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Segunda-feira, 7/8/2006
José Castello
Julio Daio Borges


José Castello em foto de Joaquim de Carvalho

José Castello, carioca de 1951, é um dos mais prolíficos críticos literários do Brasil hoje. Colabora regularmente com O Globo, Valor Econômico, NoMínimo e Rascunho, entre outros. É também autor de perfis e biografias como Vinicius de Moraes: O Poeta da Paixão (Companhia das Letras, 1993, 456 págs.) e João Cabral de Mello Neto: O Homem sem Alma/ Diário de Tudo, reeditado agora pela Bertrand Brasil (e servindo de mote para esta Entrevista).

Aqui, José Castello fala sobre sua opção quase acidental pelos poetas e sobre as limitações de reconstituir uma vida em livro. Castello acredita, como Clarice Lispector, que não escolhemos os livros que vamos escrever – eles é que nos escolhem. Foi desse jeito que surgiu o romance
Fantasma (Record, 2001, 384 págs. – sua estréia na ficção), originalmente concebido como um volume sobre Curitiba, cidade onde Castello está atualmente radicado.

Além de colaborar, José Castello faz, nesta Entrevista, uma defesa apaixonada do
Rascunho, suplemento literário curitibano dirigido por Rogério Pereira. Por fim, apesar da sua presença constante na mídia escrita, falando sobre literatura, Castello não se considera, a rigor, “crítico”. Confessa que prefere as “fendas” e os “abismos” entre gêneros. Reconhece, portanto, a sua e a nossa “precariedade”. – JDB

1. Castello, agora com a publicação de Diário de Tudo, como uma espécie de posfácio à reedição de João Cabral de Melo Neto: O Homem sem Alma (Bertrand Brasil, 2006, 269 págs.), ficamos sabendo que, de alguma maneira, havia um projeto de biografar nossos grandes poetas modernos... Você publicou Vinicius de Moraes: O Poeta da Paixão (Companhia das Letras, 1993, 456 págs.), depois coligiu as entrevistas de 1991 com João Cabral, em 1996, pela Rocco... Você pensava em falar – a pergunta aqui é inevitável – de Carlos Drummond de Andrade? De repente, de Manuel Bandeira ou Cecília Meireles? Ou, ainda, de Murilo Mendes ou Jorge de Lima? O que houve com esse suposto projeto de uma série de biografias, se é que ele realmente existiu?

Nunca tive o projeto de uma série de biografias. Na verdade, minha relação com as biografias é uma espécie de acidente – um feliz acidente – em minha vida. A idéia de escrever O Poeta da Paixão, a biografia de Vinicius, me foi dada de presente pelo editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. A editora acabara de comprar os direitos de publicação da obra de Vinicius. Queria lançar, também, uma biografia do poeta. Então, o Luiz me fez o convite para escrevê-la. Minha primeira reação foi de surpresa, senão de susto, pois eu nunca pensara em escrever uma biografia, e nem era um leitor entusiasmado de biografias.

Ocorre que, foi lendo os poemas de Vinicius de Moraes, aos 11 ou 12 anos de idade, ainda nos bancos do Colégio Santo Inácio (o mesmo em que ele estudou), que descobri minha paixão pela literatura. Esta lembrança me convenceu de que, mesmo surpreso, mesmo sem ter planejado ou desejado isso, eu devia aceitar o convite do Luiz. Hoje vejo que fiz a escolha certa e sou muito grato a ele por isso.

O livro sobre João Cabral veio, também, de uma situação acidental. Como repórter literário do Estadão, fui ao apartamento de Cabral fazer uma entrevista rotineira. Sempre admirei, muito, sua poesia. Impressionei-me com sua solidão, senti um grande prazer em conversar com ele e, mesmo sem ter certeza de que disso resultaria um livro, lhe propus uma rotina de entrevistas, que ele aceitou imediatamente. Nossos encontros se estenderam por todo um ano, ao longo do qual eu entendi que, mesmo sem ter decidido isso, eu estava escrevendo outro livro.

