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Segunda-feira, 1/9/2008
Heloisa Fischer
Julio Daio Borges


Heloisa Fischer em foto de Leonardo Aversa

Heloisa Fischer é criadora do Anuário VivaMúsica!, que completa 10 anos em 2008, e que deu origem a outros projetos como a Agenda VivaMúsica!, o Portal VivaMúsica! e, mais recentemente, o Instituo VivaMúsica!. Além de comandar uma "agência privada de divulgação musical, com produtos em várias mídias", como ela mesma define, Heloisa é comentarista de música clássica das rádios CBN e Mec FM do Rio, e apresenta, ainda, o programa Clássicos VivaMúsica!, a bordo dos vôos da TAM.

Nesta Entrevista, Heloisa Fischer conta como foi começar as atividades relacionadas à marca VivaMúsica!, desde uma revista mensal, em 1994, quando tinha 27 anos, até o dia-a-dia do
Anuário hoje, passando pela participação em projetos paralelos (como um "que pretende colocar, de alguma forma, música clássica no ambiente de clubes noturnos").

Heloisa revela, ainda, um interesse vasto por música em geral ("de guitarrada paraense a
flamenco espanhol, de hip-hop mexicano a folk irlandês") e se inspira numa frase de Lauro Machado Coelho para conquistar novos públicos: "Para se gostar de música clássica é preciso somente ter duas orelhas e um coração no meio". Elogia outros profissionais da área, como o maestro John Neschling ("A pessoa que comanda sempre deixa sua marca"), e oferece sábios conselhos aos iniciantes ("Eu não toco nem canto, mas sempre me movi com desenvoltura!"). — JDB

1. Heloisa, para variar, eu queria começar do começo. Por ocasião do lançamento da edição comemorativa de dez anos do Anuário VivaMúsica!, li que você está nessa área, de música clássica, como jornalista, desde 1994. Também fiquei sabendo que sua iniciativa para lançar a revista mensal (que deu origem ao Anuário) VivaMúsica! foi o fechamento da Opus 90 FM, aí no Rio, que deixou aproximadamente 100 mil ouvintes órfãos. Você entrou no ramo de publicações, como empreendedora, mas nunca perdeu a ligação com o rádio, desde a época da coordenação da Opus 90 até agora, na CBN e no canal clássico da TAM, passando pela Cultura FM, onde eu te conheci. Enfim, eu queria saber das suas origens. Quando entrou para o jornalismo, já sabia que iria desbravar essa seara da música erudita? Como a história do projeto VivaMúsica! mostra, não havia periódicos especializados na época da sua estréia, então você seguiu para o rádio. Sua formação vem dessa mídia? O rádio continua sendo "uma escola" (como dizem)? O salto da coordenadora de uma FM para a diretoria de uma publicação deve ter sido enorme, não? Afinal, como foi a gênese do VivaMúsica!?

Sempre gostei de música, desde a infância. Meu universo inicial era a música popular, mas sempre em um espectro bem aberto. Nunca tive preconceitos musicais. Continuo assim, gostando de ouvir tudo, de guitarrada paraense a flamenco espanhol, de música sinfônica a repente nordestino, de hip-hop mexicano a folk irlandês, de Sylvia Telles a compositores clássicos contemporâneos. Meus ouvidos estão sempre abertos a experiências novas: posso até não gostar da música, mas dou a chance de ela ser ouvida.

Também sempre gostei muito de escrever. Achava que minha vida profissional seria lidar, de alguma forma, com a língua portuguesa (hoje em dia fico especialmente feliz que o professor Pasquale Cipro Neto seja meu ouvinte na rádio CBN!). Cheguei a fazer vestibular para Letras, quando fui "treineira" no 2º ano colegial, mas, na hora H, acabei optando mesmo pelo curso de Comunicação Social.

O rádio apareceu logo no início da faculdade. Eu era estudante do 4ª período quando surgiu a possibilidade de ser contratada como redatora na Cidade FM, emissora de rádio do Sistema Jornal do Brasil, onde eu havia recém iniciado um estágio. Da Cidade, passei para outra emissora — a redação da extinta Rádio JB AM, de formato all news, a CBN da época — e depois fui para o Sistema Globo de Rádio, onde fiquei cinco anos e exerci várias funções. Durante este período, sempre trabalhei com música, mas nunca a clássica. Meu último emprego foi como coordenadora de programação da Rádio Globo FM do Rio de Janeiro. Fui demitida de lá em fevereiro de 1993, e, um mês depois, surgiu o convite para coordenar a Opus 90 FM, uma rádio especializada que já funcionava no Rio e cujo dono se afastaria para tocar outros empreendimentos. Ele me chamou pela experiência que eu tinha em coordenar equipes em rádio, não por expertise em clássico — uma porta que eu ainda não havia aberto. Fiquei um ano lá coordenando a programação e descobri o mundo da música clássica, com toda sua riqueza estética e jornalística. Passado pouco mais de um ano, a rádio foi vendida e a programação de clássicos saiu do ar. Foi então que comecei o projeto de VivaMúsica!.

