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Quinta-feira, 30/10/2003
As prisões de Guel Arraes e Cláudio Assis
Lucas Rodrigues Pires

Os filmes de Guel Arraes e Cláudio Assis, respectivamente Lisbela e o Prisioneiro e Amarelo Manga, sofrem de certa prisão a princípios estabelecidos de antemão. O primeiro está preso a certo rótulo de cinema popular, que deu muito certo com O Auto da Compadecida; o outro sofre de vontade demais, de disposição demais para chocar sem pensar muito no processo de realização.

Lisbela e o Prisioneiro é o que se poderia chamar de mais do mesmo, como já dito aqui mesmo neste Digestivo. Dirigido por Guel Arraes, este não tem nenhum pudor em igualar cinema e televisão, ação, aliás, típica de homens da televisão que se aventuram pelos ares do cinema.

Mas em Lisbela o que aconteceu foi que Guel acabou prisioneiro de seu próprio talento, demonstrado em O Auto da Compadecida. E esse espectro gerou nele a repetição, a imitação, a multiplicação e, por conseguinte, exaustão de elementos de uma fórmula, se original em determinado momento, cansativa e despropositada em outro. O filme traz os mesmos atores vivendo praticamente os mesmos personagens de O Auto da Compadecida. Mais uma vez Selton Mello é o herói às avessas, sedutor e malandro; Marco Nanini, de cangaceiro matador em um para corno matador e perseguidor implacável noutro; Virgínia Cavendish e Bruno Garcia são os coadjuvantes de ambos os filmes. Parece que Guel pôs à prova a tese de que “time que se ganha não se mexe”. Só isso para explicar a repetição dos atores, dos personagens, das situações, do humor por vezes inteligente por vezes despropositado. Mas aqui a fórmula saturou, ainda mais com a inclusão de um ator de comédia, Tadeu Mello (da Turma do Didi), que, se nas comédias de Renato Aragão ele funciona bem, num filme como Lisbela seu papel soa forçado e sem graça, ficando nítida a vontade do diretor de expor no cinema certas gags cômicas bem-sucedidas na televisão.

O sertão novamente é o palco da narrativa. Nenhum paralelo ao sertão revolucionário do Cinema Novo, apenas uma decisão em função da obra original de Osman Lins. Pelo contrário, aqui o sertão é palco do lúdico, da malandragem, do espaço do pseudoartista que leva a vida sem pensar no amanhã. Um possível revolucionário, já que Leléu é o pequeno que escapa sempre aos grandes, que se perde pela direção do roteiro, privilegiando o cômico, o farsesco, o supostamente inusitado (que, na verdade, é mais do que já esperado). O que poderia ser um embrião de algo a ser refletido pelo espectador se esvai como a lágrima na chuva pela auto-imposição do diretor de querer fazer um cinema dito popular. Para Guel, esse popular recai nas tendências a igualar duas linguagens diferentes – cinema e televisão –, montar o filme sem deixar uma possibilidade de reflexão e silêncio ao espectador, sem deixar de lado a fórmula hollywoodiana de dar ao público o gosto do final feliz.

Felizmente para os produtores, Lisbela está sendo um sucesso (3 milhões de espectadores). Para quem pensa num cinema brasileiro mais independente e original, fica o aviso de que a almejada indústria de cinema é, infelizmente, isso – filmes para entreter massas e cujo sucesso está cada vez mais permeado pelo extracinema como linguagem (distribuição, comercialização, marketing). Essa discussão e suposto hibridismo de cinema e televisão, sempre em voga no discurso de Guel Arraes quando este fala de seus filmes, já virou redundância. Assim como Lisbela e o Prisioneiro, assim como o próprio Guel. Oxalá o diretor volte a seus bons tempos quando descobrir o que é um e o que é outro, mesmo que ambos sejam a mesma coisa.

Amarelo Manga tem sido o filme que muitos viram como o fôlego de rejuvenescimento que faltava ao cinema brasileiro. Vencedor de diversos prêmios pelo Brasil, essa obra do pernambucano Cláudio Assis é um libelo da ambigüidade encontrada no cinema brasileiro. Tem suas qualidades, em especial nos atores, na fotografia de Walter Carvalho e na fuga do eixo Rio-São Paulo, mas esbarra em elementos muito simples do que se convencionou ser o embrião de revolução, da rebeldia, da renovação: mostrar imagens que chocam. E Amarelo Manga bebe desse elixir alucinógeno – contém imagens que buscam chocar os mais pudicos. A começar pelo cartaz do filme, que só os olhos mais atentos verão um púbis feminino. Cenas da morte de um boi, o sangue escorrendo e o sofrimento do animal contrastam com cadáveres, o púbis loiro em close da dona do bar, as imagens sugeridas pela poesia do amarelo podre e a transformação radical da cristã devota em devassa e transgressora. Tudo muito bem costurado, mas que soa como fetiche do chocante. A intenção do diretor não foi fazer um filme, mas sim chocar uma classe média estabelecida, que é maioria nas salas de cinema. O filme foi um pretexto encontrado para tanto.

Um filme que busca retratar o submundo do Recife parece cuspir seus personagens e lhes vestir carapuças que nos façam repudia-los. O homossexual de Matheus Nachtergaele se mostra implacável ao que se refere à realização de seus desejos. Como não ver certo preconceito e estereotipação quando, num monólogo para o espectador, Dunga diz “Bicha quer, bicha faz!”? Certo que este é o personagem criado por Assis, não é ele uma representação de todos os homossexuais, mas quando se fala em ética no cinema e se critica Cidade de Deus, não podemos fugir da discussão com tal argumento. Que o diretor exponha certo ceticismo e ranço frente à humanidade, é inteiramente compreensível, mas o que Amarelo Manga mostra é toda uma série de personagens que fogem de qualquer esquema de identificação e projeção do espectador. Assis nos afasta de seus personagens, nos nutre certa aversão e a nossa aversão é a mesma dele próprio frente à sua criação. Isso porque nenhum dos personagens é confiável, nenhum deles é valoroso em algum aspecto; ressalta-se o lado obscuro. O que deveria ser uma virtude do filme – bem e mal não estarem pré-definidos – se perde no caminho, o que impede a direta conexão filme-personagem-espectador. Dunga, o homossexual, que em tese teria a virtude de ser mais sensível e compreensível porque sofreria com o preconceito, se mostra sórdido e calculista para atingir seus objetivos; a esposa devota e religiosa, quando descobre a traição do marido, transforma-se em outra mulher, explodindo num casamento de sexo e luxúria do modo mais devasso possível.

Se um filme é algo para ser visto, suas idéias e como elas estão representadas também são. Percebê-las ou não, no campo do consciente, é de cada espectador; já no campo do inconsciente não. Daí toda a polêmica em torno de propagandas com mensagens subliminar consideradas antiéticas.

Pode-se detestar o filme de Assis como também se pode amá-lo, depende de como cada espectador recebe e decifra as imagens exibidas, mas perceber certas reduções representativas de tipos é de responsabilidade daqueles se julgam criadores. O choque como denúncia tem um contexto de existir, mas o choque como mero estratagema de camuflar um sentimento, não.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 30/10/2003

 

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