Meu livro sobre Rubem Braga, Na cobertura de Rubem Braga, não foi também uma idéia minha, mas da editora Maria Amélia Melo, da José Olympio. O próprio Diário de Tudo, que completa a segunda edição de O Homem sem Alma lançada agora pela Bertrand Brasil, surgiu de uma idéia do editor Paulo Bentancur. Ele me perguntou se eu não teria algum inédito que pudesse engrossar e renovar o livro. Eu não tinha a intenção de publicar o diário pessoal de meus encontros com João Cabral, mas, estimulado pelo Paulo, decidi fazer isso. Muitas coisas em minha vida vieram pelo acaso, e não por uma escolha. Creio, sinceramente, que não escolhemos os livros que escrevemos, mas que eles, sim, de alguma maneira, nos escolhem. Meu romance Fantasma surgiu de um ensaio sobre a cidade de Curitiba, que eu não consegui concluir. O Inventário das Sombras, que é um conjunto de retratos literários, e não uma biografia clássica, nasceu, sem eu saber, das muitas entrevistas que fiz, ao longo de minha vida de repórter, com grandes escritores. Hoje acredito que nenhuma literatura se faz se você não se dispõe a ouvir, com atenção, os sinais emitidos pelo acaso. A ouvir e a aceitar.

2. Uma pergunta emendada na outra: como foi a recepção de O Poeta da Paixão, sobre Vinicius de Moraes? Ela te desencorajou a fazer o mesmo com João Cabral? Ou foi o próprio João Cabral, de tão poucas palavras e de vida tão menos movimentada, que te desestimulou a seguir o caminho da biografia alentada e tomar quase que a trilha do perfil em O Homem sem Alma? Você acha que essas duas experiências, se tivessem sido diferentes, te encorajariam a encarar outros poetas?

Quando escrevi O Poeta da Paixão, decidi que não faria uma biografia nos moldes clássicos. Uma biografia clássica parte do pressuposto de que pode esgotar a vida do biografado. Basta devassá-la, passo a passo, do nascimento até a morte. O biógrafo clássico vive da ilusão de que nada lhe vai escapar, e de que tudo é só uma questão de esforço e de tempo. Não penso assim. Tenho muito orgulho do livro que escrevi, mas conheço suas limitações. Que se acentuam se o comparamos ao modelo onipotente da biografia tradicional. A biografia clássica é, a meu ver, um projeto impossível. Um ideal que, como os ideais, serve só para amparar, e servir de consolo, a nossa precariedade.

Quando resolvi escrever o livro sobre João Cabral, já tinha claro que não queria mais me aventurar na biografia tradicional. A essa altura, já preferia a visão mais estreita, mas também mais aguda, mais reveladora, do retrato. Em um retrato, o escritor não escamoteia seu ponto de vista, não esconde suas escolhas e limites, não se camufla sob o mito da objetividade. Acho que toda biografia, mesmo a mais “científica” delas, é sempre subjetiva. É uma visão, particular, que traçamos de alguém. E que não anula, nem impossibilita, outras visões. Foi com esse apego ao singular, esse desejo de lidar com o pessoal e o insubstituível, que escrevi, depois, o Inventário das Sombras. Foi com ela, também, que escrevi, mais tarde, Os dez corações do Rei, meu livro sobre Pelé.

3. Todas essas perguntas porque, atualmente, estamos muito acostumados a ler o José Castello-crítico literário... Apesar de que há, claro, seu perfil sobre Pelé (Os dez corações do Rei, Ediouro, 2004, 240 págs.), e há, ainda, o perfil sobre o mesmo Vinicius (Uma geografia poética, Relume Dumará, 2005, 104 págs.)... A atividade de crítico é muito demandante e deixa pouco espaço para o biógrafo? Ou foi uma decisão intencional sua mudar, assim, de trajetória? Acredita que é menos atribulado sobreviver como colaborador semanal de publicações de grande circulação do que como autor de livros?

Também a crítica literária surgiu, em minha vida, de modo circunstancial. Nunca pretendi escrever best-sellers, logo nunca imaginei que pudesse viver de literatura. A crítica literária apareceu como um caminho para conciliar minhas duas identidades: a de jornalista e a de escritor. Eu me sinto muito à vontade nessa posição intermediária, ambígua, difícil de definir. Ela me abre muitas possibilidades. Há quem diga que O Poeta da Paixão é, na verdade, um romance envergonhado. Que o Inventário das Sombras não passa, de fato, de um livro de contos. Muitos leitores julgam que Fantasma, meu único romance, é, na verdade, uma autobiografia. Nas crônicas que escrevi durante uma década para o “Caderno2” do Estadão, que resultaram depois numa antologia da série “As melhores crônicas” da editora Global apresentada por Leyla Perrone Moisés – do que muito me orgulho – sempre trabalhei do mesmo modo, com um pé na realidade, outro na ficção. De fato, continuo a escrever crítica literária, basicamente, para sobreviver. Não sou professor universitário, não recebi uma grande herança, não vivo de rendas, não recebo salário fixo. Vivo só do que escrevo; se não escrevo, não vivo. Não digo isso para me lamentar, ao contrário, me dá uma grande felicidade saber que, na minha vida, a escrita e a existência se misturam.

