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Segunda-feira, 9/2/2004
Antônio Cícero: música e poesia
Pedro Maciel

O poema é feito de palavras, medida e ritmo. O ritmo é o núcleo do poema. Os poetas verdadeiros são necessariamente músicos de primeira ordem. A poesia da letra de música é uma escrita cadenciada, sonora. Soneto, em italiano, é "sonzinho". "Um soneto não é um poema mas uma forma literária, exceto quando esse mecanismo retórico - estrofes, metros e rimas - foi tocado pela poesia. Há máquinas de rimar, mas não de poetizar...", anotou o poeta mexicano Octávio Paz. Talvez a Música Popular Brasileira seja a alta cultura do país, apesar de, nos últimos tempos, a música vir sendo forjada por uma máquina de rimar, azeitada no mais ingênuo romantismo.

As antologias compiladas pelos críticos mandarins não incluem nenhuma letra como exemplo de poema. Vinícius de Morais, Caetano Veloso ou Chico Buarque são considerados pelos mandarins como poetas de segunda categoria. Estes e outros escreveram letras e canções de tamanha estatura poética que é difícil achar paralelos na poesia escrita no mesmo período. Mas o poeta José Gino Grunewald redimiu o espírito da poesia brasileira com o lançamento do Livro Pedras de toque da poesia brasileira (Ed. Nova Fronteira), seleção dos melhores poemas em antologia e que inclui de Castro Alves a Noel Rosa, de Carlos Drummond a Caetano Veloso.

Antônio Cícero poderia ter sido incluído nesta coletânea. Cícero é parceiro de Marina Lima, uma das revelações da música dos anos 80, tradução pop de Rita Lee e Tom Jobim. Erza Pound advertia que a poesia não evolui, quando se afasta muito tempo da música, sua origem e destino. Cícero é uma das boas surpresas da poesia brasileira. Guardar (Ed. Record) foi o seu primeiro livro, mas não se trata de um estreante, já que lançou um livro de filosofia.

A maioria de seus poemas apresenta os traços sonoros típicos do trovador, do cantador popular. Guardar é um livro musical. Há poemas em verso livre, poemas de fala irônica, sonetos quebrados, versos curtos e dissonantes, como em "Voz"; "Orelha, ouvido, labirinto:/ perdida em mim a voz de outro ecoa./ Minto:/ perversamente sou-a." Indagação filosófica, sem pendantismo acadêmico. O autor evoca temas gregos clássicos em poemas como "Narciso": "Narciso é filho de uma flor aquática/ e de um rio meândrico. É líquido/ cristalizado de forma precária/ e preciosa, trazendo o sigilo/ de sua origem no semblante vívido/ conquanto reflexivo..."

Cícero faz poesia lírica, erótica: "Qualquer poema bom provém do amor/ narcíseo..."; e rumina em torno de questões existenciais como no poema "Dilema": "O que muito me confunde/ é que no fundo de mim estou eu / e no fundo de mim estou eu./ No fundo/ sei que não sou sem fim/ e sou feito de um mundo imenso/ imerso num universo/ que não é feito de mim./ Mas mesmo isso é controverso/ se nos versos de um poema / perverso sai o reverso./ Disperso num tal dilema/ o certo é reconhecer:/ no fundo de mim / sou sem fundo."

Guardar nos apresenta o mundo do som, do sentido, da lógica, da sintaxe, da física, da metafísica. O poeta conhece sua instrumentação. Maneja a língua com maestria. Cícero utiliza a linguagem comum das ruas, e recupera uma voz ideal, capaz de alçar o universo poético. Ainda hoje pergunta-se qual o sentido da poesia. O sentido da poesia é a própria poesia. A poesia explica-se a si mesma. Talvez a arte poética nos conduza a uma tentativa de salvação do meio existencial. A poesia é revelação de um mundo sagrado, maldito, real, imaginário. Alcança a todos e ninguém. Inventa o próprio homem para que este se revela a si mesmo.

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guarda-se o que se quer guardar.

(Antônio Cícero)

Nota do Editor
Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no caderno "Idéias/Livros", do Jornal do Brasil, a 8 de março de 1997.

Para ir além





Pedro Maciel
Belo Horizonte, 9/2/2004

 

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