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Segunda-feira, 3/9/2007
Leandro Carvalho
Julio Daio Borges


Leandro Carvalho em foto de Júlio Rocha

Leandro Carvalho é uma das maiores revelações da música brasileira contemporânea e – apesar do clichê – vem efetivamente se superando a cada nova realização. Leandro começou cedo, no violão, e – graças ao seu talento e a uma coincidência (por conta de um colega da escola) – estreou, como solista da OSESP, ainda sob a regência do saudoso maestro Eleazar de Carvalho. Hoje, aos 31 anos – nove CDs depois, como solista, arranjador e produtor – Leandro dirige e é regente principal da Orquestra de Câmara do Estado do Mato Grosso, que existe desde 2005 e que ele ajudou a criar.

Sempre mantendo a mesma serenidade e nunca cedendo ao canto da sereia do
mainstream, Leandro Carvalho já teve aulas com Turibio Santos no Rio, gravou com Baden Powell (e Fernando Faro), fez mestrado com Ariano Suassuna no Recife e concluiu seus estudos de regência na Holanda. Como pesquisador e intérprete, resgatou, em disco, as obras de João Pernambuco, João Pacífico e Levino Albano da Conceição. Em seu último registro como violonista – o álbum London Poem, de 2005 –, mergulhou no repertório anglófono de compositores como Villa-Lobos, Tom Jobim e Caetano Veloso – recebendo, pelo feito, elogios de Nelson Motta (entre outros).

Nesta Entrevista, Leandro Carvalho conta como era descobrir os tesouros da “sala proibida” do maestro Eleazar de Carvalho; conta, também, como conquistou um a princípio desconfiado Turibio Santos; e relembra os bastidores do registro com Baden, sob a direção de Faro, para um CD de tiragem limitada (que permanece quase inédito). Evoca, claro, a convivência com Ariano Suassuna, fala das dificuldades da vida na Holanda e passa, ainda, pelo vitorioso projeto Ciranda, antes de chegar à sua grande realização, a Orquestra de Câmara do Estado do Mato Grosso. – JDB


Leandro, eu gostaria de começar pelo começo – porque eu acho que quem te vê agora, dirigindo e regendo uma orquestra, não necessariamente sabe de tudo o que você andou fazendo, até chegar onde chegou. Você me contou, uma vez, que o seu primeiro mestre foi o Turibio Santos. Parece que era amigo do seu pai – que percebeu, logo, o seu talento para a música e te encaminhou para ele... Como é essa história? Tem a ver com a sua formação em música erudita na Faculdade Santa Marcelina? Aliás, como foram seus estudos lá, sob orientação do mesmo Turibio?

É verdade. Meu primeiro mestre foi o Turibio. Cheguei até ele pelas mãos do maestro Eleazar de Carvalho. Irônico porque, naquela época, eu nunca poderia imaginar que a regência me esperava. Meus pais foram amigos do casal Eleazar e Sonia Muniz (pianista e segunda esposa do Maestro). Eu e Serguei, filho temporão do casal, estudamos na mesma sala da Escola Morumbi, em São Paulo, até a terceira série. Comemoramos muitos aniversários juntos, pois apenas nove dias nos separam desde o nascimento. Cresci vendo o Eleazar estudar em sua biblioteca “proibida”! E justamente, por isso, nosso maior prazer era burlar as proibições para entrar naquele mundo mágico de partituras, vinis, fotos e um cheiro de um perfume inconfundível que até hoje surge em minha recordação.

Quando tinha 14 anos, o Eleazar me convidou para ser solista da OSESP, sob sua regência, num concerto especial a ser realizado no Memorial da América Latina. Tocamos algumas adaptações de Bach para violão e cordas que o próprio Eleazar fez. Depois disso, o Eleazar pediu ao amigo Turibio que me ouvisse. Naquela altura, o Turibio dava pouquíssimas aulas particulares e abriu uma exceção. Fui com meu pai para o Rio de Janeiro para tocar para o Turibio. Chegamos em seu apartamento, era uma tarde bonita, céu azul. Meu pai foi logo para a varanda e começou a reparar nos pássaros e nas plantas, enquanto eu reparava no Turibio e ele em mim. Depois de algumas músicas o Turibio propôs que eu aprendesse uma série de exercícios técnicos e um longo repertório para o mês seguinte. Após essa primeira etapa, ele daria o veredicto. Trinta dias depois, fui sozinho ao Rio com os cinco prelúdios e o Choro nº 1, de Villa-Lobos, algumas danças da Suíte em mi menor para alaúde, de Bach, mais uma tonelada de exercícios técnicos, tudo de cor! O Turibio gostou e foi logo dizendo: “Bom, então para o próximo mês...”. E aí começou uma longa amizade, com muito respeito e admiração, concertos, e três discos em parceria, com destaque para O Guarani que gravamos em duo em 1999.