4. Vamos falar, um pouco mais, da sua primeira incursão na ficção: Fantasma (Record, 2001, 384 págs.)... Como foi essa experiência? É complicado cruzar a linha que separa o crítico do “criticado”? Recebeu muitas represálias (de criticados ou ressentidos)? Você recomendaria a experiência a outros críticos? Tem outros projetos de ficção a caminho?

Não cheguei a decidir que escreveria Fantasma. Eu me dedicava a escrever um ensaio sobre Curitiba, cidade em que vivo desde 1994. Ele faria parte de uma coleção sobre cidades brasileiras projetada pela editora Record. Tentava escrever, trabalhava muito, mas nada do que escrevia me agradava. Aos poucos, para me distrair, ou me consolar, comecei a anotar à mão, em um bloco, a história de um homem, um arquiteto que, depois de escrever um ensaio sobre Curitiba, odiou tanto o que escreveu, que decidiu incinerar seu livro. Era uma distração que, com o passar do tempo, passou a me interessar muito mais que o ensaio. Um dia, liguei para Luciana Villas-Boas, a editora, e lhe disse: “Estou tentando escrever um livro, mas está saindo outro. O que faço?” Ela se limitou a me dizer: “Então esqueça o que está tentando escrever, e escreva o que está saindo”. E assim, quase contra a minha vontade, Fantasma surgiu. Sempre tive o projeto de escrever ficção. No momento, começo a trabalhar em uma segunda ficção. Mas, para mim, as fronteiras entre os gêneros literários já não funcionam. O livro que começo a escrever não chega a ser uma ficção, é um pouco uma biografia, outro pouco um ensaio, e não chega a ser nenhum deles. É onde me sinto melhor, nessas fendas, nesses abismos, que se abrem entre os gêneros.

5. Ainda no seu lado de crítico, como foi assumir a “cátedra”, digamos assim, de crítico literário do Estadão? Você – como Bernardo Carvalho admitiu depois de sair da Folha – também não suportou a pressão? É mais "tranqüilo" estar em várias publicações ao mesmo tempo, como freelancer, sem manter nenhum vínculo de exclusividade? E a cobrança dos autores (amigos, inimigos, etc.), que eu imagino que ainda exista, como é que você normalmente lida com ela?

Pressões sempre existem. Em minhas críticas, mesmo quando faço avaliações mais duras, me esforço sempre para ser elegante. E também para deixar claro que aquilo que estou escrevendo não é A Verdade, mas apenas uma visão, pessoal e parcial, que consigo ter daquele livro. Todo crítico tem suas limitações, e eu tenho as minhas. Não as considero um problema, ou um obstáculo; ao contrário, elas ajudam a demarcar, a fixar a imagem do crítico que sou. Crítico? Sempre que recebo uma correspondência endereçada “Ao crítico literário José Castello”, meu primeiro impulso é devolvê-la à portaria do prédio, é considerar que houve um erro de destinatário. Na era dos doutores e dos pós-doutores, prefiro me ver como um leitor. Um leitor apaixonado, não vejo problema algum em dizer isso. Meu mestrado, na UFRJ, não é em Teoria Literária, mas em Comunicação. Não cursei nem mesmo a graduação em Letras, mas em Jornalismo. Sei que alguns críticos mais severos me vêem, ainda hoje, como um intruso, ou um diletante. Aprecio muito essa posição de amador, palavra que designa não só o saber não especializado, mas também aquele que ama – o amante. Sou mais um amante da literatura do que um crítico literário. Acho muito interessante, muito rico, ter a oportunidade de praticar a crítica, e ser visto como crítico, se posso conservar essa paixão.