Era 1994, eu tinha 27 anos. Senti que havia ali uma possibilidade muito interessante de juntar o gosto por música com o gosto por escrever, organizar uma informação que até então estava dispersa, construir pontes entre quem faz e quem consome. O que mais me encanta no processo de comunicação é esta relação entre emissor e receptor.

Naquele começo de tudo, não tinha visão do negócio de nicho que estava começando a se estruturar, aquela coisa da cauda longa etc. Eu apenas seguia uma intuição e tinha muita vontade e disposição para implementá-la. Mesmo tendo concluído a graduação em jornalismo, o rádio havia sido meu habitat: eu não possuía qualquer experiência em edição de revista. Minha experiência com mídia impressa até então eram as colunas que escrevi (sobre rádio!) nos jornais cariocas O Dia e O Globo e, ainda na época da faculdade, as colaborações eventuais para uma revista de rock. Ser bom redator e bom repórter, escrever bem, não necessariamente implica em editar bem. Dei sorte, pois descobri ter habilidade para editar... à medida que fui fazendo.

Ainda quanto ao rádio, de 1985 a 1994, até VivaMúsica! surgir, minha vivência tinha sido exclusivamente nos bastidores. Nunca imaginei que fosse passar para a frente do microfone. Em 1995, logo no início da VivaMúsica!, sugeri à Cultura FM de São Paulo um programa sobre lançamentos de discos clássicos. Minha idéia era selecionar as músicas e escrever o roteiro a ser lido por um locutor. Fiquei surpresa quando a coordenadora de então, Regina Porto, sugeriu que eu mesma fizesse a apresentação. Tentei escapar, argumentando que o sotaque carioca poderia afugentar ouvintes paulistanos. A Regina me convenceu e assim comecei. Depois, passei a falar também na Mec FM do Rio e, mais recentemente, na CBN. Estou na CBN desde 2006, entro ao vivo às terças e quintas-feiras, por volta de 16h10, conversando com o âncora Adalberto Piotto. Você mencionou o programa de bordo da TAM, que também tem um jeito de transmissão de rádio. Tomei mesmo gosto pela coisa.

2. É interessante porque você partiu daqueles 100 mil ouvintes da Opus 90 FM, em 1994, para começar a sua empreitada. E, agora que o Anuário completa uma década de conquistas, você se volta, novamente, para o público de música clássica — através do Instituto VivaMúsica!, cuja primeira atividade é levantar o perfil dessas pessoas. Todo mundo sabe que o envelhecimento do público que freqüenta as salas de concertos é um problema no mundo inteiro; e, aqui no Brasil, todo mundo da área sabe da grande contribuição da Osesp para mudar a cena e aumentar significativamente o número de espectadores — portanto, eu gostaria de saber quais são os planos do Instituto a partir desse primeiro mapeamento. Além das opiniões que todos temos sobre as questões de público para a música erudita, eu queria saber, da profissional Heloisa Fischer, sobre esse mesmo público: Ele pode ainda crescer? Ele pode se consolidar mais? Ele precisa amadurecer (em termos de cultura musical)? É um problema de poder aquisitivo ou de educação? Quanto esse público já avançou e quanto falta ele avançar?

Qualquer setor da indústria se preocupa em acompanhar os números de seu desempenho atual — oferta, demanda, produtividade, padrão de consumo etc. — e investir nas possibilidades de expansão futura do negócio — desenvolvimento e teste de novos produtos, exploração de novos mercados etc. Acho muito estranho a indústria cultural dar pouca importância a acompanhar seus números de hoje e buscar subsídios concretos para ações futuras.

No caso específico da música clássica, a questão do consumidor de amanhã é crítica. Não estou dizendo que os realizadores do circuito brasileiro de concerto não se preocupem com o futuro — claro que estão (estamos) todos preocupados. E há muitos realizadores que investem em projetos de formação de platéias, seja buscando público infantil, jovem ou mesmo adultos que não têm contato com os clássicos. Essas ações isoladas são importantíssimas e têm bom resultado local. Mas são ações isoladas e visam atender necessidades de comunidades específicas, valendo-se de expertise também específico.

