busca | avançada
99796 visitas/dia
2,4 milhões/mês
Terça-feira, 19/8/2003
Digestivo nº 141

Julio Daio Borges

>>> CITIZEN KANE Não há muito o que acrescentar à morte de Roberto Marinho. Talvez fazer alguns apontamentos sobre o que foi dito, afinal “todo mundo” se manifestou a respeito. De início, é preciso apontar que a cobertura dos jornais foi fraca. Muito aquém das dimensões da figura que forjou as Organizações Globo. Por ironia (ou por motivos muito óbvios), a televisão, mais especificamente a TV Globo (via seu carro-chefe, o Jornal Nacional), foi a única a conferir – em tempo real – o devido relevo a essa personalidade histórica. Para o bem ou para o mal. Como o próprio Roberto Marinho, aliás. As revistas semanais também quiseram noticiar o fato com destaque, mais notadamente a “Época”, inclusive com um caderno especial (por motivos igualmente óbvios). Mas, independente de quem deu “mais” ou “primeiro”, o tom foi majoritariamente laudatório, como reza a tradição brasileira (que santifica os mortos, sejam eles quais forem). Dos veículos de que se poderia esperar alguma “incorreção política”, ouviu-se palavras tão ou mais reverentes do que aquelas “oficiais” (vide, por exemplo, o editorial de Ziraldo em “OPasquim21”). O homem que em vida despertou paixões e ódios, de repente, viu, no momento da morte, sua trajetória confluir para uma imagem “positiva” e consensual. Nesta hora, vale repetir o adágio de Nélson Rodrigues: – Toda unanimidade é burra. (Por mais que Nélson considerasse Roberto Marinho seu “irmão íntimo”.) Atualmente, portanto, é mister desconfiar de todo e qualquer panegírico do morto. Pois, tudo o que se refere a ele, agora, adquire um certo “toque de Midas” de além-túmulo – o que está longe de refletir a verdade. Começando pela Rede Globo. Citou-se as benfeitorias da teledramaturgia nacional, sua exposição no Brasil e no mundo. Mas será que ela foi, digamos, mais relevante que a música difundida pela Rádio Nacional (a “Globo da época”), e que lançou as bases para a Bossa Nova, a MPB e o cancioneiro que coloca o Brasil em pé de igualdade com os maiores produtores de música do mundo? É provável que não. Fora o óbvio ululante: a televisão brasileira, via Globo, pasteurizou a cultura, as artes e os costumes – e, por mais que as “intenções” (de unificação do território nacional) tenham sido boas, os danos, à inteligência nacional, foram consideráveis. Esse inventário ainda precisa ser feito, e o balanço resultante certamente não favorecerá o “Doutor Roberto”. Ele espera, como Chatô, por seu Fernando Morais. Uma biografia de envergadura seria um passo nessa direção – e não esse jornalismo restritivo e adulador.
>>> Roberto Marinho (*1904 - †2003)
 
>>> DIAS MELHORES? Todo mundo quer ser famoso. Mais do que feliz. Mais do que qualquer outra coisa. E o Jota Quest segue a receita. Aquela banda mineira, semidesconhecida, que se apoiava na “black music”, assinando “J. Quest” (“Jay Quest”), em 1996, foi arrastada para o limbo da existência. Ninguém mais se lembra. Antes de sucumbir aos apelos da “Fanta”, Rogério Flausino e seus asseclas abraçaram a fórmula do sucesso: trocaram um pretenso “estilo” por baladas de assimilação rápida (“Fácil”) e levadas que não passam de um único refrão (“Na moral”). Mas ainda havia a esperança de que eles retomassem as boas intenções do primeiro álbum: faixas como “As dores do mundo” e “Encontrar alguém”. Aliás, são elas que praticamente abrem o recente “MTV ao Vivo”, como se o Jota Quest estivesse atrás de uma certa inocência perdida. E não foram buscar respaldo apenas no passado: quiseram provar que sabem fazer “rock de arena”, reunindo uma multidão em Belo Horizonte, muito além das reais dimensões da banda. O que houve foi que Flausino e sua turma cresceram demais, e sem estrutura. A inspiração anda, a cada disco, mais escassa, mas a projeção do conjunto promete chegar até a Lua. O encarte sugere, pelas fotos, uma apresentação histórica. Mas “História”, mais do que com “produção”, se faz com “música”. É completamente artificial, por exemplo, a participação de dois ex-Titãs: como se o Jota Quest precisasse, além da maquiagem e dos holofotes, da benção da geração anterior. (Interessante notar como a mídia se preocupa com o ritual da “passagem do cetro”, embora, no regime feudal da música tupiniquim, ele em verdade nunca passe [vide os caciques da autofágica MPB, que Luís Antônio Giron declarou morta].) Enfim, o pessoal do Jota Quest desistiu há muito da música – e julgá-los por critérios estritamente musicais é mal compreender o “fenômeno”. Se eles escolheram o “mainstream”, não poderiam ter se saído melhor. Mas, se não escolheram, jogaram uma grande chance fora. A mesma que não bate duas vezes à mesma porta.
>>> MTV ao Vivo - Jota Quest - Sony
 