Você tem alguma opinião sobre os cursos superiores de música no Brasil? Desde a sua época, acha que mudou muito? Pergunto tudo isso porque imagino que um Leitor que te olha agora e não sabe por onde começar (se quiser trilhar uma carreira como a sua)... A tradição, aqui no Digestivo, é fazer esta pergunta por último – mas eu acho que seria interessante misturá-la com essa sua primeira formação como violonista etc.

Existem cursos superiores em música muito bons, em várias capitais brasileiras. No entanto, especialmente na música, muito depende da pessoa. O músico tem que “correr atrás”, buscar a informação e a orientação certa para o momento especifico que está vivendo. Fiz a graduação na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, uma faculdade pequena, particular, com excelentes professores. Uma das maiores bagagens que trago desta época é a amizade com músicos profissionais que conheci na qualidade de aluno (hoje são colegas de trabalho). Destaco o compositor, violonista e arranjador Ítalo Perón, que foi meu professor de “Harmonia” na faculdade e hoje é um grande parceiro.

No mais, sempre acreditei na formação mais ampla do artista, e na música como uma poderosa ferramenta de comunicação e transformação. Ela deve vir de um indivíduo que tem algo a dizer, a acrescentar. Por isso, sempre busquei uma formação abrangente e isso me levou a seguir meus estudos em “História Social” na Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do mestre Ariano Suassuna, que também abriu uma exceção para me receber como “orientando”. Foram três anos de intensa convivência que contribuíram muito para formar minhas idéias e minha personalidade artística. Depois disso, fui para a Holanda estudar regência orquestral e me dedicar ao estudo do repertório sinfônico dos grandes mestres da música universal.

E você sempre foi um violonista prodígio, começou cedo, mas sempre correu atrás de sólida formação (conforme falamos), e de ter ricas experiências também. Como foi ter logo aula com o Turibio e, de repente, na sua estréia em estúdio, gravar com o lendário Baden Powell – mexeu muito com a sua cabeça? Como é que você consegue ter tanta serenidade para segurar essas e outras ondas? Porque a gente vê – e a gente até já conversou sobre isso – um pessoalzinho jovem fritando as cordas do violão, descendo a rua Augusta a 120 por hora, fazendo um monte de firulas, mas achando que a História da Música começou ontem... Por que você acha que foi diferente no seu caso? (E voltando ao Baden, por onde anda aquela gravação? Existe alguma chance de, um dia, conseguirmos ouvi-la em CD?) Na nossa primeira conversa mais longa, você me contou que, ao mesmo tempo em que tocava, foi ler os pensadores do Brasil como Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre... Foi inspiração direta do Villa-Lobos – que sempre teve essa ambição totalizante com relação ao nosso País?

A experiência com o Baden foi muito especial. Foi numa época em que estava mergulhado na obra do João Pernambuco, morando em Recife, trabalhando com Ariano, e gravando meus discos. Passando por São Paulo, encontrei o [Fernando] Faro, na TV Cultura, que comentou da gravação de um CD totalmente dedicado a João Pernambuco pelo Baden (tendo Faro como produtor). Na hora, ele me convidou para fazer uma participação em uma das faixas. No primeiro dia de gravação, ele me ligou em Recife e perguntou: “Cadê você, baixo?”. No dia seguinte, eu estava dentro do estúdio com o Baden para a gravação da primeira faixa. Quando nos encontramos pela primeira vez, tivemos a sensação de já nos conhecermos. Ficamos muito “à vontade” um com o outro, e logo começamos a tocar. A coisa fluiu. Gravamos uma, depois outra, depois outra e, depois de duas semanas, tínhamos feito o disco todo em duo. O Baden me ensinou muita coisa com o olhar. Lembro da panela com água quente que ele pedia para a cozinha do Sesc Vila Mariana (onde gravamos o CD), para esquentar suas mãos. Esse CD ficou belíssimo! Foi feita uma tiragem inicial de apenas mil cópias, que se esgotaram no dia do lançamento, e só. O Sesc quer muito relançar esse CD, mas não está conseguindo chegar a um acordo comercial com a família. Eu e toda a torcida do Corinthians (do Flamengo, do Palmeiras, etc.) estamos na expectativa para que esta história tenha um desfecho digno.