Como transformar experiências avulsas em conhecimento organizado e partilhado? Essa é uma questão. Outra questão é passar a trabalhar com indicadores. Duvido que um executivo da indústria do cimento tome uma decisão estratégica sem ter em mãos os dados recentes de seu setor, como consumo de tijolos ou estatísticas de expansão urbana da localidade onde atua. Onde estão os dados correspondentes da música clássica? Os profissionais que atuam nos clássicos não têm indicadores do setor para fundamentar decisões, dependem exclusivamente de feeling e dos resultados de suas próprias iniciativas.

Qual tamanho total do público consumidor de clássicos no Brasil? Qual volume de investimentos no setor? Quantos ingressos são vendidos por mês em uma cidade como São Paulo, por exemplo? E em Belo Horizonte? Como alcançar um novo público? Quem é o novo público potencial? Como vencer eventuais rejeições e aproveitar simpatias? Aí entra o Instituto VivaMúsica!. Uma de nossas propostas, a primeira delas, é buscar traçar um perfil do público potencial dos clássicos no Brasil.

Acredito firmemente que o público da música clássica no Brasil pode crescer... e muito. Penso existir um sério ruído de comunicação que prejudica a aproximação de mais gente. Você levantou a questão do "amadurecimento musical" do público. A meu ver, existe uma etapa anterior ao aprofundamento. É a etapa da conquista. Esta etapa inicial não requer formação prévia, requer apenas que a pessoa se abra à experiência de ouvir. Ele pode ser completamente verde e sem experiências prévias. Uma fala do crítico Lauro Machado Coelho em entrevista dada à revista da Livraria Cultura tem sido a luz que nos guia no Instituto: "Para se gostar de música clássica é preciso somente ter duas orelhas e um coração no meio". Não à toa escolhemos como slogan do Instituto a frase "Clássico é gostar de ouvir". Você mencionou a questão do poder aquisitivo e da educação. Também são importantes, mas reitero haver uma etapa primeira de aproximação que não depende necessariamente do indivíduo ter nascido em família de posses ou ter sido educado em colégio bom. Basta ter ouvidos abertos e estar de coração aberto. Quer um exemplo? Minha empregada doméstica mora na favela do Vidigal e não terminou a educação fundamental. Nunca tinha ouvido música clássica até começar a limpar minha casa. Ela gosta de ouvir. Não sabe o que está ouvindo — se é Mozart, Villa-Lobos ou Tchaikovsky — mas gosta de ouvir. É esta primeira etapa de "sedução" a que me refiro. Ela gosta de música evangélica, de pagode, de MPB e de clássicos.

Com relação ao avanço do público dos clássicos, é minha firme convicção que precisamos ter a mídia como aliada. É preciso estabelecer canais de diálogo com os decisores da mídia e de mídia (o pessoal que decide investimento em propaganda, inclusive, seja no cliente, seja na agência de publicidade). Para o diálogo com eles fluir, ter indicadores e pesquisas é fundamental. Claro que todos os trabalhos individualmente organizados por realizadores de concertos resultarão em algum crescimento do setor. Mas é preciso dar um tiro de canhão — ou, pelo menos, tentar dar.

3. Pulei das origens para o "agora", mas queria voltar ao Anuário. São 2,3 mil cadastros de músicos, orquestras, escolas, instrumentos, festivais, publicações, mais o calendário de concertos de 2008, varrendo a programação de 30 cidades brasileiras. Fora os especiais, as efemérides, a parte comercial. Eu queria me concentrar na feitura do Anuário. São seis pessoas, mais você, mais o seu sócio, Luiz Alfredo Moraes. Como acontecem os trabalhos durante o ano? Como vocês dividem esse trabalho (entre as pessoas)? Qual foi a grande dificuldade, no início, de levantar essas informações — e quais são as dificuldades agora, de manter essas informações atualizadas? Sei que o Anuário tem todo um charme, é portátil e se consagrou nesse formato — permitindo, inclusive, o sustento das demais atividades com a marca VivaMúsica! —, mas não seria interessante ter toda essa base disponível na internet? Eu sei, claro, do Portal VivaMúsica!, mas a minha impressão é que a internet não é uma prioridade para vocês. Tem a ver com as verbas publicitárias (proporcionalmente menores), tem a ver com a falta de modelos de negócio? O Anuário ainda vai conviver com uma versão on-line ou isso não passa pela sua cabeça?

Pela minha cabeça passa sempre muita coisa. A sinergia entre os trabalhos que desenvolvemos é tema e ocupa boa parte dos meus pensamentos e da minha ação nos últimos tempos. Importante lembrar que VivaMúsica! é uma iniciativa singular em nosso País: uma agência privada de divulgação musical, com produtos em várias mídias (impressa, digital e eletrônica) voltados para quem já se interessa por música clássica e, mais recentemente, via Instituto, com iniciativas direcionadas ao auto-conhecimento e à expansão do setor, objetivando a conquista de novos públicos. Os dez anos de edição do Anuário VivaMúsica! e, conseqüentemente, de relação com "fazedores" da música clássica em todo Brasil, nos deram um alicerce sólido para estruturar todas as demais ações.

