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Terça-feira, 23/11/2010
Um erro emocional, de Cristovão Tezza
Daniel Lopes

A nova ficção de Cristovão Tezza coloca frente a frente o famoso escritor paulista Paulo Donetti e sua jovem e bela fã curitibana Beatriz. Na noite seguinte à que se conheceram ― em um jantar entre Paulo, um amigo e a companheira deste, exatamente Beatriz ―, Paulo aparece no apartamento da admiradora com um vinho, uma pasta de textos e uma declaração fria: "Cometi um erro emocional".

Paulo, que estava em Curitiba apenas de passagem, resolve se estender mais um pouco na cidade; está apaixonado por Beatriz, quer que ela lhe ajude na revisão de seu novo livro e quer antes de tudo o mais abrir e tomar com ela o vinho que trouxe. Se sua estadia na capital paranaense vai mesmo durar, se vai ser bem-sucedida, se o trabalho de revisão vai funcionar, não sabemos, nunca saberemos. Mas sabemos que o vinho foi tomado até o final. E só uma garrafa não bastou. Durante a noite (o romance decorre em uma única noite), outro será aberto, vindo da despensa de Beatriz.

Você pensa, "OK, lá vamos nós acompanhar conversas tenras e conversas (e oxalá atos) sacanas entre esses dois". Mas não. Eles pouco se falam (e ainda menos se tocam). Testam um ao outro, tocam-se as mãos muito rara, leve e ligeiramente, e têm imensa dificuldade em ir além disso. Ambos são pessoas extremamente inseguras e ansiosas. Aqui está a estranha beleza dessa ficção: os personagens rememoram consigo mesmos seus passados, anseiam em compartilhar as lembranças um com o outro, mas na hora de se abrir... quase nada sai. O encontro não acabará com eles sabendo muito mais da vida um do outro, mas nós leitores, sim, saberemos de muita coisa, e é inevitável parar a leitura de vez em quando para tentar decidir se aquele relacionamento teria mesmo alguma chance de durar mais que uma noite, ou uma semana.

Paulo e Beatriz já experimentaram o divórcio. Paulo é um autor reconhecido, mas de vida pessoal medíocre, e guarda no histórico uma miserável inveja do amigo a quem ajudou a lançar o primeiro livro e que depois tomou luz própria; no início da adolescência, chegou a fugir de casa, mas acabou "recuperado" pelo pai, personagem que, na memória do filho, tem ares de onipotência. Beatriz perdeu o pai, a mãe e o irmão em um acidente de automóvel, enquanto empreendiam uma viagem da qual ela foi forçada a não participar devido à prova de uma matéria do curso de Letras, ministrada por uma professora amarga e carrasca; graças a essa figura deplorável, Beatriz sobreviveu. A perda da família não é o único trauma do passado de Beatriz. No de Paulo, também há um punhado, se bem que menos dramáticos. O incômodo desses ocorridos se amplifica durante a leitura, exatamente pela ânsia e ausência de comunicação entre os personagens. É de longe o livro mais sufocante de Cristovão Tezza, escritor de resto afeito a histórias desencadeadas por entradas de supetão ― em Trapo, o professor aposentado que recebe à noite, em casa, a incumbência da mãe de um jovem suicida de investigar os escritos do filho; em O fantasma da infância, o fracassado ex-amigo que irrompe na casa do bem-sucedido burocrata, ameaçando revelar para sua família os podres de seu passado comum.

Em Um erro emocional (Record, 2010, 192 págs.), risos, suspiros e olhares que se desligam das ações do outro são os indícios de que, se palavras não estão saindo, é certo que elas correm de um lado para o outro das cabeças, evocando imagens e traçando planos. A maior parte das poucas frases ditas são banais, tolas, erráticas, constrangedoras até. Mesmo os pensamentos são por vezes cortados, atropelados por outros mais prementes. Momentos-chave do passado e momentos estáticos do presente revezam-se na narrativa. O ponto de vista salta o tempo todo de um personagem para outro.

Sabem Esperando Godot? Pois é. No texto de Tezza é como se Paulo estivesse esperando Beatriz, e vice-versa, e como se nenhum jamais viesse a aparecer. Pensamos, "Que comportamento esdrúxulo, o desses dois!". Mas talvez não. É como se primeiro eventos fundamentais do passado precisassem ser recordados, elaborados e remoídos em solidão antes que as vidas presentes pudessem ser retomadas e talvez entrelaçadas naquela noite, naquele apartamento. Ora, será que não é isso o que todos nós fazemos quando imaginamos estar prestes a se engajar com alguém especial em uma relação com chances de durar por muito tempo? Apenas nunca sentimos a pressão de ter que passar por todo o processo em uma noite só, e ainda por cima na presença desse alguém. Então, apesar de tudo, pode ser que Beatriz e Paulo estejam menos perdidos do que imaginam.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog coletivo Amálgama.

Para ir além





Daniel Lopes
Teresina, 23/11/2010

 

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