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Terça-feira, 29/5/2007
Aprender ficção
Marília Almeida

Em suas oito aulas no curso de Criação Literária na Academia Internacional de Cinema - AIC, em São Paulo, o escritor João Silvério Trevisan foi enfático: o aperfeiçoamento não acontece na ficção e, menos ainda, na poesia, sem repertório. Mas técnicas para aprender a criar e dialogar com outros autores são importantes. E lembra: muitas pessoas acham que escrever cai do céu. "A literatura supõe elaboração e regras. Há necessidade de um projeto", conclui.

João é coordenador de oficinas, que geralmente têm duração de quatro meses, há vinte anos. Dois de seus alunos, Nelson de Oliveira e João Carlos Carrascoza, seguiram carreira literária. Ele revela que já viu muitos aspirantes sofrerem simplesmente por não quererem meter o dedo em suas feridas. "Vejo a literatura como uma maneira de sobreviver. Ajuda na expressão e, como efeito colateral, nos salva", complementando com uma citação do poeta americano Ezra Pound: "A literatura é a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível".

Para começar, João coloca muitas perguntas: O que define nosso estilo? O que buscamos? O que é o real? Para ele, a literatura busca expressão inventiva e cita exemplos como Graciliano Ramos, que "era essencialista em captar o real, mas o transformava de acordo com a sua compreensão, assim como Jorge Luis Borges". Além disso, lembrou que cada projeto literário é uma nova literatura. "Já cheguei a demorar dois anos para escrever apenas um conto. Meu livro é uma garrafa a ser lançada no mar do nada, sempre um risco que corro", define.

A base da oficina de João é a crítica de texto, pois ele acredita que "quando fazemos crítica do outro, estamos fazendo de nós mesmos". Ela deve provir do leitor que temos dentro de nós e dizer respeito a aspectos técnicos como estrutura, ritmo, linguagem e construção de personagens. Cada um pode criticar o trabalho lido, que depois é criticado pelo professor e, por fim, o autor tem direito à defesa. Segundo João, o objetivo da oficina é que as pessoas usem as críticas se quiser e não sejam obrigadas a aceitá-las. "Pressiono pela técnica. Não sou um juiz e minha opinião não é determinante. Uma das minhas funções aqui é provocar".

Os exercícios propostos pelo professor consistem em criar cinco contos com temas ou propostas diferentes, base para que fossem criticados. O primeiro deles teve como tema os cheiros da infância, porém, não era permitido nomear o cheiro para "instigar a ficção" e ser inspirados na autobiografia. "Temos que usar nossas experiências como trampolim. E o tema é um desafio, pois, nele, todos esbarram na pieguice". Os outros exercícios visaram trabalhar a intuição e a improvisação, entre outras características.

As maiores críticas aos textos proferidas por João foram alto nível de descrição ("é preciso deixar o leitor imaginar"), superficialidade do enredo, ritmo narrativo heterogêneo ou estagnado, adjetivos pouco eficientes e funcionais ("as imagens podem ser lindas, mas devem ser inseridas em uma estrutura"), verborragia e construção pouco consistente do contexto e personagens. Além disso, ele apontou problemas gramaticais, como pontuação e repetição de palavras. "A gramática, especificamente, precisa ser aprendida em aulas de português e redação. Por isso, não dou muita atenção a ela. Mas, muitas vezes, os problemas se estendem e chegam a dificultar a sensibilidade do ritmo narrativo".

Um grande problema que se verificou durante suas aulas foi a necessidade de se separar a crônica do conto. Para João, a "crônica é o caminho mais fácil e é de sua propriedade ser mais superficial", e complementa: a literatura, ao contrário de roteiros, tese e reportagens, é mais criativa e serve apenas a uma coisa: à escrita, enquanto os outros podem servir também a imagens e são canais. "Um roteiro passa por diversas mãos e contém sugestões. Mas a literatura tem que conter toda significação em si. Ela é capaz de problematizar a realidade mais do que a reportagem".

O ponto mais enfatizado por João nas aulas, além do fato poético (o exercício de buscar fatos durante a semana corrente que, na visão de cada um, poderiam ser transformados em ficção e a viabilidade dessa possibilidade ser analisada pelo grupo), foi o projeto, pois "a literatura deve começar com ele e não pode perdê-lo de vista, não pode deixar que a obra o leve". Nesse item, João assume uma semelhança entre a ficção e o roteiro, que, na sua visão, é apenas um esqueleto que tem a sinopse como referência, assim como a ficção deve ter o projeto como referencial. E dá a dica: descubra um projeto literário, não o abandone e nunca faça apologia a um estilo.

Para impulsionar o diálogo com outros autores, no decorrer do curso João pontuou observações de textos de alunos com exemplos como Clarice Lispector, com suas "falsas rupturas e estrutura reflexiva"; William Burroughs, um "texto estilhaçado de vanguarda" e James Joyce, que "inaugurou o fluxo de consciência em Ulisses, estourando a lógica da gramática de mimetizar a lógica do pensamento". Além disso, leu trechos de livros como O hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado, "memória intricada que sai da crônica e chega ao nível da ficção".

João Silvério Trevisan já escreveu livros como Devassos no paraíso, um ensaio sobre a história da homossexualidade no Brasil e Pedaço de Mim, uma compilação de textos sobre cultura, política e homossexualidade. Ele também faz parte da coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século, com "Dois corpos que caem". Atualmente, prepara o romance O rei do cheiro, sobre um empresário de uma fábrica de perfumes.

Marília Almeida
São Paulo, 29/5/2007

 

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