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Quinta-feira, 21/12/2006 Europeus salvaram o cinema em 2006 Lucas Rodrigues Pires Quando o especial é sobre os melhores do ano, há categorias nas quais estamos a par das coisas, mas há outras em que, apesar do grande interesse que nos despertam, não somos capazes de acompanhar suficientemente para fazer uma classificação minimamente abrangente e justa. Assim, estou apto a fazer apenas uma indicação de "melhores do cinema", pois é a área que mais acompanho. Vejo minha agenda com os filmes a que assisti no decorrer do ano. Percebo que dois dos que mais gostei foram filmes de 2005 que apenas consegui ver este ano: Reis e Rainhas, um filme francês que acabei vendo numa retrospectiva, e Edukators, belo filme alemão, mais um da safra que discute as diferenças entre gerações - o conflito entre o idealismo dos jovens que não têm mais no que acreditar diante da falta de utopias do mundo contemporâneo (no caso de Edukators, eles apresentam uma alternativa) e da "derrota" daqueles que tinham muito em que acreditar e pelo que lutar mas ficaram no meio do caminho, com uma carreira de sucesso e muito dinheiro... De volta a 2006, é preciso notar que, a meu modesto ver, não houve um blockbuster americano que prestasse. Hollywood aumentou sua dívida com o cinema em 2006, pois nada pode me convencer que O Código Da Vinci ou o mais ingrato de todos - Missão: Impossível 3, em que fui obrigado a ver Tom Cruise morrer, ser ressuscitado e despertar das trevas totalmente consciente do que tinha em vida e ainda acordar com a arma na mão e apontada para a porta em que estaria o vilão. Foi demais para minha cabeça, digna dos finais dos outros filmes da franquia - a lembrar, a hélice do helicóptero que pára a um centímetro do rosto do herói e a sensacional habilidade do agente Hunt em, sob a mira de uma pistola do inimigo, ser rápido o suficiente para ver sua arma no chão quase enterrada na areia, pisar nela a ponto de fazê-la saltar e encontrar sua mão ágil que logo dispararia um tiro certeiro no vilão, e isso de tal forma que o vilão não se apercebeu e não teve tempo para disparar antes... Milagres que só Hollywood é capaz de fazer, mas não é capaz de fazer deste Missão um filme minimamente decente. Talvez o único blockbuster que se salvou tenha sido X-Men 3. O cinema americano só foi salvo do absoluto desastre pelo independente Pequena Miss Sunshine, uma comédia em formato road movie com personagens bizarros que fazem rir do início ao fim. Dos poucos filmes franceses que chegaram ao Brasil, três deles merecem destaque. São verdadeiramente filmes de autor no melhor termo usado pelos jovens da Nouvelle Vague a partir do final dos anos 50. De Michel Haneke tivemos Caché; de François Ozon, O amor em 5 tempos e O tempo que resta; e finalmente dos irmãos Dardenne, A Criança. Haneke fez um filme que trata de diversas coisas ao mesmo tempo - a questão da imagem no mundo contemporâneo, traumas de infância, imigração, relacionamentos... A história gira em torno de fitas VHS que uma família recebe que mostram a fachada da casa filmada por determinado tempo e tudo que por ali se apresenta, ou seja, vemos carros passando, os moradores entrando e saindo, vizinhos tocando. Sem saber se é uma ameaça, a trama acaba por levar o personagem central a seu tempo de infância e a um fato que marcou sua relação de criança com outra criança. Já com O tempo que resta, a situação é outra. Os relacionamentos não são o que podemos chamar de perfeitos, mas a descoberta de um câncer terminal faz com que o jovem fotógrafo de 31 anos reflita sobre seus relacionamentos e suas memórias naquele tempo que lhe resta, pois preferiu não buscar tratamento. Preferiu viver seus últimos dias livre do que preso a uma cama e a medicamentos. O tempo que resta é o segundo filme de uma trilogia que Ozon idealizou sobre a morte - o primeiro foi Sob a areia. E aqui, apesar dos requintes ozonianos típicos de sua cinematografia, como o homossexualismo e situações tidas como anormais (uma garçonete pedir para ele fazer um filho nela, pois o marido é infértil), ele vai além na discussão da morte, pois a coloca junto a outro debate, justamente o da imagem fotográfica. Como fica a morte com a possibilidade da imagem de perpetuar as coisas? Enfim, fechando os franceses, A Criança, dos irmãos Dardenne, que é o que podemos chamar de puro cinema - apenas a imagem filmada e seu som ambiente, sem inserção de efeitos ou qualquer trilha. Nesse estilo, que podemos definir por seco, direto, os diretores contam a história de um jovem ladrãozinho que tem um filho com a namorada e resolve vender a criança sem o consentimento dela. Quando ela descobre, ele precisa reaver o bebê com a grana que já recebeu por ele e que já gastara. A Criança é a síntese do cinema dos Dardenne, dando continuidade aos premiados filmes anteriores da dupla, A Promessa e O Filho. Wenders retoma o mesmo tema de Paris, Texas, filmado em 1984: o road movie que de fato é uma volta ao passado, ao que se deixou pra trás e acaba por se descobrir. É a viagem de um ator decadente em busca de uma antiga namorada com quem teve um filho. É a tentativa de se recuperar o que foi perdido, ao mesmo tempo que se quer vislumbrar um futuro. Herzog teve na figura de Timothy Treadwell o personagem perfeito para suas ambições. Um homem apaixonado por ursos, que vivia com eles e que morreu devorado por um deles. Herzog juntou o material filmado por Treadwell e montou um perfil da relação do homem com o urso, que não deixa de ser a natureza. O homem em sua tentativa vã de dominar a natureza, tal qual ele mostrou em Fitzcarraldo e Aguirre - A cólera dos deuses. O mais impressionante é que Treadwell estava com a namorada na barraca quando um urso faminto os atacou. A câmera estava ligada e sua morte e da namorada foi filmada (apenas o som, pois a lente estava coberta). Ele não revela esse material no filme, mas diz que é uma das coisas mais horripilantes que "viu" na vida e sugere à amiga de Treadwell que tinha a fita que a destruísse e nunca ouvisse aquilo. Lucas Rodrigues Pires |
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