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Segunda-feira, 12/1/2004
A Trilogia de João Câmara
José Nêumanne

De outros dois egressos da João Pessoa, Paraíba, onde nasceu, mas, como eles, ficou pouco, pois logo se tornaria olindense por moradia e vocação e recifense por necessidade, o artista plástico João Câmara herdou duas características. De Geraldo Vandré, um loirinho invocado, o desassombro. E de Leovigildo Gama Júnior, mulatinho isoneiro, o estilo hábil, simples e construtivo, de quem não joga para a arquibancada volúvel, mas para fazer seu time campeão.

Nem branquelo como o primeiro, mais velho, nem negróide como o segundo, mais moço, esse caboclo magro, espigado, simples no vestir, mas enxundioso e elegante no falar, usa tintas e pincéis para épater le bourgeois, qual o fez Vandré com letras e melodias. E, como Júnior, é um craque comprometido com o próprio engenho, que não vende, não troca nem dá. O resultado de sua arte singular, brasileira (pernambucana, em sua essência) e valorizada foi reunida numa caixa de três volumes sob o título de Trilogia, que a gráfica Takano, o Ministério da Cultura e a Fundação de Arte do Governo de Pernambuco vêm de lançar no mercado editorial brasileiro. Uma preciosidade, pois o autor cuidou de cada um dos três volumes com o mesmo esmero com que elabora suas telas.

A política em tela - Composta por 100 grandes painéis e 100 litografias, sua mais célebre série, Cenas da Vida Brasileira, desafiou o monopólio de objetos, ambientes e performances (de Hélio Oiticica e Lygia Clarke, entre outros), o predomínio do concreto e do geométrico (em Waldemar Cordeiro, Rubens Gerchman, Antonio Dias, etc.) e a obrigatoriedade de dar seqüência ao construtivismo (por Mira Schendel, Alfredo Volpi, Arcângelo Ianelli e mais um punhado) no cenário artístico nacional. E, de quebra, ainda produziu um impacto político registrado sem pudores por Tadeu Chiarelli no texto que abre o primeiro volume da Trilogia, dedicado aos quadros que João Câmara realizou em 1974 a 1976, ano em que a expôs no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, templo máximo da seita conceitual: “Numa leitura mais rasa e apressada, Cenas poderia ser encarada como uma apologia ao autoritarismo militar que então reinava com mãos de ferro sobre o País.”

Na verdade, o que seus detratores políticos não perdoaram na série foi a evidência cabal por ela manifestada de que é possível fazer uma arte social e politicamente engajada com competência técnica e sensibilidade estética e, portanto, sem as grosseiras simplificações do realismo socialista stalinista, predominante na mentalidade da esquerda de então (e será que mudou alguma coisa sob a égide petista?). E, para desespero dos cultores dos happenings na moda à época, que desembocariam no modismo contemporâneo das instalações, João Câmara desenha e pinta com técnica irrepreensível e inspiração evidente.

Com realismo pictórico, ao qual se acrescentam, de um lado, referências ao imaginário iconográfico popular e, de outro, pitadas de humor irreverente, ele retratou personalidades públicas, tais como João Pessoa, Eurico Dutra, Juarez Távora, Filinto Müller e Carlos Lacerda, tirando-os das páginas dos periódicos para pô-los nas telas. A maior dessas figuras era, e só poderia ter sido, a de Getúlio Vargas. Frederico Morais, voz solitária da crítica a romper a muralha de silêncio que se tentou impor sobre a obra e o pintor desde então, viu em Getúlio a figura dicotômica e contraditória de “pai e padrasto”, por ele desempenhado na História real. Em 1937, quadro intitulado com o ano no qual o “pai dos pobres” deu um autogolpe para instaurar o Estado Novo, este aparece com duas caras, a do moço revolucionário de 1930 de frente e o perfil do velhinho de volta na eleição de 1950. Como uma aura, a concha da Shell reina no quatro em que foi retratado o maior símbolo do nacionalismo brasileiro. Quem poderia perdoar tamanha ousadia, tanto sarcasmo, numa tela só?

Embora seja praticamente impossível encontrar um quadro que seja capaz de resumir Cenas, cuja atualidade surpreende até hoje o ciitado (e respeitado) Frederico Morais, difícil será resistir a não chamar a atenção do leitor para 1954, III, óleo no qual, com o dorso nu, o pintor, questiona, à esquerda, o cadáver do presidente suicida. Ao despir a camisa, o reatrista se pôs no mesmo plano do retratado, cujo cadáver fotografado com o hirsuto peito à mostra, correu o País simbolizando o fim de uma era. No canto oposto da tela, a imagem-síntese dessa era - a efígie do suicida com um pano segurando o queixo - atrai para si a atenção concentrada de quem quer que se depare com ela.

O erótico e o lírico - Menos de um ano depois de haver concluído, em seu ateliê de Olinda, do qual costuma se deslocar sempre a pé para desempenhar qualquer atividade comezinha (ou não), desde ir a um botequim até apanhar algum filho na escola, seu particular inventário pictórico-político do Brasil oficial, João Câmara começou a devassar as alcovas do País real. A série - cujo título Dez Casos de Amor e Uma Pintura de Câmara remete indiretamente ao mítico livro Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, do chileno Pablo Neruda - exigiu seis anos de trabalho, não ininterruptos: enquanto a fazia trabalhou em obras avulsas, tidas como “apêndices” de Cenas, tais como O Baile da Ilha Fiscal (1979), Carisma/Quaresma (1981) e Retrato de Família (1981).

A primeira matriz da série são as litografias intituladas Dez Casos de Amor, retratando a sedução de várias personagens femininas pelo mesmo personagem masculino. A segunda, o tríptico Uma Pintura de Câmara, funciona, segundo Frederico Morais, como “ bússola” e “câmara” (o quarto), palco do teatro do amor, do qual as litogravuras são a antecâmara. Para o crítico, dez pranchas de madeira registram as mudanças de curso ao longo da confecção da série - impostas pela própria obra e também no autor e na sociedade brasileira.

O ateliê e a biografia - O terceiro volume fecha a Trilogia com os quadros que compuseram a última exposição do pintor pernambucano da Paraíba nesta megalópole de Piratininga, na Pinacoteca do Estado, reformada por seu amigo Emanoel Araújo. A caixa foi lançada em Recife na exposição desta mesma série no novo espaço Cícero Dias, anexo do Museu do Estado de Pernambuco.

Em Duas Cidades - pinturas e objetos, de 1987 a 2001 - João Câmara oferece visões nostálgicas e oníricas destes locais (loci) de sua paixão: vizinhos que se contemplam e se desprezam, mas não sabem viver um sem o outro, como certos casais, Olinda e Recife, um português e outro, holandês. Melhor definirá o autor, que lida com as palavras com a intimidade com que empunha pincéis - e disto o leitor terá provas definitivas em textos do autor-pintor reproduzidos no volume: “Um, o lugar do trabalho e da imaginação - a ‘província-ateliê’ - outro, o lugar civil onde a vida e a biografia se nominam”.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno2" do jornal O Estado de S.Paulo.

José Nêumanne
São Paulo, 12/1/2004

 

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