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Segunda-feira, 17/6/2002
Um paralelepípedo

Julio Daio Borges




Digestivo nº 86 >>> Heidegger afirma que Nietzsche só pode ser entendido a partir dos escritos que deixou inacabados. Se alguém quiser compreender o método de Kafka, tem de inevitavelmente passar pelos capítulos que ele escreveu mas não quis acrescentar (a O Processo, por exemplo). O mesmo se dá em relação a Nélson Rodrigues. Diante do lançamento de “A Mentira” (romance) e “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo” (consultório sentimental), a crítica tem sido unânime em considerar o acontecimento desimportante, por se tratar de obras “menores” do autor. Acontece, porém, que nenhum escritor será devidamente assimilado se não estiver representado em todos os seus momentos: os bons e os não tão bons. Na verdade, a ausência de Ruy Castro (estóico organizador da obra do Anjo Pornográfico) no prefácio, já dava sinais de que os resenhistas refugariam, em conjunto, o material inédito. De qualquer jeito, e isso ninguém tasca, o “pior” Nélson Rodrigues é sempre largamente superior ao melhor nome que se puder evocar nas prateleiras das livrarias do tempo presente. “A Mentira”, para que se tenha uma idéia, é um primor de realização folhetinesca; obviamente desestruturada, afinal não foi pensada para sair em livro, mas, de qualquer jeito, plena em requintes verbais e achados do falar carioca dos anos 40. Fora que: ora reflete as obsessões rodrigueanas (as taras no núcleo familiar, as tensões que explodem tragicamente, o mundo pequeno-burguês das aparências); ora antecipa elementos que surgiriam posteriormente nas peças do grande dramaturgo. Já em “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”, Nélson Rodrigues põe em prática a sua filosofia do amor; disfarçado sob o pseudônimo de Myrna, aconselha as leitoras inconsoláveis que escrevem para o Diário da Noite. Desfila conceitos como o da eternidade no amor, a irracionalidade (e o descontrole) do sentimento, a necessidade de se anular (como personalidade) para alcançar a felicidade conjugal, etc. Não é, logicamente, uma novidade para quem já conhece; mas certamente uma recompensa, para quem quiser descobrir algumas das páginas mais profundas publicadas pelo embrulha-peixe.
>>> A Mentira | Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo - Nélson Rodrigues - Companhia das Letras
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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