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Quinta-feira, 4/4/2013
Histórias de gatos
Carla Ceres

Diz a lenda que, quando Buda estava às portas da morte, ele convocou os animais para se despedir. O primeiro a chegar foi o rato. Depois, o boi, o tigre, o coelho (ou a lebre), o dragão e outros sete animais. Como recompensa, cada um deles obteve a honra de reger um ano do horóscopo chinês. O gato, que não compareceu, ficou de fora. Outra versão da história diz que o gato compareceu, sim, mas não chorou nem se lamentou como os demais. Postou-se em um canto confortável e comeu um rato enquanto o mestre morria. Uma leitura superficial pode sugerir que o gato foi punido por sua atitude desrespeitosa e insensível, mas, se levarmos em consideração que o gato permaneceu um animal sagrado para o budismo, talvez consigamos compreender que seu comportamento diante da transitoriedade da vida foi sábio.

Poucas pessoas permanecem indiferentes aos gatos. Há milhares de anos, eles nos acompanham, protegendo nossas colheitas dos ratos, aquecendo nossas camas no inverno, nos fazendo companhia, guardando monastérios, inspirando reverência, adoração, lendas, superstições, medo e obras artísticas. São fascinantes a ponto de, mesmo ficando fora do horóscopo chinês, entrarem pro horóscopo vietnamita, que é praticamente igual ao chinês, com a diferença de que o gato ocupa o lugar do coelho.

Talvez os vietnamitas tenham comprado gato por lebre, mas vejam as características das pessoas nascidas sob este signo e concluam qual animal merece o posto. "Quando quer conseguir algo de alguém, vai chegando 'de mansinho', tratando a pessoa muitíssimo bem, satisfazendo todos os seus desejos, cobrindo-a de atenções. No final, qualquer pedido que faça será atendido, pois é feito do modo mais doce e agradável." Quem está sendo descrito aí? Um gato ou um coelho? Qual dos dois tem a injusta fama de interesseiro?

"O gato não nos afaga, afaga-se em nós", escreveu Machado de Assis. Que bela meia verdade! O correto seria dizer que os gatos nos afagam, afagando-se em nós. Gatos não são interesseiros, apenas têm prazer em afagar e agradar. Quando se esfregam em nossas pernas, além de nos fazer carinho, estão nos marcando com seu cheiro pessoal, declarando a outros felinos que nós somos seus seres humanos de estimação, temos dono, pertencemos a eles. Os interesseiros, pra começo de conversa, fomos nós, pois, na época de Noé, nem existiam gatos.

Noé pôs na arca os casais de todos os animais (menos os gatos, que, de acordo com a lenda, não existiam). Os ratos se multiplicaram, infestaram a arca e ameaçavam acabar com os suprimentos, matando os bichos de fome. Em desespero, Noé rezou por uma solução. Deus ordenou-lhe que fosse até o leão e o afagasse na testa. Morrendo de medo, Noé foi. Mal tocou a testa do leão, o animal espirrou e, de suas narinas, saiu um casal de gatos que salvou a arca e gerou os gatos atuais.

Mais tarde, Maomé obteve de Allah um upgrade pros gatos. Foi mais ou menos assim: Maomé possuía um gato de estimação muito querido, chamado Muezza, que dormia na manga de suas vestes. No momento de uma das orações diárias, o profeta, não querendo acordá-lo, recortou o pedaço de tecido sobre o qual ele dormia e foi rezar. Comovido com tamanha dedicação ao bem estar do animal, Deus resolveu recompensar o profeta concedendo a seu gato e a todos os que viessem depois o superpoder de saltar para trás, com as quatro patas, ao mesmo tempo. Assim nasceu o famoso pulo do gato, manobra evasiva que nenhum outro felino consegue executar.

Durante a Inquisição, a Igreja mandou para a fogueira milhares de gatos sob suspeita de serem demônios disfarçados. Claro que eles não iam sozinhos. Acompanhavam suas proprietárias rumo à salvação purificadora, através das chamas. A caça às bruxas foi um surto coletivo de misoginia e ailurofobia, cujo legado ainda perdura sob a forma de preconceitos e superstições. Embora atualmente os gatos sejam animais de estimação quase tão comuns quanto os cães, ainda há muita gente com um pavor irracional desses felinos. Claro que esse pessoal também não está sozinho. Consta que Napoleão Bonaparte, Benito Mussolini e Adolf Hitler tenham tido seus faniquitos gatofóbicos.

Por sorte, basta entrar em contato, gradualmente, com os gatos para ir perdendo o medo e se apaixonando por eles. Quando você reparar, já terá adotado um filhotinho nada assustador. Depois vai curtir a página do Borges, o Gato, (cronista, poeta, blogueiro, filósofo felino e fofo) no Facebook e começará a trocar fotos de gatos pela internet. É um caminho sem volta, mas cheio de perigos. Os chineses tinham razão: existem gatos do bem e gatos do mal. Como distingui-los? É fácil: os malignos têm duas caudas.

Nota do Editor
Carla Ceres mantém o blog Algo além dos Livros. http://carlaceres.blogspot.com/

Leia também "Sultão & Bonifácio - Parte 1", de Guilhermes Pontes.

Carla Ceres
Piracicaba, 4/4/2013

 

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