Agora minha ida para Pernambuco se deu numa atmosfera idílica. Eu estava em busca do Brasil de Villa-Lobos. Achava que ainda existia. Queria me aproximar da cultura popular nordestina. Quando fui lançar meu primeiro CD João Pernambuco o Poeta do Violão, em Recife, em 1997, conheci Ariano e surgiu a oportunidade de continuar meu trabalho sob sua orientação. Conhecer a literatura “básica” sobre o Brasil ajudou muito a me adaptar ao ambiente acadêmico das ciências humanas. O porquê do meu interesse por isso deve ter a ver com meu pai, Turibio, João Pacifico e as pessoas com as quais convivi desde criança.

Você me contou, também, que tinha ótimas conversas com o Ariano na casa dele, mas que tinha, igualmente, boas discussões sobre o Movimento Armorial na música, que ele incentiva etc. Recentemente, no ano passado, você teve um reencontro com ele, regendo já a sua Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso, incrementada com as tais violas-de-cocho... Você escreve, no programa da Orquestra de 2007, que ele ficou emocionado de ver a sua realização e eu imagino que fez todo o sentido na cabeça dele: você misturando, como dizem, o “erudito” e o “popular”... Eu queria que você falasse do Ariano, dessa convivência sua com ele, e entrasse também, um pouco, na eterna questão que assombra qualquer artista (ou criador) brasileiro de qualquer espécie: a ambição maior de realizar, digamos, “alta cultura” – que deve ser sempre temperada com algum apelo mais amplo, muitas vezes em termos de público (porque nossa elite é muito pequena, nossa população deseducada etc. e tal). Como é que você solucionou esse enigma na sua cabeça (se é que você solucionou)? O Ariano, por exemplo, tem a “fórmula” dele – você tem a sua?

Para nós músicos, existe pouca distinção entre música “isso” ou música “aquilo”. Popular, erudita, brasileira... são conceitos que se rarefazem à medida que nos aprofundamos no estudo da música (ou de outras linguagens). No entanto, na hora de organizar uma temporada de concertos e estabelecer as diretrizes artísticas de uma orquestra, é preciso levar em consideração uma série de fatores. Em Mato Grosso, por exemplo, onde trabalho atualmente como diretor artístico e regente principal da Orquestra do Estado, definimos uma nova estrutura para os concertos: em vez do tradicional, ou seja, primeira e segunda parte, com aproximadamente 50 minutos cada, com um intervalo de 20 minutos, decidimos fazer apenas uma parte de 70 minutos, começando sempre com uma peça “séria”, do repertório universal (agora em agosto faremos o Divertimento do Béla Bartók). Após este primeiro momento de muita concentração, por parte da orquestra e do público, e de silêncio absoluto, entram as violas-de-cocho, e a percussão – e partimos para outro repertório, com peças mais curtas baseadas na cultura popular brasileira e sul-americana. O resultado é um público anual, apenas em Mato Grosso, em torno de 150.000 pessoas.

Em 2006, houve uma coincidência incrível. Ariano faria uma aula-espetáculo em Cuiabá, bem no dia do concerto da Orquestra. Preparamos uma homenagem a ele, tocamos música armorial e rasqueado mato-grossense (ritmo regional). Ele não conhecia o gênero e ficou impressionado. A qualidade técnica da Orquestra, com músicos extraordinários de vários países do mundo, também o impressionou. Ele notou que suas idéias estão dando frutos em várias partes do Brasil. Criar uma “arte erudita” baseada na cultura popular tem sido uma busca antiga em vários países do mundo...

