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Terça-feira, 16/3/2010
Shows da década (parte 1)
Diogo Salles

Ir a shows é quase uma obsessão para mim, sobretudo quando é um artista ou banda que ainda não tive a oportunidade de ver ao vivo. Os DVDs são ok, tenho vários. Aliás, mais justo seria dizer que tenho uma coleção respeitável. E não me canso de assisti-los. O detalhe da câmera que capta perfeitamente aquele solo de guitarra, a interação com o público, ali é o momento em que se pode mensurar a capacidade dos artistas como entertainers e a precisão dos músicos. Mas, no fim, é só um porta-retrato. Se você não puder juntá-lo à lembrança do dia em que você esteve lá no show, o testemunho não é completo. Parto sempre desse pressuposto, pois é no palco que o artista mostra quem ele realmente é ― sem edições, sem truques de estúdio, sem overdubs, sem Pro-tools.

Minha saga em shows até que começou tarde, precisamente no dia 16 de setembro de 1994. Aos 18 anos, meu queixo caiu ao ver o Yes, uma de minhas bandas favoritas (e com a melhor formação, a meu ver), no palco, promovendo o subestimado álbum Talk. Aquilo me despertou para algo definitivo. Difícil explicar, mas algo mudou naquele dia. E mudou para melhor, acredito. Com o orçamento sempre limitado, tive de parar de ir a jogos de futebol para poder ir aos shows. Foi um ótimo negócio, pois o futebol já vinha se tornando um item de segunda ordem há algum tempo para mim. O virtuosismo, a presença de palco, a musicalidade, os solos do Trevor Rabin, os vocais do Jon Anderson e o baixo do Chris Squire me desintoxicaram do tal "ópio do povo". Agora minhas prioridades eram outras. Minha patologia era muito mais saudável e segura, longe da pancadaria das arquibancadas. E, no fim, morar em São Paulo mostrou ter suas compensações: quase todos os grandes shows passam por aqui ― salvo raras exceções, o que me obriga a visitar o Rio de Janeiro, minha segunda casa.

Vasculhando minha gaveta, fui direto ao cemitério de ingressos. Não consegui guardar todos os canhotos, claro, mas os que lá estavam me mostraram uma boa quantidade (com qualidade e variedade) de shows nesses últimos dez anos. Não tenho registros dos anos de 2000 e 2003 ― nem dos canhotos, nem na memória ―, mas em todos os outros eu tenho histórias para contar.

2001 ― Logo em janeiro, fui ao Rio para ver o Sting no Rock in Rio 3. Foi seguramente o show mais bem organizado que já estive em todos os sentidos. Méritos para Roberto Medina, que soube montar a infraestrutura adequada, inclusive com muitos ônibus fretados para a Cidade do Rock, o que evitou os já tradicionais congestionamentos rumo a Jacarepaguá. O Rock in Rio, que acaba de completar 25 anos, é um exemplo de organização para os promotores de espetáculos no Brasil, que ainda insistem em tratar seu público como gado. Quanto ao show, tive de esperar um pouco, pois antes tinha James Taylor e Daniela Mercury. Aproveitei para circular pelas tendas ao redor do palco principal e conhecer alguns dos artistas menos concorridos naquela noite. Sting tocou sucessos da carreira solo e clássicos do Police, além das músicas de seu mais recente disco (na época), o excelente Brand new day. Meses depois, em outubro, fui ao Pacaembu para ver se Eric Clapton era mesmo Deus, como juravam os muros de Londres. E era, mas acho que já disse isso aqui um dia desses.

2002 ― O ano começou com Roger Waters, também no Pacaembu. Uma das poucas vezes que pude constatar uma acústica perfeita, mesmo estando num estádio. Depois eu fui descobrir que Waters trazia equipamento de som próprio na turnê, em vez de alugá-lo no local (como faz a maioria dos artistas). O repertório me agradou bastante, procurando trazer um pouco de cada época do Pink Floyd (que nunca veio ao Brasil), destaques para "Dogs" e "Welcome to the machine", além dos clássicos de Dark side of the moon e The wall. Em maio, tive a chance de ver dois grandes guitarristas de blues num mesmo show. O canadense Jeff Healey abriu a noite mostrando como delineou novos horizontes para a guitarra. Sendo ele cego, introduziu uma técnica de tocar a guitarra deitada no colo, como se fosse um piano (ou uma slide guitar), reinventando, mais uma vez, o instrumento. O timbre da guitarra tem a sua marca própria e os solos são um caso à parte. Healey morreu em 2008 sem o reconhecimento devido, mas pude ver com os meus próprios olhos o que ele, sem os dele, era capaz. Bestial, é a única palavra que cabe aqui. Para fechar a noite (que já estava ganha), Robert Cray, um dos grandes nomes do blues dos anos 80, misturou clássicos do disco Strong Persuader com músicas mais recentes e standards do blues. Uma noite para relembrar.

