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Segunda-feira, 8/3/2004
Cultura às moscas
Luís Antônio Giron

Cenas justapostas dão conta da situação das instituições culturais do Brasil, públicas e privadas. A Fundação Vitae anuncia encerramento da distribuição das Bolsas Vitae de Artes, que ao longo dos últimos 16 anos patrocinaram centenas de projetos artísticos e pesquisas independentes de governo ou universidade. É um dado triste, pois a Vitae, entidade de direito privado sem fins lucrativos, consistia no último bastião de credibilidade e autonomia fora dos circuitos oficiais ou bancários (eu mesmo recebi uma bolsa da instituição e constatei a total insenção com que julgaram o projeto que apresentei). O fundo destinado a sustentar pesquisas e produtos artísticos secou. As últimas bolsas sairão neste ano, e ponto final. Só restará ao pesquisador ou ao artista se associar a um acadêmico e travestir o palco de cátedra. Quantos têm vivido assim ultimamente, de produzir teses sem sentido, sem objetivo além da obtenção de bolsas-sanduíche. Tem sambista doutor, sim senhor!

Corta para Gilberto Gil. Em pouco mais de um ano de administração, Gil cantou e resmungou muito, mas fez o que se esperava: coisa nenhuma. Contou com a simpatia da imprensa, que o perdoou de todos os deslizes, os tropeços e desafinações. A desculpa é a de sempre, e a que marcou a administração nula do antecessor de Gil, Francisco Weffort: não há verba, a dotação orçamentária para a pasta da Cultura não chega a 1% e assim nada é possível, a administração cultural vira refém do descaso do Executivo, parari parará... O Executivo são os outros. O gabinete de Gil no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro (o bom e velho prédio do MEC), vive vazio.

Não longe dali, vê-se a Biblioteca Nacional. Zoom através de uma janela do edifício. Este que é o maior tesouro brasileiro foi assumido pelo antiquário Pedro Corrêa do Lago. Ele assumiu o escritório neoclássico do quarto andar no prédio com boas intenções, apesar de o pessoal da biblioteca comentar a bocca chiusa que Gilberto Gil mandou uma raposa para gerir o galinheiro, já que Corrêa do Lago é dono de sebo e o acervo da biblioteca faz crescer o olho de qualquer bibliófilo. Claro que é uma observação maldosa. Dirigida por raposa ou cordeiro, o fato é que a BN está jogada às traças. Havia um projeto de informatização do conteúdo, mas virou apenas vitrine “moderna” para usuário pouco exigente se encantar. Os pesquisadores continuam a consultar as fichas centenárias porque sabem que o que vale na Biblioteca Nacional é o chamado “arquivo paralelo”, que não foi catalogado e muito menos informatizado. A página da Internet da instituição piorou nos últimos meses. Se antes era possível baixar um livro em Word, agora é preciso fazer download em PDF, que dificulta enormemente a leitura. Na administração da BN, tudo indica, continua a valer mais a aparência que a essência. Sim, sim, dinheiro falta, bons sentimentos abundam.

Travelling de volta ao prédio do MEC. Na Funarte, nada acontece. As publicações estão paradas desde o governo anterior e o desânimo é geral entre as pessoas que trabalham lá. Na gestão do escritor amazonense Márcio Souza, o movimento editorial da Funarte foi rico e lançaram-se vários livros de Márcio Souza e Francisco Weffort. O novo presidente da Funarte, o ator Antonio Grassi, não pode esperar tanto e, pelo jeito, não possui ambições literárias – o que pode ser uma benção para o contribuinte. Gil não tem necessidade de mamar no governo para lançar seus CDs – e sua mulher, Flora Gil, é reconhecida como gestora do patrimônio do músico. Ele teve um luxuoso álbum de fotografia lançado por ocasião de seu sexagésimo aniversário, sem pratocínio estatal. Gil não precisa. Mas Gil tampouco precisaria estar à frente de uma pasta para a qual não foi talhado. Parece estar ali mais para figurar e participar de excursões do que para administrar. OK, não há o que administrar, só do-ni antropológico, blablablá. Livro, alguém falou em livro? Não há política para isso. Os autores se submetem à sede que as editoras têm de literatura B ou auto-ajuda vendável. Entidades como a Câmara Brasileira do Livro e a Academia Brasileira de Letras se limitam a distribuir prêmios entre pares e promover eventos mundanos. É ultrajante para o público assistir à ascensão de vozes literárias que, num país sério, seriam arremetidas à fogueira do esquecimento.

Panorâmica na Bolsa de Valores do Rio, fusão com avenida Paulista com seus bancos e “institutos culturais”. A indefinição sorridente de Gil está provocando um impasse. O governo trancou o cofre. O Estado, via Petrobrás e Banco do Brasil, ainda é o provedor universal da maior parte das atividades de cultura no Brasil. As leis de incentivo fiscal, apesar de sua utilidade passada, não têm ajudado os cineastas e diretores de espetáculos. A produção cinematográfica empacou depois dos mega-sucessos de 2002 e 2003. As orquestras seguem na sua senda de ruínas popularescas, à exceção da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, bunker de virtuoses bem-pagos no meio da Cracolândia. Nem mesmo os bancos e empresas privadas estão interessados em manter o sustento da comunidade cultural. O jogo de interesses da iniciativa privada contém a liberdade dos artistas e manipula os produtos. Tudo, no fim das contas, vira presente para clientes. Com sorte, a cultura brasileira pode ser transformada em inofensivo brinde de fim de ano. Todos rezam para a conversão em prêmio.

Close no rosto do leitor diante do espelho. Não custa insistir em apontar um erro de raiz, o de que o brasileiro não sabe para que serve cultura porque não tem clareza do que seja “cultura”. O debate entre o que é público e privado terminou jogando areia nos olhos de uns e outros, ofuscando o problema fundamental, que subjaz a qualquer polêmica: cultura é vista por aqui como um adereço de carnaval, ou uma jóia a ser exibida em festa rica, um ex-voto de promessa eleitoral, um do-in indolor. A realidade é que a cultura se encontra numa situação miserável, seja lá qual idéia se alimente sobre o tema – manifestação popular, escada para social climbers, acumulação de conhecimento e artes ao longo da História, espírito absoluto, coisa de gênio ou mesmo bijuteria. Tudo já virou ultrapassado, até mesmo cobrar ação da área cultural, do governo e da iniciativa privada passou de moda. Cada um por si, ou, como dizem os Tribalistas, fé em Deus e pé na taba, submetendo a taba à liberdade do vazio. Sobe música. Que Gil volte ao gabinete e cante mais um reggae para o happy end geral da nação, aquele que começa assim: “Vamos fugir pra outro lugar, baby...”

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Bravo! de agosto de 2003.

Luís Antônio Giron
São Paulo, 8/3/2004

 

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