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Sexta-feira, 15/2/2013
Suicídio
Marta Barcellos

Era sábado de manhã, eu estava em um hotel fazenda dando conta do calendário de férias escolares, e na véspera tinha me divertido com "Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer", ensaio/reportagem de David Foster Wallace sobre sua experiência em um cruzeiro de luxo no Caribe. Me divertindo em termos. Cada vez que ele fazia uma de suas digressões geniais, me flagrava pensando: que raiva desse sujeito. Como assim ele não vai mais escrever essas coisas, nunca mais, com tanto mundo para ser escrito, tanta vida disponível para ser vivida? Que raiva.

Pois naquele sábado, na varanda que desabava por cima de um jardim impecável, salpicado de flores e cercado por colinas verdes sobrepostas no horizonte, eu já estava lendo outro texto do livro Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. Não tinha me detido tanto (ainda) no título do livro, uma frase retirada de outro ensaio sobre uma feira agrícola e que parecia referir-se ao fato de os moradores do meio-oeste rural americano já viverem "meio que Longe o tempo todo". Avançava para o final do livro em outro texto. Lembro de estar degustando o momento, um daqueles em que o tempo escorre devagar o suficiente para se perceber o privilégio de estar atento ao tempo presente.

Wallace falava sobre a importância de estar atento. Atento e forte, acrescentei caetana e mentalmente. Eu estava lendo "Isto é água", discurso de paraninfo no Kenyon College que depois descobri ser cultuado na internet, com direito a áudio e tudo. Venerar David Foster Wallace, de certa forma, ganha sentido no discurso:

"Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é o que venerar. E se existe uma ótima razão para talvez venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual - seja Jesus Cristo ou Alá, YHWH ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que provavelmente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. (...) Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.

"Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. São configurações padrão. É o tipo de veneração pelo qual nos deixamos levar gradualmente, dia após dia, e que nos torna cada vez seletivos em relação ao que vemos e a como atribuímos valor às coisas, sem jamais termos plena consciência do que é isso que estamos fazendo. E o suposto 'mundo real' nunca desencorajará vocês de operarem nas configurações padrão, porque o suposto 'mundo real' dos homens, do dinheiro e do poder avança tranquilamente movido pelo medo, pelo desprezo, pela frustração, pela ânsia e pela veneração do ego."

Eu estava dialogando com Wallace, claro. Não sou de venerar (pelo menos de forma consciente), tenho dificuldade em manter ídolos e me sentia atraída pela possibilidade de tê-lo como objeto de veneração, para ajudar na minha luta contra a configuração padrão. Caramba, como me identifiquei com aquilo. Só que eu chamava de luta contra os lugares comuns e as verdades cristalizadas. Sim, é preciso questionar tudo, o tempo todo, estar atento e forte... Mas a vigilância cansa. "Atento e forte" pode ter se tornado um clichê? O fato de eu grudar uma palavra na outra me acendeu uma luz interna amarela. Mas Wallace diz para mim que muitos clichês são também grandes verdades. Por exemplo: o velho clichê segundo o qual "a mente é uma excelente empregada, mas uma péssima patroa":

"Esse clichê, que como tantos outros é tolo e banal na superfície, no fundo expressa uma grande e terrível verdade. Não há um pingo de coincidência no fato de que a maioria dos adultos que cometem suicídio com armas de fogo faz isso com um tiro na... cabeça. E a verdade é que muitos suicidas já estão mortos muito antes de puxar o gatilho."

Para tudo. Não, eu não tinha parado para pensar na forma como Wallace se suicidou em 2008, enforcado, três anos, três meses e vinte dias depois deste discurso. É que havia chegado, finalmente, o jornal de sábado. Como eu o solicitara na portaria, o funcionário apressado acabara de me entregá-lo. Na capa, a morte do ator Walmor Chagas.

(Parte 2)

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 15/2/2013

 

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