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Quarta-feira, 20/12/2006
Ex-míope ou ficção científica?
Ana Elisa Ribeiro

Outro dia me peguei dizendo assim: "Quando eu era míope...". E achei aquilo tão engraçado que decidi pensar mais sobre o assunto.

Faz pouco tempo, eu pensava que ser míope era coisa para o resto da vida. Quase acho que nasci assim. Lá pelos 5 anos já me levaram ao médico para ver o que havia de errado. Não enxergava o quadro em que a professora escrevia que Ivo viu... Ivo viu... o que mesmo? E eu não via. Preferia pedir os cadernos dos colegas emprestados. Para minha sorte, tinha bons amigos. Mantinha tudo em dia, mas à custa de algum atraso na cópia.

Meus primeiros óculos estão guardados no armário do escritório. Fiz deles uma coleção, de todo tipo. O número 1 é de "gatinha", com pedrinhas na lateral. Escolha da minha mãe, claro. Aos 12 anos, tinha um de aros ovais pretos. Era com eles que eu tentava ser atleta na escola. E à medida que eu corria e suava, as lentes ficavam embaçadas e o aro balançava na minha cara. Um vexame.

Mas o que me fez deixar de usar óculos não foi isso. Não foram as lentes de fundo de garrafa (àquela altura já uns 5 graus), nem os aros esquisitos misturados à sobrancelha grossa. Foi um cara.

Na adolescência, eu fazia coleção de discos de vinil. Ouvia heavy metal, cantava em banda, essas coisas que se faz antes de virar gente grande. Acho que fiz muitas delas. E a loja das bolachas era a Cogumelo, no centro de BH, selo de música independente (lançaram o Sepultura e o Pato Fu, nos idos de 1990). A loja era pequena, um gueto da música, dos cabeludos de roupa preta. Eu deixava de merendar na escola para comprar os discos. E um dia, quando subia a avenida Augusto de Lima, um moço vinha na direção contrária. Quando passou por mim, disse para eu ouvir: "Bonita... pena que usa óculos". Aquilo me embargou.

Comprei meu disco, cheguei em casa e decidi: "Mãe, não uso mais óculos. Quero umas lentes de contato. Amanhã". No dia seguinte, estávamos lá no doutor André, oftalmologista da família desde nossas infâncias míopes e astigmáticas.

Compramos umas lentes rígidas. Diziam que a adaptação seria difícil, talvez nem acontecesse. Mas a vontade de me livrar dos óculos era maior do que tudo. As lentes não seriam páreo para mim. Quando chegaram, já no teste me dei bem com elas. O astigmatismo alto não permitia as gelatinosas. O jeito foi fazer amizade com as duras mesmo.

Usei lentes de contato por 16 anos seguidos, sem um fungo sequer. Nem tinha tanto cuidado assim, mas tratava delas como se fossem mesmo meus olhos portáteis. Só um alto míope sabe o pânico que é perder as lentes na rua, no ônibus, num lugar fora de casa. Viajar com aquela parafernália, ter duas ou três frasqueiras, pagar caro por um vidro de OptiFree (ou coisa que o valha), ter medo de ver a lente escorrer pelo ralo. Casa de míope que usa lentes tem sempre redinhas nos ralos das pias, vidros de solução estéril no banheiro, óculos na mesa de cabeceira.

Há míopes que dormem com as lentes. Eu não. Tinha medo de uma úlcera na córnea, o grande terror dos subnormais de visão. E o fato é que jamais eu tivera a experiência de acordar enxergando. Abria os olhos e via um mundo embaçado, muito indefinido, quase apenas em claridades esparsas. Antes mesmo de desligar o despertador, metia as mãos para pegar os óculos e colocá-los no rosto. A salvação era isso, mas a vergonha também. Não sabia brincar como se eles fossem acessórios. Enxergar era a primeira providência do dia.

Altos míopes têm a noção espacial muito desenvolvida. Eu andava pela casa de madrugada confiando apenas no meu instinto. Precisava beber água ou me desfazer dela, passava as mãos pelas paredes, trincos, portas e tampas. Tudo certo. Mas pela manhã, se não catasse logo as lentes, era perigosíssimo sentar no mijo de algum homem da família. Muito comum que os irmãos não tivessem mira boa e deixassem rastro no assento do vaso. As míopes todas da família sabiam a raiva que isso dava.

Ao longo do dia, era comum ser chamada de metida. Passava pelas pessoas sem cumprimentar. Não enxergava, era isso. E um detalhe: reconhecia os amigos pelo andar. Dificilmente pelos traços menores do rosto.

Há um documentário sensibilíssimo a que assisti pelo menos umas 10 vezes. Janela da alma é um filme de pouco mais de 1h de duração e vários flashes de pessoas famosas com problemas de vista. Os mais comentados são José Saramago, Wim Wenders e Hermeto Pascoal. Lindíssimos depoimentos. Mas Arnaldo Godoy, para mim, foi uma história à parte. Trata-se de um vereador de Belo Horizonte, hoje completamente cego, que perdeu a visão ainda jovem em decorrência de uma doença, a retinose pigmentar. No filme, conta ele as agruras que passou por ser cego.