A coleta de informações do mercado brasileiro faz parte do nosso cotidiano de trabalho. De 1º de janeiro a 31 de dezembro, estamos coletando e atualizando informações. Quase um SNI dos clássicos brasileiros, no bom sentido. O Anuário é uma fotografia parcial da base de dados de VivaMúsica!, tirada uma vez por ano. Disponibilizar esta base de dados — e não apenas a edição do Anuário — na internet é uma evolução lógica do nosso modelo de negócio.

A equipe de VivaMúsica! é formada por dez pessoas fixas no escritório, além de colaboradores regulares. Temos três equipes de trabalho: conteúdo, comercial e administrativo-operacional. Produzimos, comercializamos, distribuímos e promovemos todos os nossos produtos editoriais: Anuário, Agenda, Portal com atualizações diárias e boletins de rádio. A auto-suficiência de toda a operação é um aspecto muito saudável, mas exige concentração e estratégia de enxadrista.

4. Eu queria voltar também, mais especificamente, ao seu trabalho incansável no rádio. Eu lembro muito dos seus telefonemas semanais para a Marta Fonterrada, quando era ouvinte assíduo dela na Cultura FM, e, naturalmente, pego você na CBN (ainda vou pegar na TAM, com toda a certeza). Enfim — como diz o Kid Vinil —, o rádio é praticamente um vício? (Como todos os prazeres envolvidos?) Eu, evidentemente, sei que a CBN é o auge para um profissional de rádio (e imagino que valha o mesmo para a TAM, no mundo das companhias aéreas brasileiras) — mas eu acompanho você semana a semana (no rádio), mês a mês (na Agenda VivaMúsica!) e ano a ano (no Anuário), e fico invejando o seu fôlego. Com toda a cancha da Opus 90 FM, seus anos de Cultura e, inegavelmente, os dez de Anuário, ficou mais fácil preparar os boletins e entrar no ar — ou é sempre uma correria e um frisson? Você tem alguma opinião sobre o futuro do rádio, junto com a internet, mais uma vez? O que acha, por exemplo, dos podcasts? O VivaMúsica! pode se estender por mais esses domínios?

É sempre uma (deliciosa) correria, pois tenho estado envolvida com muitas iniciativas simultâneas: as de VivaMúsica!, claro, e sempre algo mais. Agora, por exemplo, estou na equipe de um projeto interessante aqui no Rio que pretende colocar, de alguma forma, música clássica no ambiente de clubes noturnos. Estamos trabalhando duro para chegar ao formato e à comunicação adequados.

No que diz respeito ao rádio, quando eu estava prestes a começar na CBN, por mais que já tivesse experiência (aquelas conversas com a Marta Fonterrada eram ao vivo — lembro de uma vez ter feito o boletim andando pela aléia de palmeiras imperiais do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, enquanto repassava com ela a agenda de concertos cariocas da semana), o frisson me fez praticamente perder a voz uma semana antes da estréia. Deu tudo certo no final, como sói acontecer. Os deuses da música estão sempre a postos, dispostos a colaborar.

O rádio é um veículo fascinante, especialmente para quem faz. A CBN está presente em mais de 20 cidades no Brasil: o boletim VivaMúsica! abriu um espaço de divulgação muito importante para o setor de clássicos de modo geral e para a minha vida profissional em particular. Os meus programetes diários na Mec FM do Rio desde 2004 possibilitaram que o autor de novelas Manoel Carlos colocasse a revista Agenda VivaMúsica! na novela Páginas da Vida (foram cinco citações, uma delas está aqui). Ele é meu ouvinte diário e, quando escreveu uma novela que girava em torno de um centro cultural, deu jeito de inserir a revista lá.

Quanto à internet, por mais que ela tenha possibilitado uma expansão sem igual, me incomoda um pouco o que eu chamo de "acesso ao excesso". Quem nunca chegou ao ponto de ficar de ressaca frente a tantas possibilidades que atire a primeira pedra! Tem dia em que eu acompanho a programação da WQXR de Nova York, da Classic FM de Londres e da Cultura FM de São Paulo ao mesmo tempo... quando não gosto de uma música em uma, troco para outra, como se fosse um dial digital. Também gosto muito de ouvir a Radio Nova de Paris quando o objetivo é música popular ou fazer o meu mix pessoal de programação no site Musicovery. É instigante ter tantas possibilidades, mas também cansativo. O rádio acaba ocupando um lugar diferente nesta nova ordem das coisas: um lugar de repouso, de aconchego do conhecido, de conexão com o ambiente local. Quanto a podcast, é um caminho natural de expansão para quem tem experiência em fazer rádio e tem um ambiente web à sua disposição.

