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Quinta-feira, 15/2/2007
Meu Tom Jobim
Julio Daio Borges

* Eu acho que tenho uma dívida com o Tom Jobim, então quis escrever sobre ele nestes seus 80 anos. Infelizmente, porém, não tenho nenhuma tese a apresentar sobre o Tom e sua música — e, como em 99% das homenagens que li até agora, não tenho nenhuma grande novidade para contar. Quando até o Ruy Castro admite que o Tom continua vivo mas que, de 1994 pra cá, não há nada de muito novo no front, a melhor saída é ser modesto na abordagem e não inventar muita moda. É o que vou tentar fazer aqui. Ouvi muito Tom Jobim, mais na época de sua morte do que agora; ele foi um dos meus heróis, durante um tempo em que eu achei que poderia ser músico. Tenho, como qualquer brasileiro que se preze, muito respeito pela obra do Tom, pelo que ele fez pelo Brasil e até pela personalidade dele — que admiro, até onde me é permitido conhecer, sem restrições. Um dos objetivos deste texto talvez seja levar essa admiração adiante, através das novas gerações, uma vez que o Tom já se foi.

* Meu único show do Tom Jobim foi em 1993, no começo do ano, aqui em São Paulo. Meu irmão prestava vestibular na Unicamp e, enquanto ele fazia a prova, fui até o parque do Ibirapuera, a pé (eu morava em Moema). Era 25 de janeiro, aniversário de São Paulo e o penúltimo aniversário do Tom. O dia estava lindo, de sol, e ele cansou de elogiar a cidade (apesar dos pesares) e o clima ameno no parque. Vi o Tom Jobim de longe, cercado pela Banda Nova, pois nem quis me aproximar demais. A música parece que deixava todo mundo mais civilizado, e as pessoas assistiam sentadas e aplaudiam de forma suave. O único senão foi pedirem "Garota de Ipanema", insistentemente, ao que o Tom, mesmo que tocando, sempre retrucava: "Mas eu tenho outras 400 músicas... Vocês sabiam?". Lembro sobretudo das piadas dele e do seu bom humor, raro ou ainda mais raro hoje em dia. Confessou que, como bom brasileiro, ele era partidário do nepotismo e empregava naquele então, além de seu filho, Paulo Jobim, sua filha, Elizabeth Jobim, também o Daniel Jobim, e outros tantos agregados. Num dia como aquele, ninguém conseguia censurar o Tom; nem nós.

* Quando se fala em Tom Jobim, e em aficionados por sua vida e obra, uma questão iminente, e que quase todo mundo abordou recentemente, são suas biografias. Nenhuma das que existem parecem satisfatórias: a da Helena Jobim, porque é muito parcial e sentimental; e a do Sérgio Cabral, porque, apesar de rica em informações musicais, tem um quê de oficialesca e não provoca aquela sensação de saciedade que toda grande biografia provoca. No Cancioneiro Jobim, há uma reconstituição biográfica, digamos assim, assinada pelo Sérgio Augusto, que todo mundo se esquece de citar. Mas é mais um perfil, a meu ver, pautado pela obra do Tom (e, aliás, não precisaria de muito para sair naquela coleção da Relume Dumará...). O biógrafo mais óbvio de todos é o Ruy Castro que, quando abordado na época da morte do Tom, declarou que adoraria fazer mas que, naquele momento, estava até as tampas com o Garrincha (finalizando Estrela Solitária...). Hoje, talvez o Ruy ache que já falou tudo em Chega de Saudade, A onda que se ergueu no mar e até em Ela é carioca — como falou talvez, também, de Vinicius de Moraes. E embora pessoalmente eu ache que o Tom mereça sua dedicação em tempo integral, profissionalmente eu preferia ler sobre Leila Diniz ou Carlos Lacerda (outros candidatos a biografáveis pelo Ruy...).

