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Segunda-feira, 16/1/2012
Daniel Piza, sempre aberto ao diálogo
Humberto Pereira da Silva

O diálogo on-line abaixo foi travado há oito anos entre mim e Daniel Piza. Na ocasião, divergimos sobre um comentário que ele fez em sua coluna Sinopse, no jornal O Estado de S. Paulo, a respeito do filme O Desprezo, de J. L. Godard. Não o conhecia pessoalmente, o que só ocorreu tempo depois, no lançamento do livro que escreveu sobre Machado de Assis.

Bem, mas em 2003 iniciei o diálogo com uma missiva que reconheço dura e, talvez para alguns, pedante e arrogante. Com a morte precoce, e recente, de Daniel, torno-o público para dar aos leitores e admiradores uma ideia do enorme respeito que ele tinha por quem o lia. O modo como me expressei levaria qualquer outro a simplesmente me ignorar. Não foi o caso com ele. Estranhos caminhos da vida; chato imaginar sem ele o espaço Sinopse no Estadão...

* * *

From: Humberto
To: [email protected]
Sent: Sunday, April 27, 2003 6:36 PM
Subject: cinema


Caro Daniel Piza,

Já lhe escrevi outrora justamente para elogiá-lo e situá-lo entre os nomes mais proeminentes do jornalismo cultural desde Paulo Francis. A primeira coisa que faço com o Estadão dominical é abrir sua coluna. Inteligente, sagaz, independente, neste país de pensamento rasteiro e ideologia de boteco. Gosto imensamente de ler o que você escreve na Bravo! e já comprei "brigas" com colegas na filosofia, defendendo-o de ataques como o de que jornalistas culturais como você falam de tudo e não entendem de nada. Acho esse tipo de desqualificação espúria para quem fica na academia e não se expõe para o grande público.

Guardada a admiração, fiquei embasbacado ao ler hoje seu comentário sobre O Desprezo, de Godard. Mesmo levando em conta a agilidade do jornalismo cultural, fiquei simplesmente incrédulo com o que li. Ora, caro Daniel, se você me responder que procurou expressar seu gosto ("Gosto não se discute?") aí tudo bem. Eu fico em paz com minha consciência e a pensar com meus botões: "o Daniel Piza não gosta de Godard, tudo bem, eu também não gosto de Francis Bacon, de Edward Hopper, sei lá, de um pintor qualquer que ele gosta". Ficamos em paz e eu continuo a ler e admirar uma das grandes novidades do jornalismo cultural dos últimos anos.

Ou seja, não é para eu levar a sério a bobeira sobre "o limite do cinema" na coluna de hoje. De outro modo, vou dar a mão à palmatória aos meus colegas na filosofia: "até tu, Brutus, escapa ao ar inteligente e é contaminado pela imbecilização jornalística, ao trocar gostos por sapatos?". Já dizia um dito provecto: que o sapateiro fique no sapato.

Ao ler seu texto fico com a sensação de que estou sendo ensinado sobre Godard. Um cineasta antigo, que fez um filme desconhecido que não diz mais nada sobre o mundo ou a vida, com uns achadinhos verbais ou visuais. Ora, Daniel Piza, do punhado de jornalistas que pululam nas redações dos jornais e revistas neste país pode-se esperar o clichê imbecilizante "alguns achados verbais, visuais e algumas sequências chatas...", mas de você eu sinceramente não esperava.

Antes de tudo, devo dizer-lhe que sou totalmente avesso ao endeusamento de figuras excêntricas e polêmicas como Miles Davis, Stockhausen, Godard, João Gilberto, Pasollini, Andy Wharol e assim vai. Então acho que há muito de mitificação em torno de Godard desde os anos 60. Agora, para mostrar que não "entendeu" Godard parece que o melhor é dizer coisas como: está datado, filmou mal tal sequência...

Mesmo que eu não gostasse de Godard, e esse não é o caso, a pergunta é simples e cândida: por que perder tempo comentando um filme de 1964? Por que há mostras e mostras Godard pelos quatro cantos? Por que o tumulto em torno de O Elogio do Amor em Cannes? Por que entrevistas na The New Yorker? Por que quando vem "um Godard" no MAM há público? Por que colunistas inteligentes escrevem sobre o mito Godard? Daniel, você é jovem e eu também. Em 2023 veremos um Godard qualquer, em uma mostra pelo mundo. E, desde já, convido-o para o assistirmos, tomarmos uma cerveja depois e discutirmos a sobrevivência dos filmes de Godard.

