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Segunda-feira, 4/12/2006
Namoro de portão
Verônica Mambrini

Minha história com o Digestivo Cultural parece um pouco com namoro de portão: nem lembro bem exatamente quando comecei a ler, mas já faz um tempinho. Eu, que me formei ano passado, estava na primeira metade da faculdade. Assinei a newsletter e comecei a acompanhar novos colunistas chegando, as clássicas polêmicas em assuntos ligados à cultura pop, à discussão literária. A primeira sensação é de um estranhamento delicioso: muito texto, assuntos não obrigatoriamente vinculados à ordem do dia e, paradoxalmente, uma das coberturas opinativas de Internet mais vanguardistas a qual eu tinha acesso.

Um dia eu fiquei sabendo, pela leitura do Digestivo, que um colega de faculdade estava estreando coluna: era Guilherme Conte, escrevendo sobre teatro. Comecei a acompanhar mais de perto, primeiro porque já lia o Digestivo, depois porque era uma pessoa bacana assinando e enfim porque era um assunto que me interessa muito (cheguei a fazer um programa para a rádio da faculdade, o Terceira Campainha, que sumiu sem deixar vestígios, inclusive dos arquivos da rádio universitária).

De repente, meses depois, aparece um convite (via Orkut, comme il faut) para escrever para o site. Julio Daio Borges perguntou: "Você já pensou em escrever para o Digestivo?". Sim, eu já tinha pensado. Eu já tinha jogado uns olhos compridos... Comecei pelo blog, não por limitação editorial, e sim por uma questão minha mesmo. Vontade de ir pegando o jeitinho do Digestivo mais aos poucos. Uma caipira acanhada atrás do portão, olhando pro mar da Internet. E acabou sendo bom para mim esse começo tímido: faculdade de jornalismo é algo castrante. Se não tomar cuidado, a gente acaba em quatro anos desaprendendo a escrever de um jeito espontâneo, e começa a ficar cheio de cacoetes e soluções formulaicas. É claro que isso não acontece com todo mundo, mas se a faculdade de jornalismo inegavelmente, por um lado, te ajuda a resolver problemas técnicos de texto, como clareza e objetividade, por outro é uma fábrica de salsicha. Com jornalismo cultural, então, é um pesadelo.

Acho que existem duas formas de se aprender a escrever: uma é lendo bons textos. Escolher com carinho o que se lê e prestar atenção em como forma e conteúdo se harmonizam (ou fazer o contrário, se perguntar por que determinado texto não funciona), seja em embalagem de chocolate, quadrinhos de jornal ou clássicos da literatura universal. Mas tem uma outra forma que é a minha preferida: ter tutores, alguém que escreva bem e seja um bom editor, que pare para canetar textos, enchê-los de marquinhas, rabiscos e comentários. Das primeiras vezes em que submeti meu texto a isso, saíram quebra-paus enormes e conselhos sem preço. Doeu. Cheguei a chorar. Mas depois comecei a gostar, não sei se masoquistamente. Você dá sorte quando encontra alguém que não é apenas um bom editor, mas um educador também. Às vezes um texto precisa de rigor e técnica, mais cérebro e menos emoção; qualquer manual de redação resolve. Mas às vezes, texto tem que ter capricho na estrutura, no ritmo, na musicalidade. E texto vivo, pulsante, só quem tem alma de educador (quem sabe de poeta-cronista) sabe canetar.

Ouvir esse tipo de crítica sem pressa, sem obrigação de mudar o texto, traz muitas surpresas interessantes - mesmo quando não se concorda com o comentário. A maioria das pessoas que eu conheço e que escrevem detesta ser editada, e é compreensível, já que geralmente quando se passa por essa situação, as mudanças no texto são irrecorríveis e violentas, mutiladoras, não um jogo divertido de experimentação com frases, estruturas e significados. Eu bem que queria ter o rigor e a disciplina germânicos para sentar e escrever como quem conserta um eletrodoméstico quebrado, mas nessa nossa cultura latina, escrever é quase sempre um ato de paixão. Mesmo quando os filtros são intelectuais, a motivação para entender e discutir a cultura é visceral. E um texto é defendido a navalha como quem protege a própria cria.

Atravessar esse processo não foi fácil para mim; se aprendi a aproveitar o que a opinião alheia pode ter de bom, também perdi a personalidade no texto e até a vontade de escrever algo que tivesse a minha cara (e não a cara do cliente ou publicação para quem eu estou escrevendo. Sabe aquele momento em que você não sabe o que gosta, em que redige até bilhetinho pessoal editando em função dos outros o que está escrevendo?). Mas acabada a faculdade, e com mais tempo para refletir sobre a vida e a escrita, deu prazer em escrever de novo - ainda que esse prazer para mim tenha se tornado para sempre agridoce. Logo aí, surge o convite para fazer parte do Digestivo Cultural.

Por conta dessas reflexões, o Digestivo para mim também foi um batismo de fogo no jornalismo, e mais ainda. Não só com formas e temas, foi a grande quebra de paradigmas com relação à Internet, e também com a mídia em geral. Hoje acredito piamente que o jornalismo como conhecemos vai acabar; esse ambiente de liberdade total, de auto-regulação e edição que é a Web, com regras novas, mudou a mídia irreversivelmente. Hoje sou uma entusiasta ardorosa do Google (viciada a partir do momento em que o Gmail, o Orkut e o Google Talk se integraram), e defensora do wiki. Não puramente por questões ideológicas (mesmo que também por elas), mas porque o futuro caminha para a colaboração como forma de se relacionar com a informação. E o que o Digestivo tem a ver com isso? Simples: para mim, como leitora e colaboradora, foi onde começaram essa percepção e discussão. E é impossível passar por esse ambiente sem se deixar mudar, no texto, nos temas, na alma.

Tem namoro de portão que não dá em nada; mas às vezes vinga. Esta é minha segunda coluna, depois de alguns meses postando no blog do Digestivo. Ando de novo apaixonada pelo texto, pelo ato de escrever, pela descoberta de novas formas de pensar e traduzir o mundo. Faz tempo que eu não andava por aí com a sensação de ter borboletas esvoaçando no estômago - e com a leveza de descobrir que o melhor texto é o texto que dá prazer em fazer e ler.

Verônica Mambrini
São Paulo, 4/12/2006

 

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