6. Admiro muito a sua disposição de, mesmo estando em periódicos como Bravo!, Época e Valor Econômico, ainda assim marcar presença mensalmente no Rascunho. Como é essa convivência da imprensa, digamos, “grande” com a mídia mais setorizada para você? E, entrando mais nesse último ponto, como vê as novas publicações literárias? E sua explosão tão vertiginosa na internet? Isso é bom ou ruim para a literatura do Brasil?

O Rascunho é um jornal heróico, feito contra todas as evidências de que certamente fracassaria, atacado por todos os lados e que, ainda assim, acaba de completar seis anos de existência. É uma obra pessoal de um sujeito obstinado, de outro grande amante da literatura, chamado Rogério Pereira. O jornal já foi muito atacado, sobretudo em seus primeiros anos, por intelectuais respeitáveis. Como um projeto pessoal, absolutamente precário, e ainda mais realizado por um “aventureiro”, pode dar certo? É isso o que irrita. Mas é isso também o que mais me interessa no Rascunho: trata-se de um jornal literário feito com paixão pela literatura. Muitos estudiosos da teoria literária acreditam que a paixão só atrapalha. Penso o contrário – e o Rascunho está aí como prova viva de que ela só ajuda. Para mim, a literatura que interessa é aquela que provoca um grande impacto em quem lê, que desestabiliza perspectivas e sentimentos, que desarruma o que parecia estável e organizado. Que outro nome dar a isso, senão paixão?

7. Fique tranqüilo que não vou perguntar o que você acha desse ou daquele autor específico porque, pelo seu ofício, sei que você responde a isso todos os dias... Voltando à poesia, vê uma chance de sobrevivência do gênero nas novas mídias? Ou elas não têm nada a ver com ela? A poesia precisa de grande audiência (como muitos querem/pensam)? Ou deve continuar restrita a um círculo pequeno, formado por pessoas com extrema sensibilidade (a mesma que você não (re)distribui com programas de governo)?

A poesia não deve nada a ninguém. A literatura não deve nada a ninguém. A arte, disse o filósofo, é um caminho que não leva a parte alguma. É claro, hoje, no mundo do marketing, das embalagens e das listas de mais vendidos, não é bem assim que ela é vista. No entanto, os grandes poetas brasileiros de hoje – penso em Adélia Prado, Nelson Archer, Lucinda Persona, Paulo Henriques Britto, Manoel de Barros, Fabrício Carpinejar –, tão diferentes entre si, só se tornaram grandes poetas porque não se importam com nada disso. Porque continuam, solitários, silenciosos, fiéis a si mesmos, a seguir seu caminho. A literatura é o reino do particular: como generalizar o particular? A literatura é algo que se impõe – Clarice dizia que os livros nos escrevem, e não ao contrário – então como domá-la? Muita gente alimenta essas ilusões. Pois que continuem iludidos.

8. E você, José Castello, já quis ser também poeta? Se fosse, qual tipo de poeta seria? Mais do tipo que exterioriza seu interior – um lírico –, como o Poeta da Paixão? Ou mais para o lado do que interioriza o exterior – um “épico” –, como o Poeta-viajante? Será que poderíamos resumir a poesia a esses dois extremos? Descobrindo o “método” (no dizer de Valéry), de Vinicius e de João Cabral, podemos arriscar que você esgotou o tema?

Como todo adolescente, escrevi poesia, péssima poesia. Joguei tudo no lixo. Mas não é raro eu ouvir a sugestão de que deveria escrever poesia. Semana passada mesmo, recebi o e-mail de um grande amigo do Rio que acabara de ler o Diário de Tudo. Entusiasmado, ele me perguntou: “E aí, Zé, e a poesia?”. Talvez isso aconteça porque transito nesse espaço limítrofe e impreciso, nessa terra de ninguém em que os gêneros se confundem e se misturam. Gosto quando me perguntam pela poesia, porque essa pergunta indica que continua difícil definir o que faço, que continua difícil decidir quem eu sou. Repito Clarice: e lá sei eu quem eu sou?