Em novembro, finalmente a minha banda favorita chegava ao Brasil pela primeira vez e isso merece um parágrafo à parte. Mesmo com o dólar altíssimo na época, comprei ingressos para o show do Rush para mim e para um amigo que pretendia ir... Sim, você leu certo: pretendia. O outro ingresso estava morrendo na minha mão e, na porta do estádio, não conseguia vendê-lo de jeito nenhum. Lá pelas tantas, abordei um sujeito com cara de gringo, que, estranhamente, vinha acompanhado de umas seis mulheres. "Sorry, I don't speak portuguese", disse Peter. Fiz uma nova tentativa, desta vez em inglês. "Ok, follow me", ele disse. Chegamos na frente do portão principal do Morumbi e, depois de alguma espera, Peter voltou com vários crachás backstage pass, como esse que você vê aí na foto. Meus dois ingressos morreram ali ― e eu pouco me importava com o prejuízo. Circulando pelo backstage, vi roadies e equipe técnica se esgoelando pelo rádio tentando fazer o equipamento funcionar. A garoa não estava ajudando em nada e os problemas técnicos puderam ser notados nas primeiras músicas do show, como "Tom Sawyer" e "Roll the bones". Ao lado do palco, vi os caras do Sepultura e conversei brevemente com Derrick Green. Perto do hall de entrada, vi Neil Peart saindo do vestiário, acompanhado por dois seguranças. Quando saí de meu estado de catatonia, era tarde: ele já tinha sumido pelas escadas. Seu solo de bateria é algo sobrenatural. A banda estava afiada, os problemas técnicos foram resolvidos a tempo e o set foi perfeito, contemplando todas as fases da banda. Tinha de ser naquele dia. E tinha de ser com o Rush. O que tinha tudo para dar errado, se tornou, por obra do acaso ― ou do destino, sei lá ― o maior show que já presenciei, com zoom máximo. Uma noite iluminada, que me vem à mente sempre que vejo o DVD Rush in Rio (depois fui saber que o Peter do crachá backstage pass era membro da equipe técnica. Ele aparece no documentário do DVD, segurando uma camiseta vermelha).

2004 ― Depois do hiato em 2003, iniciei a temporada de shows de 2004 em março, com ninguém menos que B.B. King, o rei. Em vias de completar 80 anos, milionário e com a saúde debilitada, por que o velho Riley B. King ainda continuava em turnê (e viajando de ônibus)?. Era só o que eu me perguntava (e continuo me perguntando, já que ele está de volta ao Brasil nesta semana). Não sei se há uma resposta para isso, mas, para mim, é o maior exemplo de amor ao blues e de uma vontade genuína (e infinita) de tocar para os fãs. Sentado durante todo o show, entre uma música e outra ele se desculpou por não poder mais ficar em pé, em decorrência da diabetes e de outros problemas de saúde, mas garantiu que a cabeça e as mãos ainda estavam boas. A voz... mais rouca, impossível. Com uma competentíssima big band (com metais e tudo) apoiando-o, o som era homogêneo e o volume era distribuído igualmente entre todos. Mas quando o homem entrava, a história era outra. O choro de sua Lucille era ocasional, mas certeiro. Era tão limpo que se sobrepunha ao som da banda, mas sem "apagar" nenhum instrumento. Resumindo tudo: respeito, paixão, legado. É uma lenda. É o rei. E essa é a única monarquia que conta com o meu apoio. No mês seguinte, foi a vez de ver o Living Colour. Para a minha geração, que ouvia rock na virada dos anos 80-90, foi uma grande influência. Contei os detalhes desse energético show no Tungcast Living Colour. Para fechar o ano, em dezembro fui ao G3, projeto de Joe Satriani, que sempre trazia dois guitarristas convidados. Dessa vez, eram Steve Vai (um habitué) e Robert Fripp (do King Crimson). Satriani e Vai eu já tinha visto, cada um em seu próprio show (ainda nos anos 90), as surpresas seriam Fripp e a jam session final, o que se revelou uma decepção. Robert "Freak" mais parecia um roadie, se escondendo no fundo do palco, com uma pilha de PA's, emulando timbres de teclado. Teria funcionado nos anos 60 para uma plateia embevecida pelo LSD, mas em 2004 foi estranho, para dizer o mínimo. Por outro lado, pode ter sido bom para fazer uma contraposição a toda a demolição de Satriani e Vai. Mesmo assim, não me tirou a sensação de ter visto o G2.

2005 ― Logo no início do ano (esse canhoto eu perdi), tivemos Lenny Kravitz no Pacaembu, na turnê do fraco álbum Baptism. O show foi morno em alguns momentos, irritante em outros ― especialmente quando ele tirava a camisa para mostrar o seu lado "Bon Jovi negro" para a mulherada. Mas, no geral, a banda era afiada, o som era coeso e Lenny é realmente um grande músico, mesmo com todo o mise-en-scène depondo contra ele. Em maio, fui assistir a um dos guitarristas que mais admiro: George Benson. Mesmo tentando equilibrar seu repertório pop/soul com o seu lado jazz, o lado crooner das baladas românticas saiu na frente, para a minha infelicidade ― que só amenizava quando ele pegava a guitarra para cantarolar os solos em uníssono. Só mais tarde é que despontou aquele grande George Benson dos discos Breezin' e Give me the night. Como manda a tradição, o final do show foi contagiante, ao som de "On Broadway".

Nota do Editor
Leia também " Shows da década (parte 2)".

Diogo Salles
São Paulo, 16/3/2010

 

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