>>> SEM TÍTULO Alberto Beutenmüller, crítico de arte, cansou de ver os jovens se debatendo para tentar entender o pós-modernismo e lançou “Viagem pela Arte Brasileira”, seu manual didático, pela editora Aquariana. Alberto passeia pelos movimentos e pelos principais nomes de nosso País, desde a “arte rupestre” até as “tendências atuais”. O texto é fluido, para se ler cada capítulo ou verbete em alguns minutos. O volume tem uma apresentação ágil, que vai conquistar o leitor de hoje, com ilustrações oportunas e um pequeno encarte, no final, com as obras mais relevantes em detalhe. Partindo do princípio que as inquietações da juventude atual se manifestam mais veementemente a partir do modernismo, Beutenmüller reserva quase metade das páginas ao século XX e às suas manifestações. O que é correto, pois o leigo normalmente se vê assaltado por dúvidas numa Bienal, num museu de arte contemporânea ou numa exposição sobre o que se fez nas últimas décadas ou no último século. Dificilmente o embate se dará com o acervo do Brasil colonial ou imperial. Mesmo assim, é fundamental saber o que se fez nesse tempo – principalmente no que se refere ao nosso barroco (um dos mais esplendorosos de que se tem notícia) e aos registros de viajantes que por aqui passaram, mais notadamente holandeses e franceses. Terminamos descobrindo que houve até impressionismo no Brasil e que o nosso legado mereceu inclusive um “Breve Dicionário”. Nele, Alberto esclarece conceitos como o de “academicismo” ou de “neoclassicismo”, enquanto abarca movimentos como o “tropicalismo” (sim, não foi só na música) e o “romantismo”, passando por grupos como o “Santa Helena” e o da “Geração 80”. Enfim, vai agradar a gregos e troianos – ao mesmo tempo em que vai salvar os estudantes da ignorância perpetrada pelos meios de comunicação.
>>> “Viagem pela Arte Brasileira” - Alberto Beutenmüller - 135 págs. - Editora Aquariana
 
>>> CONTRA MUNDUM Edward Said, um dos mais renomados intelectuais dos Estados Unidos em matéria de “orientalismo” (embora implique com o termo), quem diria, ganhou notoriedade até no Brasil. Com a intenção declarada de Bush de apaziguar os conflitos entre palestinos e israelenses, seria natural que uma autoridade no assunto, no caso, Said, fosse chamada a opinar. E aconteceu na “Veja” de algumas semanas atrás. Nas páginas amarelas, como era de se esperar (para quem acompanha os escritos de Said), ele disse não acreditar nas negociações, prevendo que vão irreversivelmente fracassar. Foi uma entrevista breve, com o seu quê de bombástica, não permitindo que se conhecesse o pensamento de Edward Said em maior profundidade. Para os que se interessam, a Companhia das Letras lançou, neste ano, “Reflexões sobre o exílio”, uma coleção de ensaios com edição do escritor Milton Hatoum. O livro não é tão bem escrito quanto o de um George Steiner (a quem o autor cita e, de alguma maneira, se compara), mas chama a atenção, em alguns pontos, por trazer a visão do “outro lado”. Ou seja: como vivemos maciçamente cercados pelo ponto de vista de Israel, e dos judeus do mundo inteiro, há algo de enriquecedor em nos vermos contrariados. Além de palestino de nascimento, Said tem como bandeira uma reavaliação do papel do Oriente na cultura ocidental. Com inclinações à esquerda, resvala no patrulhamento, considerando o “Cânone Ocidental” uma imposição dos “poderosos”, e até chega a incentivar a “ação afirmativa” das chamadas “minorias” nos Estados Unidos. Por esses e por outros motivos (há que se levantar, claro, as datas em que disse isso ou aquilo), mostra-se equivocado, e alguns de seus textos parecem bastante difíceis de atravessar. É preciso separar o joio do trigo, aproveitando suas vivências (a melhor parte do livro) e deixando de lado a pedreira do ultrapassado marxismo, da cansativa semiótica e da politiqueira filosofia. Como Steiner, porém, Said é um poliglota, culto, lido – não muito fácil de confrontar. Ainda assim, não há mal em duvidar de suas certezas (algumas histéricas demais) e nem em considerar o seu discurso tedioso (quando se estende por dezenas de páginas).
>>> Reflexões sobre o exílio - Edward Said - 352 págs. - Companhia das Letras
 
>>> MAU HUMOR

“História, s.f. Um relato, quase todo falso, de eventos, quase todos sem importância, provocados por governantes, quase todos uns velhacos, e soldados, quase todos uns patetas.” (Ambrose Bierce)

* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

busca | avançada
99796 visitas/dia
2,4 milhões/mês