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Segunda-feira, 4/4/2005
Yo soy la que no buscas

Julio Daio Borges




Digestivo nº 221 >>> Velho de 90 anos resolve transar com uma virgem no dia de seu redondo aniversário. Um enredo aparentemente libidinoso, e até banal numa era de sexo exacerbado, de repente pode se transformar numa pequena obra-prima, quando se trata de um dos maiores escritores da atualidade: Gabriel García Márquez. Embora tenha sido vendido assim, numa época em que os hormônios juvenis decidem tudo, Memoria de mis putas tristes, é uma narrativa sofisticada, finamente elaborada, onde as cenas de sexo, de uma delicadeza ímpar, no todo quase não importam — porque praticamente não ocorrem. O velho em questão encontra sua virgem em menos de 24 horas, mas, ao invés de deflorá-la e descartá-la de sua existência provecta, apaixona-se e passa a amá-la, ainda que, aos 90 anos, a única coisa que possa infringir-lhe na carne sejam algumas massagens nas costas, ao tocar-lhe enquanto dorme e ao enxugar-lhe o persistente suor. As meditações subjacentes sobre a velhice valem por algumas das melhores páginas de Cícero e a trilha sonora, se é que assim podemos chamar as citações aos compositores clássicos, são pura alta cultura — num tempo sufocado pela cultura (e pela música) pop. García Márquez parece enfrentar, menos sutilmente do que se pensa, a agitação e a movimentação contemporâneas, ao retratar uma existência aos nossos olhos vazia, mas, em suas manifestações mínimas, rica em tesouros espirituais. É impressionante que, em um livrinho de 100 páginas, consiga dizer tanto sobre a vida — se, em tratados volumosos de centenas de páginas, nossos intelectuais de hoje se percam, em janelas infinitas, sem atingir um todo inteiro e uniforme (a redundância, aqui, é proposital). É a obrigação de artistas e de pensadores de ontem e de hoje: fornecer uma visão de mundo, mais do que se lançar em interrogações sem rumo. E, nesse ponto, Memoria de mis putas tristes é brilhante. Quem sabe, se os nossos autores lessem, tomassem vergonha na cara e procurassem pretensões mais elevadas — e permanentes. Ou, ao menos, desistissem das suas — deixando os verdadeiros mestres com a primazia no falar, já que o público, perdido entre tantas coisas desimportantes, não os ouve mais.
>>> Memoria de mis putas tristes - Gabriel García Márquez - 109 págs. - Editorial Sudamericana
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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