5. Outro dia, eu lamentei que a base de vocês fosse no Rio, apesar da qualidade inegável da revista Concerto (equivalente à Agenda de vocês). São Paulo já foi chamada de "túmulo do samba" e a gente, instintivamente, associa ao Rio uma musicalidade histórica que vem desde Villa-Lobos, passando pela bossa nova do seu discípulo Tom Jobim, desaguando no Nelson Freire (que é mineiro, mas que eu associo à Rádio Mec e ao documentário do João Moreira Salles)... Enfim, vocês falam em "big bang" a partir da reestruturação da Osesp (em 1997), mas — não sei se por um talento seu de comunicação — eu vejo o Rio muito presente nessa cena, com a Sala Cecília Meireles, a OSB do Roberto Minczuk, até o Dia da Música Clássica (5 de março, sancionado pelo governador Sérgio Cabral, por iniciativa de vocês). O criticado eixo Rio-São Paulo, em suma, vai bem; faltam, como sempre, iniciativas mais sistematicamente descentralizadas — embora haja, claro, um Leandro Carvalho e sua Orquestra de Câmara do Estado de Mato Grosso, um Luiz Fernando Malheiro e um Festival Amazonas de Ópera, um Edino Krieger e suas raízes catarinenses — até um Antonio Meneses, com origens em Pernambuco. Como você vê essas manifestações em nosso País? Ainda vamos ter um País de Ouvintes de Música Clássica (parafraseando o bordão governamental do "País de Leitores")?

Por motivos óbvios, é mais fácil concretizar uma boa idéia em São Paulo do que em qualquer outro lugar do País, quer você esteja na área cultural ou fabrique biscoitos: o centro das decisões financeiras está aí. Mas o Rio é, por excelência, a terra da ousadia e do alargamento de limites, para o bem e para o mal. Aqui existe um ambiente propício à criatividade, à busca de novos caminhos e, até mesmo, à insurreição (vide a loucura da ocupação urbana desordenada).

A sede de VivaMúsica! continuar sendo no Rio é uma opção e não uma determinação. A brisa fresca do mar de Ipanema está, de alguma maneira, presente em tudo que fazemos. Espero que sempre continue assim, mesmo se, em um hipotético dia, a operação for transferida de cidade. Meu sangue tem maresia, fazer o quê?

Sim, o eixo Rio-São Paulo vai bem, mas pode ir melhor. Estou com o economista André Urani: nunca devemos perder de vista que a região metropolitana das duas cidades ultrapassa os 30 milhões de habitantes. No nosso caso, quantos deles estão envolvidos de alguma maneira com a música clássica? O eixo bastaria como foco de qualquer empreitada. Mas o Brasil é plural, enorme, tem um povo que adora música, de maneira ampla. O exemplo do Leandro Carvalho e do trabalho que ele desenvolve junto ao governo de seu estado é fundamental para inspirar outros empreendedores e outros governos. É assim que a coisa acontece: é preciso um exemplo de sucesso e são precisas ações de disseminação desses casos de sucesso. A Orquestra do Mato Grosso não existiria sem a Osesp, por exemplo.

O dia-a-dia de trabalho em VivaMúsica!, especialmente a atividade de monitorar o setor brasileiro de clássicos, possibilita uma visão otimista do potencial de expansão. Acompanhamos desde as grandes iniciativas, como as orquestras do eixo Rio-São Paulo, até as menores, como a série de recitais na cidade de Patos de Minas ou o programa de rádio da FM universitária do Rio Grande do Norte. As iniciativas estão espalhadas pelo Brasil, os casos de sucesso são muitos. O desafio é acompanhar e disponibilizar as informações aos interessados, seguindo o exemplo do trabalho da Liga das Orquestras Americanas.

Tenho a impressão de que já somos mais um "País de Ouvintes de Clássicos" do que de leitores. No dia em que tivermos os nossos números e pudermos os comparar com os números do SNEL (Sindicato Nacional do Editores de Livros), talvez tenhamos uma boa surpresa.

