uma marca, uma assinatura, até que ela tenha autoridade suficiente para ser o formador de opinião que, finalmente, agregará algum valor ao conteúdo. Isso se aplica a grandes e pequenos. Os mais mastodónticos e tradicionais veículos de imprensa são cíclicos em seu poder de fogo na área cultural, dependentes do time que nela joga.

Na rampa para a conquista do leitor, o anunciante permanece como a opcão mais viável. A delicada dança entre o poder imediato que ele controla e o poder potencial que o veículo está construindo não é coisa que se aprenda na escola, nem tem manual de instruções claras e precisas. Como na batucada dos Stones, há que se ter simpatia pelo diabo: o anunciante é um sujeito de riqueza e gosto (ou pelo menos assim o considera quem lhe vendeu espaço), ainda que repleto de armadilhas que podem pôr a perder a alma, não dos trovadores, mas do veículo com que transaciona.

O diabo é o pai do rock. Na figura do anunciante, o diabo também é o pai das revistas de rock - e de cinema, cultura, moda, comportamento, estilo de vida. A mídia customizada, a revista de grife entram nesse balaio. Temo que seja uma relação que, se não veio para ficar – o que é que fica, realmente, num universo em perpétua mutação? – veio para passar um bom tempo com a gente. E ter medo dela não vai adiantar coisa alguma.

A realidade, que todos nós sentimos na carne e no bolso de um modo ou de outro, é que o velho modelo de negócios da mídia impressa não funciona mais. A base de leitores está encolhendo, ou melhor, se dispersando. O anunciante mudou de estratégia, também, porque percebeu que o "anúncio" funciona bem menos, com esse público disperso, do que a "ação".

Como se equilibrar no gume dessa faca sem perder tudo a credibilidade junto ao leitor, que por sua vez alavanca o interesse do anunciante? Uma revista de marca, bem pensada, pode ser a mais sensata das soluções.

Num almoço muito interessante com uma pessoa muito inteligente que já trabalha bastante no setor, aprendo que a verdadeira arte da mídia customizada não é vender a marca - isso o anúncio faz, a "armação" disfarçada de matéria faz, a menção "casual" na novela faz. A verdadeira arte é estimular o consumo daquilo que beneficia a marca. Aprendo que um dos casos de maior sucesso do setor é uma revista criada para e bancada por uma empresa escocesa de energia elétrica. Suas páginas são notoriamente ausentes de plugues da empresa. Mas repletas de matérias sobre atividades e produtos que seriam impossíveis sem o consumo da energia elétrica que a companhia vende.

É um equilíbrio zen. Um malabarismo possível.

Dói?

Um lado meu, certamente o lado ex-riponga de sandália de sola de pneu que trabalhava na Rolling Stone, ainda fica ansioso com essa massa de apelos de venda, despejados universalmente, em toda parte, sobre todos nós.

Ainda sonho com um espaço em que a informação flua livre, e nada me seja vendido. Mas suspeito que isso seja um acesso lamentável de ingenuidade. O paraíso, se algum dia existiu, foi perdido.

Consideremos então as opções, e as delicadas artes alquímicas que podem nos levar a uma saída viável.

Uma revista customizada burra é, simplesmente, uma revista burra. Não serve ao leitor e não serve à marca. O leitor se sente usado, e se retrai. A marca não vende coisa alguma.

Que novos talentos são exigidos de nós, especialmente na área do jornalismo cultural, a que mais se presta às publicações de marca? Saber distinguir uma customizada de um house-organ é fundamental. Saber identificar o ponto em comum entre os interesses dos leitores e os do "customizador" é o passo seguinte. O resto, imagino, deve vir naturalmente, se o diálogo for realmente fundamentado em clareza e respeito.

Eu já disse que não acredito em diabo?

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no portal Comunique-se, o qual autorizou a repodução no Digestivo Cultural.

Ana Maria Bahiana
Los Angeles, 17/11/2003

 

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