Saindo um pouco do Brasil, eu queria falar da sua temporada na Holanda, quando você fez pós-graduação em regência orquestral no Conservatório de Utrecht... Como foi esse tempo longe do seu país? Imagino que você tenha outra “tese de mestrado” sobre as diferenças no ensino superior de música aqui e lá. Você, apesar da distância, fez grandes amigos, como o violoncelista David Gardner (hoje, com você, em Cuiabá e na Orquestra)... Qual a importância, portanto, de uma formação e de uma vivência em grandes centros, como a Europa, para um músico brasileiro? Traço, de novo, um paralelo com o imenso Villa-Lobos, que construiu uma ponte, projetando a música do Brasil lá, até hoje... Eu penso que esse tempo na Holanda te marcou profundamente, porque você manteve o sonho da orquestra na sua cabeça – e hoje te temos dirigindo e regendo uma, graças a ele, não é mesmo? Há alguns anos, eu via você indo tão longe já com o violão brasileiro, mas via, ao mesmo tempo, que você não sossegava, tinha todo esse potencial “orquestral” represado dentro de você... Resumindo a ópera: acha que falta hoje esse tipo de ambição – à la Villa-Lobos – na música brasileira?

O período na Holanda foi muito enriquecedor. Foi muito difícil também. A adaptação foi traumática. A Holanda não é o país que pensamos. Eles vendem uma imagem que não corresponde à realidade. Ou melhor, vendem uma imagem turística de um país moderno, liberal, dinâmico e tolerante. Depois de algum tempo vivendo no país, com passaporte europeu, vi que “o buraco é mais embaixo”. Muitas universidades e conservatórios europeus de destaque estão com salas vazias por falta de alunos. Em música, a situação é grave. É por isso que estas instituições fazem promoções no exterior para atrair talentos.

Além de estudar regência, continuei me dedicado à carreira de violonista. Como meus CDs vendem razoavelmente bem na Europa, fui procurado por alguns empresários e acabei fazendo concertos em locais de grande prestigio como o Royal Festival Hall, em Londres. Lembro de receber convites para concertos em 2007. O problema é que estávamos em 2002! (Fiquei chocado com isso.)

Nesta época, comecei um trabalho com o quinteto de cordas inglês Britton String Quintet, formado por jovens britânicos extremamente talentosos. Gravamos o disco London Poem, fizemos muitas turnês no Brasil e no Reino Unido. Um ano após o encerramento da última turnê: eu estava à frente da Orquestra do Estado de Mato Grosso; o violoncelista David Gardner aceitou o desafio de levantar a Orquestra comigo, e também se mudou para Cuiabá para liderar o naipe de violoncelos; o violista Thomas Beer estava à frente do naipe de violas da Orquestra The Halle, na Inglaterra; e a violinista Rebecca Allan – meio inglesa, meio alemã – havia ingressado na Filarmônica de Berlim. O mundo dá muitas voltas...

Você poderia se conformar em ser um virtuose do violão, tendo tocado com os mestres; você poderia ainda se conformar tendo ido fazer regência orquestral na Europa (e poderia ter ficado por lá); mas você voltou e, em vez de simplesmente gravar CDs um atrás do outro (como todo mundo hoje grava), você foi se meter com projetos de pesquisa e de resgate, como nos discos dedicados a João Pernambuco, João Pacífico e Levino Albano da Conceição – como foi isso, Leandro? Eu lembro de você, nessa fase, produzindo esses CDs, levantando patrocínios, mexendo com leis de incentivo, depois produzindo os respectivos shows, ciceroneando os músicos, recebendo todo mundo no camarim (logo depois da apresentação), contatando pessoalmente a imprensa e, por último – no final da cadeia produtiva –, vendendo o CD... Eu repito sempre uma frase do Spinoza: “Intelecto é vontade”. Você concorda?

É isso mesmo. Tudo depende daquilo que você se predispõe a fazer. É preciso que mantenhamos nosso compromisso com o “melhor”. Determinação e persistência são palavras que ouvimos e falamos com freqüência, mas na prática... Ufa! É outra história. Acho que o artista hoje precisa encarar com naturalidade a idéia de voltar-se às funções administrativas. Na verdade, isso não é de hoje. Sabemos da relação difícil entre mecenas e artistas a partir do século XVIII, ou que Stravinski passava grande parte do seu dia escrevendo carta para colaboradores. O problema é que isso só se aprende na prática. É como estudar regência: você passa anos aprendendo a nadar no deserto e um belo dia alguém te joga no meio do oceano – e você tem que sair nadando.