6. E é inevitável falarmos um pouco do maestro John Neschling e da continuidade do seu trabalho à frente da Osesp — que foi o fato da década, de acordo com a eleição, entre a crítica, promovida por vocês. Além de grande realizador, Neschling é, indubitavelmente, uma personalidade forte — então acontecem embates, disputas e desgastes. Se por um lado me parece que o sucesso da Osesp, da inauguração da Sala São Paulo, e das outras iniciativas correlatas, são fruto da força de vontade do maestro, por outro lado é uma pena que esse mesmo aspecto, pessoal, agora pese contra a continuidade do trabalho... O que você acha? Esclareço que precisamos, sim, de grandes personalidades, mas será que esse modelo não nasce condenado (por depender muito da pessoa do realizador)? O Brasil tem toda uma história, inclusive na música, de homens com uma capacidade sobre-humana de realização, como Villa-Lobos (de novo), mas será que não temos de trabalhar melhor as instituições (para que elas continuem depois de seus fundadores)? Qual a sua opinião?

Tenho um certo pé atrás com aquela máxima "Ninguém é insubstituível". Mesmo nas grandes empresas de personalidade corporativa sólida, o sujeito que senta na cadeira de CEO tem uma colaboração personalíssima a dar. Alguma coisa mudou quando Roberto Marinho deixou o comando da Globo — não vem ao caso se para melhor ou para pior. O mesmo acontece na troca de uma diretoria ou até na gerência de turno de uma loja de supermercado. A pessoa que comanda deixa a sua marca. O desafio é encontrar o equilíbrio entre a marca pessoal e o personalismo, que, como indica o sufixo, é quase uma doença. Uma pessoa jurídica alicerçada nos esforços individuais de uma pessoa física apresenta riscos no que diz respeito à continuidade. Quanto menos baseada em esforço individual e mais distribuída entre talentos de equipes, maior a chance da empreitada atravessar os anos com regularidade de conduta.

A Osesp de Neschling é diferente de uma possível Osesp de Roberto Minczuk ou de uma possível Osesp de quem quer que seja. Fazendo um retrospecto da década, o foco sempre esteve na personalidade do maestro John Neschling, como gestor e como diretor artístico. No início do processo, logo após a morte de Eleazar de Carvalho, com a orquestra atravessando séria crise, alguém de "pulso firme" e rigor artístico como Neschling fez toda a diferença. E, ao longo destes anos todos, Neschling continua fazendo a diferença. Ele tem uma sensibilidade única para escolha de repertório e se mantém firme em um propósito estratégico de executar música brasileira e repertório dos séculos XX e XXI, para considerar apenas dois aspectos artísticos. Mas o principal ator deste cenário "osespiano" tem sido o governo do estado de São Paulo. A decisão de investir pesadamente na orquestra sempre veio do governo do PSDB. O principal mérito do maestro Neschling (e hoje da Fundação Osesp como um todo) é fornecer os melhores argumentos e subsídios para embasar uma decisão de repasse de verba governamental ao projeto Osesp, independente do partido que ocupe o Palácio Bandeirantes.

7. Pegando ainda o gancho do maestro Neschling — volta e meia, sinto que ele se queixa por causa das críticas, dos ataques, da incompreensão. Nas artes brasileiras, em geral, prevalece a sensação de eterna falta de reconhecimento, e no reino da música erudita não parece ser diferente. Como você vê a crítica de música e o jornalismo como um todo, nestes 15 anos de verdadeira militância sua? Tenho a impressão de que vocês, no Anuário e na Agenda VivaMúsica!, estão realizando um trabalho hercúleo de levantamento de dados e de mapeamento da cena, mas não vejo algo equivalente por parte do resto da imprensa, na apreciação, na análise e no acompanhamento (na crítica mesmo) desses trabalhos. Se não me falha a memória, podemos contar nossos críticos nos dedos de uma só mão, e mesmo a internet, que é pródiga em impressões de música popular, não parece ter alcançado, ainda que no seu amadorismo, o universo da música erudita... Heloisa, como vamos preencher esse gap? Você tem esperança? Porque é maravilhoso termos tido toda essa ebulição na última década, mas ela não corre o risco de passar em branco se não houver um registro de acordo?

Nós que atuamos na comunicação de música clássica — independente do tipo de mídia ou do escopo de atuação, seja na Folha de S. Paulo, na TV Cultura ou em um blog pessoal — temos uma grande responsabilidade nas mãos. Estamos abrindo caminhos na selva a canivete. Depois da primeira trilha aberta, fica mais fácil pavimentar uma estrada. Por eu ser jornalista, morar em um grande centro urbano, ter estudado em uma boa faculdade e estar acompanhando o setor de clássicos há uma década e meia, acabamos (eu e VivaMúsica!) funcionando como fonte de informação para muitos coleguinhas — usando o jargão jornalístico que jornalista usa pra chamar jornalista. Quando os coleguinhas ligam pra pedir alguma dica ou pra saber o telefone de um maestro, percebo o quanto a própria imprensa depende dela mesma! Uma vez a coreógrafa Regina Miranda me disse que, se a dança no Brasil tivesse um veículo segmentado como VivaMúsica!, as coisas estariam bem melhores para o lado deles. Informação sempre foi tudo, mas tomou uma proporção ainda maior nos dias de hoje.

