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Segunda-feira, 19/4/2004
Os anos 90 e o mini-gênio
Ana Maria Bahiana

Foi com enorme surpresa (e suspeita de uma estranha sincronicidade) que vi as palavras Vanity Fair no (logo onde!) suplemento "Ela", do Globo. A que se deveria o interesse, e por que agora?

Fiquei até bastante animada – consistente com sua boa safra, a VF de abril traz matéria de leitura obrigatória para todo mundo que está ou quer estar pautado para cobrir as próximas eleições presidenciais americanas: "Hack the Vote" (Pirateando o Voto, numa tradução bem livre), exposé do investigativo Michael Shnayerson sobre a super-sombria conexão entre Bush, senior e júnior, o partido republicano e as novas “urnas eletrônicas” que serão maioria nos postos eleitorais em novembro.

Matéria mais quente, no panorama internacional, não conheço: a perpetuação a todo custo da direita conservadora na Casa Branca, tal como encarnada pela dinastia Bush, e suas maquiavélicas maquinações cibernéticas é tema que tem impacto sobre todas as esferas, inclusive e principalmente a cultural. O anúncio de uma espécie de inverno nuclear do livre pensar.

A animação durou pouco: a matéria em questão (a do "Ela") referia-se ao livro Como fazer inimigos e alienar pessoas, do “jornalista” Tony Young, que a Record está lançando agora. A edição brasileira pode ser atual, num esquema jornalismo-de-agenda, mas o assunto é velho: no exterior, Young foi pauta em 2002, e o interesse em sua triste pessoa durou menos que o em torno da família Osbourne, inglesa como ele e certamente muito mais saborosa. Em julho de 2002 o (ótimo) site Bully decretou que Young era seu “idiota do mês”, e isso mais ou menos resume a trajetória do rapaz.

Young pertence a um tipo de colaborador da imprensa que floresce com grande vigor na Grã Bretanha – o diletante, em geral independentemente rico ou famoso-por-contágio (no caso, ele é filho do escritor e filósofo Michael Young), que se torna rapidamente célebre por colocar na mídia longas diatribes na primeira pessoa, narrando suas em geral perplexas observações sobre o mundo. Não apura, não comenta, não investiga, não pesquisa, entrevista mal e escreve sofrivelmente. Seu valor de consumo está em “fazer tipo”, criar um personagem, e dar muita, muita, muita opinião pessoal sobre quase tudo.

Vocês sabem do que estou falando? Isso foi muito moda na imprensa brasileira no começo dos anos 90. Um amigo cunhou a expressão “mini-gênio” para descrever esta colorida e descartável commodity da mídia.

Do outro lado do Atlântico, eu convivi com vários espécimes dessa raça, que, anualmente, batiam ponto nas edições especiais da revista Screen International em Cannes: eram todos muito parecidos, até fisicamente, e substituidos com assiduidade quando suas opiniões pessoais descabeladas eram suplantadas por um outro tipo, mais apetitoso. Numa antecipação de tendências futuras, muitos deles escreviam de graça – faziam questão apenas de que seus nomes saíssem em negrito, ao lado de um portrait em duas colunas (em geral de óculos escuros); e de que a revista pagasse suas contas nos bares.

Com tudo o que se possa dizer da imprensa americana (e é muito…), uma coisa é certa: ela não digere tipos assim com facilidade. Existe uma “ética da pedreira” na imprensa americana que é a antítese desse tipo de “jornalismo” emplumado. Não por acaso, o objetivo supremo, o santo Graal dessas figuras é “fazer a América” – ou, o que é mais freqüente, fracassar ruidosamente, culpando a tudo e a todos por sua má sina, na linha “mini-gênio incompreendido”.

O livro de Young, em resumo, é isso, apenas. Como-esses-brutos-da-Vanity-Fair-não-compreenderam-meu-talento. O jovem (nem tão jovem assim) ganhou 85 mil dólares durante um ano e produziu meras três mil palavras para justificar sua existência antes de ser despedido e escrever estas “memórias”.

Só espero, mesmo, que a moda não pegue.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no portal Comunique-se, o qual autorizou a repodução no Digestivo Cultural.

Ana Maria Bahiana
Los Angeles, 19/4/2004

 

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