Faz pouco tempo, estava eu num cinema de BH, quando Arnaldo Godoy se aproximou, com um amigo, para fazer propaganda eleitoral do Lula. Não me contive. Comentei logo sobre o depoimento dele em Janela da alma, convenhamos, muito melhor do que falar de política.

E esse é um filme que enfio em todo curso que vou ministrar. O mais relacionado deles é a especialização em Revisão de Textos da PUC Minas. Vejam só: falar de olhos para revisores. Nada melhor. Os alunos riem, choram, se entediam, se emocionam. Além disso, peço que leiam (e cobro trabalho) um livro do Saramago chamado História do cerco de Lisboa, obra que tem como protagonista um revisor de textos meio metido a autor. Juntando o livro e o filme ainda é possível tecer comparações. O depoimento de Saramago aparece em alguns parágrafos do livro.

Todo míope (que cresceu com a doença) se lembra do momento em que viu com nitidez pela primeira vez. Minha mãe conta que enxergou a definição das folhas na copa de uma árvore. Pela primeira vez, a árvore deixava de ser um arredondado verde individido. Para mim, a memória traz a lâmpada da iluminação de uma rua à noite. Foi naquele dia que percebi que dentro daquela cúpula de vidro se podia divisar uma lâmpada pequena. E há mais histórias. Muitas mais. Tantas quantas forem as pessoas com visão subnormal.

Mas em janeiro deste ano resolvi fazer o que pensava, há uns anos, que só existiria na ficção científica. Quantas vezes sonhei com uma mágica que me devolvesse a visão. Quase todos os dias, especialmente naquele, da avenida Augusto de Lima, quando o rapaz desavisado deu um peteleco doloroso na minha auto-estima. Mas em janeiro de 2006 eu me cansei. Cansei de ter que comprar frasqueira grande, de não confiar no tratamento da água das cidades em que precisava lavar minhas lentes, dos olhos vermelhos e irritados depois de um dia de estresse. Cansei de lavar caixinha de lente, ferver acessórios, entrar cisco, ressecar os olhos no contato com o ar-condicionado, de depender de um vidrinho que eu sequer podia enxergar direito. Fui até o doutor André e marquei uma cirurgia. Até para fazer sexo, enxergar seria melhor.

Ele me perguntou se eu tinha certeza, me falou dos riscos, me deu um contrato para ler e assinar, me explicou tudo. Fiz nem sei quantos exames e consegui que a operação fosse feita com a técnica cujo pós-operatório era mais rápido e fácil. Encarei. Duro foi ficar 10 dias usando apenas óculos. Eram até jeitosos, de aro vermelho, fetiche. Mas eu tinha vergonha.

Numa manhã de férias, subi numa máquina, pus minha cabeça lá dentro e perdi a miopia. Em 20 minutos tinha os dois olhos operados. Arranhou, chorei. Vão me chamar de desnaturada, mas foi muito mais emocionante do que a cesariana do nascimento do meu filho. Muito mais. Chorei na mesa de cirurgia, a voz embargada, meu marido, como sempre, me fazendo companhia.

Quando desci da máquina, enxerguei, lá na mesa do médico, o catálogo de telefones. Na capa estava escrito: "guia telefônico de Belo Horizonte". E eu me surpreendi porque, embora embaçado, já podia ler. Lia sem ajuda. Lia. Não sei quanto isso dura, até meus 40 anos, 50, não sei. Alguma qualidade de vida eu hei de ter nestes anos, enquanto o efeito durar.

Saí da sala, voltei para casa de óculos escuros. Em dois dias estava ótima, trabalhando, pingando dois ou três colírios para garantir os resultados. As visitas ao médico foram rareando. Agora, só no ano que vem. 100% de visão em todos os testes que fiz. Acordo enxergando.

Claro que passei uns dias obedecendo aos meus automatismos de usuária de lente. Querendo pô-las e tirá-las. Buscando os óculos quando o despertador toca. Mas nada com que eu não me acostumasse logo. A primeira viagem depois disso pareceu muito mais leve. A frasqueira vazia, xampu, pente, pinça, dentifrício, escova.

Mas não houve dia mais iluminado do que aquele em que abri os olhos e enxerguei direitinho os vincos do armário de roupas, a estampa da blusa pendurada, minhas unhas do pé, coisa que eu jamais vira. Cortá-las era quase um jogo de cabra-cega. Naquele dia eu desejei filmar um Janela da alma só com ex-míopes, fazer um seminário para compartilhar essas curas dos livros de Orwell. Win Wenders que me perdoe, mas é um gozo especial desenquadrar o mundo e deixar as cores soltas como se fossem carnavais.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 20/12/2006

 

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