8. Falando ainda em críticos, o João Marcos Coelho destaca, no especial do VivaMúsica!, o fenômeno do download e o advento do iPod como fatos relevantes. Como é que você vê o momento atual da comercialização (ou até da troca) de fonogramas pela internet? É interessante o que aconteceu com o mercado de música erudita — porque ele não foi afetado tão rapidamente quanto o mercado de música popular (até pela pirataria de CDs), e, de repente, bate recordes de downloads, com iniciativas como as da rádio BBC na Web, e com vendas diretas de MP3, como no site da Deutsche Grammophon (inclusive para o Brasil). Às vezes me parece que o público de música clássica tem um respeito diferente pelas gravações (e pelo direitos autorais); às vezes me parece, pelos acessos, que esse público pode crescer como nunca na História. Você também tem essa percepção? Como é seu diálogo com os freqüentadores do Portal VivaMúsica!? Já pensou em montar um blog? Na internet pode estar a chance de renovação do público de música erudita que todos, há anos, procuram?

Vamos lembrar que o público da música clássica contém vários sub-públicos: os super conhecedores, os que conhecem pouco, os audiófilos, os super tecnológicos, os nada tecnológicos, os velhos, os novos, os que preferem gravações, os que preferem concertos ao vivo, os que só gostam de ouvir no trânsito como válvula de escape, e por aí vai.

Creio que o momento seja especialmente positivo para os clássicos não apenas pela facilidade de acesso às gravações via internet, seja para compra do CD (lembra o perrengue que era conseguir um CD clássico, especialmente para quem morava fora de capitais?) ou download, mas também porque vivemos a era da flexibilidade. As fronteiras caíram, inclusive entre os gêneros musicais. Temos uma geração entre 14 e 25 anos sem preconceitos, cujos ouvidos estão abertos a novidades. Essa geração está on-line, necessariamente. Se houver maneiras da música clássica chegar usando a linguagem que esta geração entende, podemos ter um bom resultado. E também é importante considerar que a cultura eletrônica de raves e afins está preparando ouvidos para música instrumental de longa duração. Com isso não quero dizer que o clubber seja um adorador de Bach em potencial. Mas ele tem ouvidos mais abertos para um espetáculo da Jocy de Oliveira, por exemplo, do que o assinante do Mozarteum. Outro fato muito significativo é que alguns videogames estão "acostumando" os jovens à música sinfônica e música coral. Vinte ou trinta anos atrás, o panorama não era este.

Quanto a ter um blog, penso nisso, mas ainda não me deixei seduzir pela idéia. Às vezes vejo meu irmão, André Fischer, e o blog que tem no site dele, do Mix Brasil, e fico com vontade de ter o meu também — assim a família ficaria em sintonia!

9. Ainda nessa onda de contemporaneidade, eu queria saber se você sofre a dor dos compositores contemporâneos — do século XX pra cá, digamos — que são minimamente executados nos programas das principais temporadas de concertos, não só no Brasil, mas no mundo todo. Com a difusão sem precedentes da internet (de novo), será que poderemos atacar melhor esse problema no século XXI? Ou permanecerá como uma falta de comunicação irreconciliável entre compositores e público médio? Às vezes eu vejo com esperança a ascensão de gente como o André Mehmari, ovacionado tanto pela crítica de música popular (pelos trabalhos com a Ná Ozzetti) quanto pelos elogios de boca cheia do maestro John Neschling (que o executou através da Osesp), mas é muito pouco, e é muito raro, ainda, não é? Talvez não tenhamos, neste instante, uma novíssima safra de compositores, até porque não havia uma cena que os acolhesse, mas já é tempo de trabalhar por essa mudança de mentalidade, igualmente, nos programas, não é, não?

Mencionei na resposta anterior a questão de um bom momento para a música contemporânea, considerando um cenário mais amplo do que o circuito de concertos — este, claro, é bem restrito para a música contemporânea.

Creio firmemente que existe um grande público potencial entre os jovens da cena eletrônica, em termos de "facilidade para ouvir" música experimental. A maior participação da música contemporânea nos repertórios de concerto segue a boa e velha lógica Tostines: se o público não ouve, não conhece e não se acostuma — como o público não ouve, não quer ouvir. É uma lógica perversa, mas tem toda explicação e justificativa. Trilhar o novo não é fácil, a maioria absoluta das pessoas prefere sempre saber onde está pisando — seja na música, na gastronomia, nos relacionamentos.