* Uma característica que sempre me impressiona no Tom por mais que eu descubra sobre sua vida, é sua eterna capacidade de permanecer apolítico — ainda mais nos anos 60, 70 e até 80. A ecologia, muito provavelmente, foi uma saída elegante, porque ele optou pela defesa do planeta, e em última instância da raça humana, antecipando algo de que o Amyr Klink fala e que, possivelmente, costuma pregar: os países e as fronteiras são uma invenção nossa, humana — os animais, as plantas e a própria Terra não têm nada a ver com essas coisas. É um "problema" nosso no final; de todos nós. O que parece óbvio hoje, mas que devia ser inconcebível no tempo da polarização política dos anos 60 e 70 (os hippies, com sua ingenuidade, nunca conseguiram fazer com que esse discurso fosse realmente levado a sério...). O Chico Buarque, por exemplo, embora, como compositor, seja igualmente clássico na minha avaliação, vai precisar morrer para ser assim considerado — ou seja: por causa de suas posições políticas, naquele período conturbado, ainda pairam sobre ele muitas restrições; sobre o Tom, não — essa é a grande diferença... Como um clássico deve ser, Antônio Carlos Jobim "sobrevoa" todas as épocas — como sobrevoou com suas opiniões.

* Continuando no Chico Buarque, eu uma vez conheci uma menina, na USP, que achava as letras do Tom Jobim uma bobagem — ingênuas demais, se comparadas às do autor de "A Banda". Na época, eu era quase um fanático pelo Tom, não ligava muito para o Chico, e interpretei a declaração da menina como uma agressão despropositada ao meu gosto. Aprecio até hoje as letras do Tom — e, claro, do Vinicius —, mas você acredita que acabei, passados todos estes anos, concordando com a menina? Conheço, óbvio, a declaração do Drummond ao Tom, dizendo que ele fazia poesia — mas, O Maior Poeta Brasileiro do Século XX vai me desculpar, não concordo. Poesia, para mim, é outra coisa; não é letra de música. Voltando à menina da USP: o Tom Jobim letrista é grande, emociona, como em "Lígia", uma das minhas preferidas, mas — polêmica, agora — não é nenhum Chico Buarque (aliás, descobri que "Lígia" é também de Chico Buarque...). Na verdade, vocês podem até me xingar, mas eu inclusive acho que, em matéria de letrista de música popular brasileira, nem o Vinicius de Moraes chega a ser um Chico Buarque (ainda que um não exista, como sabemos, sem o outro). E eu nem coloquei o Noel Rosa na parada. Se o Noel Rosa tivesse vivido quanto eles todos, seria maior do que eles todos? Será que já não foi? O Cony, como eu já falei, coloca ele "pau a pau" com Camões. (Apesar de que o Tom Jobim ia achar uma bobagem essa competição...)

* Já que entrei nas críticas, confesso que enjoei dos standards do Tom. E enjoei da maioria das suas interpretações. As melhores, para mim, são as do João Gilberto; depois, as da Elis Regina. Depois, as outras (as dele mesmo não são boas; o Bussunda dizia que contando piada ele era igual ao Tom Jobim cantando...). Eu poderia jogar a culpa nas telenovelas — e elas têm uma grande parcela de culpa pela execução exaustiva do Tom — mas não sei, não... De 1994 pra cá, penso que gravaram Tom Jobim demais. Com poucas versões efetivamente relevantes. Curiosamente, os destaques ficam por conta dos "herdeiros" do Tom, ex-membros da Banda Nova — como o Quarteto Jobim-Morelenbaum, a própria Paula Morelenbaum (apesar de que eu tenho certas restrições ao "Jacquinho"...) e agora, dizem, o Daniel Jobim. Na parte instrumental, acho que foram feitas coisas mais interessantes nestes 12 anos — ainda que ninguém mais agüente aquele pianinho imitando o minimalismo do toque do Tom. Imitando o inimitável (aqui vale o clichê). Outro dia, eu vi a Rosa Passos virando o Tom Jobim pelo avesso; mas aí percebi que pouca gente gostou...

* Uma acusação que pesa sobre o Tom são os supostos "plágios". Uso aspas porque não posso afirmar, tecnicamente, nada. Pessoalmente, não acho o "Prelúdio nš 4", de Chopin, parecido com "Insensatez" — e olha que já ouvi bastante os dois. Mas acho impossível não ficar pensando na semelhança entre "Night and Day", de Cole Porter, e "Samba de uma nota só", de Tom e Newton Mendonça. Depois que me contaram, as duas ficaram indissociáveis (pelo menos na minha cabeça...). Não acredito, naturalmente, que houve intenção de plágio, mas: ou estava no "inconsciente coletivo" ou então Tom, inconscientemente, evocou a estrutura da original. Parece que o José Ramos Tinhorão tem uma coleção de associações desse tipo; se for verdade, eu acho uma perda de tempo ele ficar insistindo nisso — embora o seu livro, contendo críticas à bossa nova, seja brilhante (impossível atravessá-lo e sair intacto do outro lado). Brigar com o Tom em vida era uma perda de tempo porque ele nunca respondia; brigar com o Tom morto é, além de uma inutilidade, uma covardia.