É mais ou menos como aquele filho de empresário bem-sucedido que começa trabalhando na empresa do pai. Devagar ele vai percorrendo todas as funções e passa a conhecer com profundidade o funcionamento da máquina. No inicio, com raras exceções, temos que conhecer os processos. E isso não faz mal a ninguém. É só ter interesse, curiosidade e disponibilidade espiritual. Mesmo que depois de um tempo você não tenha que se dedicar a coisas que não são diretamente relacionadas à sua arte, conhecer os mecanismos facilita a realização dos “empreendimentos”. Na minha trajetória, já trabalhei em todos os setores, incluindo um longo período no Governo do Estado de Mato Grosso. Depois disso, aprendi como funcionam certas coisas que antes me deixavam de cabelo em pé. Tudo isso não foi tempo perdido. Foi um investimento que será recuperado em breve...


Regendo a Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso

Dentre os seus discos – eu sei que são nove –, eu gostaria de falar, mais especificamente, sobre o London Poem (2004), resgatando composições de autores brasileiros, como Tom Jobim e Villa-Lobos, na Inglaterra e em outros ambientes anglófonos... Lembro, mais uma vez, de você me falando que andava pensando no apelo forte, ainda hoje, da canção. Você – uma das revelações da nossa música instrumental – de repente se preocupava em, quem sabe, fazer alguma concessão à forma-canção, para, possivelmente, aumentar a comunicação com o público. Aí, coincidentemente, o London Poem repercutiu, talvez por causa do mesmo Tom Jobim – que eu acho a principal ponte entre o erudito e o popular na nossa música (a palavra cantada e o som orquestral) –, indo parar, inclusive, no programa do Nelson Motta, na rádio Eldorado... Logo em seguida, não sei se por coincidência, ou se pela presença do Britton Quintet (de novo, do David Gardner), nas apresentações desse disco, você monta a Orquestra no Mato Grosso. Eu olho os seus CDs até 2005 e vejo, neles, um ciclo, que parece que você encerra realizando todas essas possibilidades – desde o instrumental de resgate até os arranjos para a velha forma-canção. Era isso mesmo? O que você concluiu nesse percurso? E a canção: “morre” ou ainda é vital para nós? Queria saber sua opinião...

Sempre inclui canções em meus discos, desde o primeiro João Pernambuco – O Poeta do Violão, em que gravei “Luar do Sertão”, “Caboca di Caxangá”, e outras, até o London Poem, com “You don’t know me” e a faixa titulo do CD, composta por Villa-Lobos para voz e orquestra, em homenagem ao povo britânico... Foi a primeira gravação desta peça. Fiz isso porque os compositores em questão faziam justamente canções. Mais uma vez, não vejo muito esta distinção de “forma”. Tudo é canção! Mesmo quando não existe a presença do cantor... Agora, na programação da Orquestra do Estado de Mato Grosso, sempre convidamos cantores para dividir a programação com a Orquestra. Continuo combinando canções “com” e “sem” voz.

Já falar do cenário contemporâneo é mais complicado... Parece que as coisas mais criativas sendo feitas no momento passam longe dos veículos de comunicação. É preciso desenvolver um faro canino para chegar até os criadores em atividade. Se fizermos uma avaliação com base no que vem da televisão (aberta e fechada), e no rádio, o resultado é catastrófico. Imagine que a maioria dos brasileiros só tem acesso a isso...

Queria falar, um pouco ainda, do seu período pré-Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso. Logo que você se mudou para Cuiabá, ou um pouquinho depois, você me contou do trabalho que estava tendo lá, montando uma ONG, que seria o embrião da Orquestra (acredito). Lembro, ainda desse período, do seu Projeto Ciranda... E lembro, para completar, da sua rápida passagem pela Secretaria de Cultura do Estado. Esses tópicos se misturam com uma constatação sua (me corrija se eu estiver errado) de que desenvolver projetos culturais fora dos grandes centros – por exemplo, fora do eixo Rio-São Paulo – pode ser mais difícil, às vezes, em termos de mentalidade (inicialmente), mas pode ser mais interessante, muitas vezes, em termos de “concorrência” – essa palavra nada cultural, mas que indica que estados como o Rio de Janeiro e São Paulo podem estar saturados... Faz sentido isso que eu estou falando? E fez sentido dentro da sua trajetória (da sua mudança para o Mato Grosso)? Conte também, um pouco, desse momento, na iminência da Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso... Você sempre soube que iria chegar lá?