Quem tem mais chance de quebrar o círculo vicioso são as orquestras, pois elas têm uma base fiel de espectadores. O público de música clássica é fidelíssimo a seus "fornecedores" (e isso é um dos grandes trunfos mercadológicos do setor de clássicos, ainda que não venha ao caso agora). Se uma orquestra faz um convite pra seus espectadores trilharem um caminho novo, seja em um programa específico de música contemporânea na temporada ou somente na inclusão de peças novas ou encomendas de obras, eles vão responder com mais confiança. É mais difícil trabalhar sem este "respaldo institucional" que a orquestra dá, do que, por exemplo, um grupo de câmara organizar seus próprios concertos com música nova.

10. A última pergunta, aqui, é meio "de praxe". Imagino que sempre vem gente atrás de você querendo seguir os seus passos. O que você aconselharia para o(a) jovem jornalista que quer se embrenhar pelos caminhos da música clássica no Brasil? Eu considero muito mais difícil, por exemplo, do que se embrenhar na seara da música popular, que, no nosso País, está em todo lugar. Quais são as referências: para quem vai escrever, o quê (e quem) ler? O que escutar, e em que ordem? Onde conseguir as melhores gravações, os melhores fonogramas? Como em literatura, você têm o seu "cânone", de música erudita brasileira? Onde estudar, onde se aperfeiçoar — e quem são os professores? Quem escreve sobre música clássica, tem de entender de música a ponto de ser um pouco músico também? E para quem quer empreender na área, ainda há espaço? Falta um bom blog brasileiro de música erudita? Ou já existe? O que você diria para a jovem Heloisa Fischer, se pudesse (ou à "candidata a")?

Assim como a Osesp tem uma Academia para aperfeiçoamento de músicos, quem sabe um dia VivaMúsica! terá sua academia para aperfeiçoamento de profissionais de comunicação?

Você falou em jornalistas, mas é bom lembrar que radialistas (produtores, locutores, apresentadores, operadores), assessores de imprensa e profissionais de relações públicas e gente do mundo das editoras também se relacionam com a divulgação dos clássicos. É importante que o profissional de comunicação se aproxime deste universo parecido com Moisés aproximando-se da sarça ardente: descalço. Sem sapatos, com os pés no chão, humilde, sentindo o pulso da terra em que pisa. O setor de clássicos tem muitas sutilezas em termos de abordagem jornalística.

Acima de tudo, é preciso gostar de música clássica e ter interesse em conhecer mais — essa é outra questão importante, pois o universo a ser descoberto é... um universo. É válida aquela história do "quanto mais eu sei, mais sei que nada sei". Quando você acha que já conhece muito, percebe que conhece pouco. Arrogância não faz bem em momento algum da vida, na cobertura da música clássica, menos ainda.

Quem está começando nesta profissão agora tem grande vantagem sobre quem começou na fase pré-internet. Hoje é facílimo acompanhar a cobertura da imprensa internacional — desde o Musical América, que traz ótimo conteúdo dos bastidores, até as revistas estrangeiras, as rádios nacionais e estrangeiras, e também acompanhar os órgãos de imprensa nacionais que abrem espaço para música.

Tocar um instrumento ou cantar sempre ajuda, mas não é, em absoluto, impeditivo: eu não toco nem canto e sempre me movi com desenvoltura. Já para escrever crítica de concertos e gravações, é fundamental saber ler partitura e tocar um instrumento.

Recomendo ao jornalista aprendiz freqüentar o circuito de concertos: música clássica é a arte da performance e quem não assiste a um concerto ou uma récita de ópera perde uma parte importante da coisa.

Quanto ao empreendedor que deseja entrar no ramo, há, sim, vários espaços a preencher. Quem se interessar pode me procurar e trocamos uma idéia. Quanto a blogs, sinto falta do João Luiz Sampaio postar no dele com mais freqüência. Gosto das dicas que o Eric Klug dá. O maestro Ricardo Prado escreve muito bem, mas parou de postar. Ainda não tomei conhecimento de um blogueiro que poste todos os dias sobre música clássica no Brasil. Tomara que já exista ou surja logo. Quanto às palavras ditas a mim mesma no início de tudo, são as mesmas que eu diria a alguém que está começando no jornalismo musical clássico. Eu citaria Os Mutantes (a banda, não a abominável novela): "Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida". E acrescentaria: "Aproveite!".

Para ir além
Portal VivaMúsica!

Julio Daio Borges
São Paulo, 1/9/2008

 

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