9. Outra questão irresistível: sua ida para Curitiba. No começo perguntei como você conciliava os livros à labuta do jornalismo, meio que insinuando que você escrevia menos do que gostaria, mas, agora, analiso que provavelmente a mudança te fez escrever mais, ou ajudou a se organizar melhor, estou certo? Curitiba tem algo que atrai os literatos, como você e o controverso Décio Pignatari? Serão os exemplos de Dalton Trevisan e Wilson Martins? E para encerrar o tópico, o que você acha da trajetória de Paulo Polzonoff Jr., que tomou a via oposta à sua?

Curitiba é uma cidade introspectiva, de clima frio, e de pessoas, em geral, discretas, senão desconfiadas. Esta atmosfera, diz-se, combina com a rotina do escritor, que exige solidão, silêncio, recolhimento, quem sabe até uma vida monástica. Mas exige mesmo? Clarice escrevia na cozinha, enquanto vigiava um bolo e dava de comer aos dois filhos. Adélia também escreve em sua cozinha mineira, entre panelas e orações. Nelson Rodrigues escreveu muitas de suas peças em plena balbúrdia da redação do Globo. Drummond escrevia em sua mesa de burocrata. Vinicius escrevia poemas em guardanapos de boates. Então, dizer que Curitiba é uma cidade literária é, só, um preconceito. Sim, aqui vivem Décio Pignatari, Wilson Martins, Dalton Trevisan, Cristovão Tezza. Mas João Gilberto Noll, Lya Luft, Moacyr Scliar, Luiz Antonio de Assis Brasil vivem em Porto Alegre. E daí? Não vejo relação alguma. É verdade, minha vinda para Curitiba coincidiu com um momento pessoal de opção mais definitiva pela literatura. Mas Sérgio Sant’Anna vive em Laranjeiras e é um grande escritor, e Rubem Braga vivia no coração de Ipanema e foi o maior cronista brasileiro, e João Cabral escreveu parte importante de sua poesia em cidades agitadas como Sevilha, Barcelona e Londres. Então, o que isso quer dizer? Nada quer dizer.

10. A última pergunta já é quase clássica aqui... Pegando o gancho do Polzonoff, o que você diria para críticos que estão se lançando na profissão? O que você faria diferente e o que repetiria do mesmo jeito? Existe um caminho para um “biógrafo de carreira”, digamos assim? Há interesse, ainda, para a crítica (para que se leia a crítica) ou as hordas de autores novos fazem de tudo para silenciar o exercício crítico mais definitivo?

Tome o exemplo de um médico, um cirurgião. Ele cursou a universidade, e se aprimorou na prática de hospital, encheu a parede de diplomas e acumulou prestígio entre seus pares. Mas, quando ele entra na sala de cirurgia para operar alguém, parte sempre do zero. Tem sua técnica, tem seu saber, mas cada corpo é um corpo, cada cirurgia é uma cirurgia, e muitas vezes só a capacidade de improvisar o salvará, e a seu paciente. É claro, na literatura, o improviso é um elemento crucial. O improviso, e também o acaso. Então, o que dizer para os candidatos a críticos? Só uma coisa: leiam. Aliás outra: só se dediquem à crítica se, de fato, a literatura os apaixona. Vinicius odiava os mornos, com suas mesuras, prudências e sua estúpida sensatez. É claro, a prudência, a delicadeza, o equilíbrio são valores preciosos, mas nada disso basta. É preciso, sempre, cultivar uma dose de insensatez.

No fim dos anos 70, quando resolvi me analisar, fiz uma entrevista, no Rio, com um psicanalista de grande prestígio, em particular de grande prestígio intelectual. O cara me ouviu durante quase duas horas, em absoluto silêncio. Enfim, moveu os lábios, e me preparei para escutar a frase genial que ele teria a dizer. Sabe o que ele me disse? “Siga seu coração”. E nada mais, foi só isso mesmo. Parece uma dessas frases que a gente ouve na Hebe, ou na novela das sete, ou que se bordam nos aventais de cozinha. Pois foi o que ele disse, e eu nunca esqueci. Parei de pensar, segui meu coração e resolvi me analisar não com ele, mas com outro psicanalista, uma mulher fabulosa, que eu conhecera semanas antes. Foi uma das mais importantes decisões de minha vida. Então, imitando esse psicanalista silencioso, que só me disse essa frase estúpida, mas devastadora, só tenho uma coisa a dizer a esse candidato a crítico: se é mesmo o que você quer, vá em frente.

Para ir além





Julio Daio Borges
São Paulo, 7/8/2006

 

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