Nos últimos meses tenho viajado para vários estados brasileiros para fazer palestras com essa temática, ou seja, para dizer às pessoas que em estados “periféricos”, como Mato Grosso, é possível desenvolver ações consistentes. Logo que cheguei à Mato Grosso criamos o Projeto Ciranda – Música e Cidadania, uma instituição sem fins lucrativos que utiliza a música como ferramenta de inclusão social. O Projeto cresceu e conquistou seu espaço nestes últimos quatro anos. Centenas de jovens já passaram pelo Projeto e hoje são pessoas melhores, mesmo que não tenham se tornado músicos profissionais. O Projeto tem uma sede ampla com biblioteca, estúdio de gravação e um palco construído pelos próprios bolsistas (como chamamos os meninos que ganham bolsa de estudo). A Orquestra de Sopros do Projeto, que reúne os melhores alunos e os professores, recebeu em 2006 grandes instrumentistas da música brasileira como solistas convidados, como Carlos Malta (RJ), Radegundis Feitosa (PB), Daniel D’Alcantara (SP) e Sérgio Galvão (DF). Eles ficaram impressionados com o nível dos alunos e fizeram concertos memoráveis. O Malta chegou até a compor uma peça para nós, Ciranda Mundo, que virou nosso hino.

No Governo, trabalhei como assessor do Secretário de Estado de Cultura. Participei da formulação da política pública para a área cultural que se queria implantar no inicio do primeiro mandato do governador Blairo Maggi. Sempre deixei claro que meu objetivo maior era a criação da Orquestra e isso me custou um ano de movimentações internas para, apenas em 2005, lançarmos o primeiro edital de seleção de músicos e fundarmos os alicerces da Orquestra. É preciso olhar para além das nuvens e acreditar que vai dar certo.

Em 2004, percebi que Mato Grosso estava começando a ser administrado por pessoas sérias e bem intencionadas. Uma das grandes qualidades do atual governo é identificar pessoas com potencial e dar a elas a oportunidade de mostrar do que são capazes. Tudo isso só foi possível graças à sensibilidade de homens públicos compromissados com o desenvolvimento humano, e graças ao patrocínio de grandes empresas que confiaram em nossa proposta e nos deram apoio irrestrito nestes últimos anos. Se continuarmos assim, teremos uma das melhores orquestras do Brasil em pouco tempo.

E, afinal, como é criar uma Orquestra como a sua? Como é que se faz? No programa deste ano, eu li que vocês querem que a Orquestra seja uma “organização social”, como é a OSESP hoje – o que isso significa? Como foi, por exemplo, a seleção dos músicos? Assim como a OSESP, vocês abriram concurso? Ou você, mais ou menos, tinha a Orquestra já na sua cabeça? Enfim, como é o seu dia-a-dia, como regente principal e diretor artístico? Posso perguntar se houve alguma inspiração no John Neschling e no Roberto Minczuk (com quem você fez até master classes)?

Realmente a estrutura de uma orquestra é uma coisa complexa e pode ser comparada à estrutura de grandes corporações. Mesmo numa orquestra de câmara, como é nosso caso, você tem um corpo de funcionários em torno de cinqüenta pessoas, dentre músicos, produtores, administradores, arquivista, montador, além do serviço terceirizado de contabilidade e comunicação. Toda a complexidade das relações de trabalho está no dia-a-dia da Orquestra. É preciso também saber se relacionar com os patrocinadores (cada empresa tem uma maneira diferente de trabalhar e espera resultados específicos para o investimento realizado), e com o Governo Estadual e Federal. As relações políticas também fazem parte. É preciso agüentar muita pressão para garantir que a “carruagem” não se assuste com o “ladrar dos cães”. A Orquestra tem o Governo do Estado na base de sua sustentação e as empresas Votorantim, Pantanal Energia, ADM, Nortox e Bimetal, como patrocinadoras. Além disso, várias outras empresas nos dão apoio em forma de serviços, com destaque para a Localiza e para o Sesc Mato Grosso.