Você sabe bem que Godard é um dos símbolos da cultura do século passado. Se seu projeto de cinema falhou, se estamos meio distantes para percebermos sua fortuna crítica, se a aproximação com um público tal é difícil, se é, nos seus ingênuos dizeres, "pseudo-erudito", não acho que seu texto se sirva para confundir os incautos e tomar Godard como um extemporâneo que merece o mesmo tratamento que um garoto que fez uma bobagem qualquer como As horas (aliás, de cujo comentário que você fez mereceu de minha parte uma boa exposição para amigos sobre a personalidade do Leonard Woolf), Frida ou Cidade de Deus.

Caro Daniel, para quem "entende" de cinema você escreveu bobagem; para quem não "entende", gera mal-entendido. Clichês empobrecem o jornalismo e dão lenha para que os acadêmicos encham o peito e digam: "fala de tudo e não entende de nada". Falar sobre Godard é intelectualmente chique? E isso é porque, talvez, os agentes da CIA vejam em Godard um símbolo do imperialismo para divulgar mensagem burguesa? Assim como, para ficarmos na seara do cinema, falar sobre Riefensthal, Eiseinstein, Griffith ou Buñuel. A propósito, o que não seria "datado" para você? E isso me enche de curiosidade: o que é uma sequência "bem filmada"?

Para alguém com algo mais que minhoca na cabeça será que resta dúvida que qualquer bobagem que Spielberg filmar é muito "bem filmada". Se para você o "bem filmado" de Spielberg está um grau acima do "mal filmado" de Godard, para aludirmos a critérios estéticos, então passo a desconfiar imensamente de suas críticas de arte para a Bravo!. Seus critérios sobre o que é "bem filmado" seriam para mim muito estranhos. E eu não teria parâmetros para considerar suas apreciações sobre arte em geral.

E, entenda, tudo isso porque nutro por você grande admiração. Do contrário, não perderia tempo com estas linhas.

Abraço do leitor,

Humberto Pereira da Silva

* * *

From: Daniel Piza
To: Humberto
Sent: Wednesday, May 07, 2003 6:54 PM
Subject: Re: cinema


Caro Humberto,

Primeiro, quero apontar uma desproporção. Vc dedica um texto de mais de 100 linhas para uma nota que não tinha mais de 5. Uma nota impressionista, específica, dentro dos parâmetros de uma coluna pessoal. Não uma resenha analítica sobre o filme, muito menos sobre a obra de Godard como um todo.

Quanto à questão em si, simplesmente acho que o excesso de citações e repetições deixa o filme chato. Não é preciso ter uma grande história; no entanto, quando ela não existe, é preciso adensá-la de forma consistente, seja pelas experiências de linguagem, seja pela exposição de idéias. Não fechei os olhos para Godard, mas apenas fui rever
O Desprezo e achei que o filme se perde em inegável inabilidade técnica e pouca originalidade intelectual.

Vc também argumenta que se Godard não fosse importante não estaríamos discutindo sua obra. Me parece óbvio. Assim como me parece óbvio que suas indagações sobre os limites do cinema são indispensáveis, como eu mesmo afirmo num ensaio, "Imagens, imagens, imagens", em meu livro
Questão de Gosto, onde tb cito Greenaway.

O fato é que o cinema pretensamente ensaístico de Godard, como ele mesmo reconhece, tem altos e baixos, até mesmo pelos riscos que corre.
O Desprezo me parece um baixo. A Bout de Souffle, Vivre sa Vie e Pierrot le Fou estão entre os altos, talvez porque não negligenciam a força cinética dessa arte, saturando-a intelectualmente na medida certa.


C'est tout. Abraço

Daniel Piza


* * *

P.S. ― Infelizmente em 2023 Daniel Piza não poderá falar sobre Godard; até lá, para lembrar outro provérbio antigo, a roda da fortuna continuará em movimento.

Humberto Pereira da Silva
São Paulo, 16/1/2012

 

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