* Outra associação da qual não dá para desvencilhar musicalmente o Tom é a com Villa-Lobos, seu mestre assumido, com quem esteve duas vezes, se não me engano. Pessoalmente (este texto está cheio de "pessoalmente"; é que eu não quero me comprometer muito...), acho que o Villa-Lobos engole o Tom. E parafraseando Nietzsche, sobre o cristianismo e o platonismo, Tom Jobim é Villa-Lobos para as massas. (Estou polêmico hoje, não estou?) Infelizmente, para os jobinianos — e como o Giron falou... —, o "Jobim Sinfônico" não sobrevive à comparação com seus antecessores. É verdade; não é implicância do Giron (discípulo do Tinhorão; Tinhorão para as massas, Giron?). São geniais os standards do Tom — ainda que eu tenha enjoado deles —, mas você os assimila relativamente rápido — já Villa-Lobos... Se você conseguir escutar sua obra toda, uma vez na vida, já está bom. Villa-Lobos é mais que a piteira, que o Tom Jobim herdou, ou que a questão do ouvido "interno" e "externo" (lenda que o Tom adorava propagar) — Villa-Lobos é todo um universo. Eu, por exemplo, não me sinto habilitado a escrever sobre Villa-Lobos, como tenho, agora, a cara-de-pau de dar meus pitacos sobre o Tom.

* Em 1994, quando o Tom se foi, passei dias gravando coisas suas na televisão — numa fita VHS que tenho até hoje, mas que, nestes 12 anos, assisti pouco. Em 2006-2007, eu não precisaria gravar nada — estaria tudo no YouTube à minha disposição. Tom Jobim tinha um forte apelo visual, não sei como é apreendido agora, num tempo em que o culto às imagens vai cedendo, novamente, à cultura das palavras (apesar do mesmo YouTube). Na minha época de Tom Jobim, eu ouvia um pouco nas rádios, assistia aos especiais na televisão (sim, antes eu via televisão) e ia atrás de cada um dos seus discos. Evidentemente não consegui comprar todos; alguns CDs eu tive que importar. Um dos melhores álbuns que tenho dele é o Composer, da Verve, que congrega, em um CD, os dois primeiros discos do Tom Jobim nos EUA. Acho que nunca saiu em versão brasileira... Eu sou pró-internet, como todos sabem, mas ignoro a forma como o Tom Jobim chega hoje aos mais jovens... Continua chegando? Como? Suas melodias, de tão tocadas, se popularizaram quase como slogans — mas será que isso é bom para um compositor? (Pense na sonata de Beethoven sendo executada, diariamente, pelos vendedores de gás...) Tom Jobim era um aquariano do futuro (vale, aqui também, o pleonasmo), mas como o futuro o encara?

* Resumindo a ópera, eu acho que o Tom Jobim ocupa uma posição muito favorável no panteão da música brasileira. Ele é, em certo sentido, como o jazz: suficientemente popular para ser bem compreendido, e até amado, mas também sofisticado, "na medida", para não passar como um produto descartável da música popular... Tom Jobim está, para mim, na fronteira — ele, sim, entre o "erudito" e o "popular", muito mais que o Tropicalismo e os Tropicalistas. Ao contrário do que afirmam seus discípulos músicos, porém, não acho que Tom Jobim seja um mar tão profundo, com abismos insondáveis, como é Villa-Lobos, mas é, enfim, um grande "teste" para ouvidos jovens. Como se quem se interessasse por Tom Jobim, e fosse capaz de "processá-lo", pudesse ganhar o passaporte para seguir adiante na música brasileira, para além da MPB, para o reino dos grandes mestres, arranjadores e compositores que precederam e sucederam o Tom. Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim merece respeito — pela sua obra, por ter sido quem foi, por continuar como uma figura a quem a gente sempre recorre, quando pensa num Brasil ideal.

Para ir além
"Site do Tom Jobim"

Julio Daio Borges
São Paulo, 15/2/2007

 

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