Em 5 de julho deste ano, foi publicado o decreto governamental reconhecendo a Orquestra do Estado como OS – Organização Social da Cultura. Desta forma, o relacionamento da Orquestra com o Estado regula-se através de um “contrato de gestão”, dando mais segurança e sustentabilidade para o desenvolvimento dos trabalhos. Vejo isso como uma importante conquista da sociedade. É para ela que trabalhamos! Os maestros e os músicos passam, mas a Orquestra continua. É importante ganhar força para resistir às transições políticas.

Sobre as referências, acredito que a estrutura administrativa criada pelo maestro John Neschling para a OSESP tornou-se um paradigma para as orquestras brasileiras. Ele e sua equipe souberam escolher os melhores caminhos e conduzir o processo de consolidação da Orquestra com muita habilidade. Tenho no maestro Minczuk uma forte referência musical. Admiro seu talento como músico e torço para que a reestruturação da OSB (Orquestra Sinfônica Brasileira) seja bem sucedida. Aprendi muito com ele nos Festivais de Inverno de Campos do Jordão.

Uma das coisas mais notáveis da Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso é que vocês conseguiram o feito quase impossível de ser musicalmente rigorosos e, ainda assim, atrair e emocionar grandes platéias. Vocês ao mesmo tempo em que participam do celebrado Festival Internacional de Música Renascentista y Barroca Americana – Misiones de Chiquitos, na Bolívia, têm séries de concertos gratuitas (Populares), e para formação e educação do público em escolas (Didáticas), sem falar nos concertos Oficiais e nos Especiais – serão mais de cem em 2007, incluindo as turnês, não é mesmo? No Itaú Cultural, agora, eu entendi tudo: vocês passaram de Villa-Lobos a Camargo Guarnieri para a viola caipira e nós, na assistência, nem sentimos a transição... Acha que esse é um dos grandes “segredos” da Orquestra – fazer uma orquestra “pra todo mundo” (desde leigos em música até entendidos no assunto)? Aliás, até onde a Orquestra pode chegar? Ou melhor, até onde vai o projeto de vocês?

A Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso caminha para ser uma das melhores orquestras do Brasil (repito). Parece uma afirmação pretensiosa, mas essa é a vontade dos músicos e do público da Orquestra. E não apenas “do maestro”. Estruturamos o trabalho da Orquestra com foco na democratização do acesso à cultura. Ressalto que este direcionamento não se dá em detrimento da qualidade técnica e artística ou da seleção de um repertório interessante. Analisando o comportamento das orquestras no Brasil, e observando atentamente a “ascensão e queda” de grandes orquestras européias, percebi que muita coisa estava faltando. Era preciso se libertar do convencionalismo retrógrado das salas de concerto. Encontramos em Mato Grosso um ambiente propício para experimentar uma proposta diferente. Após três anos de trabalho, levamos ao coração de São Paulo e apresentamos para um público habituado a freqüentar salas de concerto e ver grandes orquestras. O resultado foi ótimo. Acredito que o futuro, ou melhor, a sobrevivência da música “clássica” depende da reformulação radical de conceitos por parte de maestros e administradores. Os patrocinadores já têm outra cabeça e vão procurar orquestras que têm o foco no homem comum e não necessariamente naquela meia dúzia de freqüentadores de “nariz empinado” das salas de concerto... Mais uma vez, o foco deve estar na descentralização e na democratização.

Sobre nossa programação artística, além de buscar um repertório criativo, que apresente para as pessoas novos compositores, nossa temporada fomenta o encontro do universo da música clássica, principalmente aquela de tradição européia, com a “cultura popular” brasileira e, em especial, sul-americana. Por exemplo, em março, apresentamos a História do Soldado, de Ígor Stravinski, juntamente com um belo ciclo de canções, arranjadas para cordas, violas-de-cocho e voz, de Camargo Guarnieri. Ou mesmo o repertório apresentado no Itaú Cultural, que começou com a Bachianas Brasileiras nº 9, passou pelo rasqueado mato-grossense, e terminou com Roberto Corrêa, tocando sua viola caipira, na Araponga Isprivitada, uma belíssima peça de sua autoria, também arranjada especialmente para nossa Orquestra. Existem momentos, ao longo do ano, em que a Orquestra mergulha no repertório tradicional, como em novembro próximo, quando faremos a Sinfonia nº 40 e a Sinfonia Concertante, num programa todo dedicado a Mozart...

Estamos muito honrados com o patrocínio de empresas exemplares, líderes nos seus setores, que encontram em Mato Grosso um terreno fértil (também) na área da educação e cultura para seus investimentos. Elas encontram uma parceria séria por parte do poder público, o Governo do Estado, que tem como autoridade máxima um empresário que respeita contratos e valoriza iniciativas que tragam recursos para o Estado. O Governador Blairo Maggi teve a sensibilidade e a ousadia para identificar a enorme lacuna do Estado nesta área, criou a Orquestra em 2005, e tem dado todo o suporte necessário para que ela se consolide como uma instituição pública. É precioso ter em mente que muitas orquestras brasileiras já foram criadas há mais de 50, 60 anos. A mais antiga orquestra norte-americana, New York Philharmonic, foi criada em 1842... Uma orquestra deve ser vista como um patrimônio da população, algo que traga orgulho e se relacione diretamente com os valores da comunidade. Os maestros passam, os músicos passam, os governantes mudam, mas, de geração em geração, a orquestra atende à população e preserva valores fundamentais para aquela sociedade.

Eu sei que você está correndo, sempre, de uma coisa pra outra... Mas eu gostaria de saber com que ainda sonha o músico Leandro Carvalho. Como está o violão, por exemplo; em stand-by? Você imaginava que fosse conquistar tantas coisas ao mesmo tempo? Leandro, além da música agora (se é que podemos falar assim), algum conselho para a vida? Esta é uma pergunta quase filosófica já... O mundo tem sido bom pra você, tem te concedido muitas coisas, tem te permitido realizá-las, mas qual é a sua avaliação? Voltando à música, você sente que encontra “eco” – até no mundo – para o que está fazendo? A resposta crítica, por exemplo, tem sido satisfatória?

O instrumento ficou, realmente, em segundo plano. No entanto, tenho feito mais música do que nunca, de forma diferente. Fazer música com a Orquestra do Estado de Mato Grosso tem sido uma experiência muito enriquecedora, tanto pelo talento excepcional dos músicos, como pela atmosfera de amizade e criatividade que existe em nosso dia-a-dia. Em agosto último, a TV Cultura levou ao ar o DVD que gravei dentro do Rumos, do Itaú Cultural... Novas demandas de trabalho aparecem nestas ocasiões e a maioria não poderá ser atendida (infelizmente)... Quando me vejo, ou quando ouço o som do violão, sinto obviamente saudade.

Sobre a vida, me considero uma pessoa privilegiada pelo simples fato de poder viver fazendo o que eu gosto... De verdade, sinto-me tranqüilo, com a ansiedade controlada, com a cabeça na família, em minha mulher e em nossos planos de ampliação do núcleo (filhos sob encomenda) e na música que faço. As coisas vão acontecendo na hora certa. Estou de bem com o mundo, partindo do pressuposto de que as coisas estão certas. Uma energia positiva se instala e nos ajuda a suportar as pressões. Acredito na vida, foco minha atenção no presente, no trabalho e deixo as coisas acontecerem. Já passei por muitas coisas, tenho minha vaidade e meu ego bem colocados, tenho muitas horas de vôo em direção à construção de mim mesmo. Isso contribui e faz com que o tempo que foi investido no início seja recompensado lá na frente, com uma vida mais estável e um ritmo de produção constante. A vantagem dos maestros é que eles ficam bons com o tempo (até mesmo para poderem ser chamados de “maestros” e merecerem esta designação). Tenho 31 anos e mesmo com uma boa quilometragem, sei que estou começando a carreira de regente. Os planos para o futuro se resumem a continuar trabalhando com seriedade e manter o compromisso com minhas idéias e com meu país. O que virá daí, abraçarei, e aceitarei com alegria.

Para ir além
Leandro Carvalho
Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso

Julio Daio Borges
São Paulo, 3/9/2007

 

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