COLUNAS
Quarta-feira,
27/2/2013
Sultão & Bonifácio, parte I
Guilherme Pontes Coelho
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Brás Cubas visitou a origem dos séculos. Ele viajou no lombo de um hipopótamo, que o sequestrou logo depois de Cubas ter sofrido duas metamorfoses: de barbeiro chinês, "bojudo" e "destro", que estilizava um mandarim, em Suma Teológica, "encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas"; e de Suma em si mesmo, o Brás Cubas de sempre. Tendo Cubas sobre o dorso, o animal galopou a uma velocidade inacreditável, "numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve". Mesmo galopando tão veloz, o quadrúpede pode avisar a Cubas que até do Éden já haviam passado.
A origem dos séculos era o destino. Lá, Cubas conversou com a Natureza, ou Pandora, "um vulto imenso", que "tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano". Preciso ignorar o diálogo dos dois para chegar ao trecho em que Natureza, ou Pandora, segura Cubas pelos cabelos e mostra a ele "uma redução dos séculos", um desfile inexorável da História, que passava sob os pés de Brás Cubas. Os séculos desfilavam num turbilhão, e para descrever isto "seria preciso fixar o relâmpago". Cubas foi espectador de tudo o que o mundo havia vivido e, em algum momento, sem que percebesse, já não estava nas mãos de Natureza, ou Pandora, mas no dorso daquele hipopótamo, que o conduzia ainda mais rápido, só que agora em direção ao último dos séculos. O último!
Quanto mais próximo do fim, mais rápido os séculos passavam por Cubas: "A marcha era tal que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século". Então as coisas começaram a ficar confusas e "um nevoeiro cobriu tudo - menos o hipopótamo que ali me trouxera". O bicho começou a diminuir; diminuiu até ficar do tamanho de um gato. E era mesmo um gato, que brincava com uma bolinha de papel à porta do quarto onde Brás Cubas teve este delírio, "O Delírio", capítulo VII de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Era o gato do delirante e ele se chamava Sultão.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é um dos nossos melhores romances e "O Delírio" talvez seja o melhor capítulo dele. A primeira vez que o leitor viaja às costas do hipopótamo é nada menos que incrível, sobretudo quando esta primeira vez acontece na adolescência. Foi meu romance predileto por algum tempo, e hoje está na minha lista dos mais-mais.
Uma coisa, contudo, me deixa intrigado. Sultão, o gato, só é mencionado uma singular e mísera vez em toda a história. Sultão sequer estava entre os onze amigos que presenciaram o enterro de Cubas. Do além, Brás Cubas, o defunto autor, conta a vida que teve para matar o tédio e nunca, nunca fala do pobre gato, senão no capítulo VII. Não era um hipopótamo que o acompanhava ao fim dos séculos, era Sultão que brincava à porta da alcova. Leia o romance. Você não vai achar uma palavra sobre o bichinho, senão estas:
"(...) um nevoeiro cobriu tudo, - menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel..."
Uma curiosidade recalcitrante é saber como era Sultão, porque o gato não é descrito no romance. Costumo imaginá-lo cinzento, rajado, obviamente vira-lata. Também imagino que tenha aparecido a Brás Cubas ainda jovem, mas não bebezinho, e que ambos se adotaram não de imediato, mas em um misto recíproco de tolerância e indiferença. Agora, por que se adotaram, se precisasse haver um porquê fundamental, vou esperar Machado de Assis escrever. Também vou esperar, ainda mais ansioso, descrições do cotidiano de Sultão sob os cuidados de Cubas e, ainda mais importante, descrições de tratos e mimos, se houve, dispensados ao felino. Será que Sultão, depois de aprontar alguma bobagem, ouvia o familiar e icônico "Ah, brejeiro!"?
Prudêncio, Eugênia, Virgília, Quincas Borba, Marcela - quase todos os personagens reaparecem mais de uma vez ao longo da vida do defunto autor. Prudêncio, por exemplo, é o moleque escravo e escravizado por Cubas:
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a boca, besta!"
O mesmo Prudêncio reaparece muito depois, no capítulo LXVIII, "O vergalho", numa cena em que "um preto"...
...vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: - "Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!". Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É, sim, nhonhô.
- Fez-te alguma coisa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!
Estamos de acordo que Brás Cubas era um cretino e que, aos olhos mortos e à pena defunta dele, Prudêncio talvez - ênfase em talvez - tivesse mais a oferecer literariamente que Sultão, sobretudo por conta deste episódio do vergalho. É um episódio que precisava ser narrado, independente do contexto em que se encaixa na história. Contudo, a ausência gritante do gato Sultão no relato autobiográfico do morto talvez adicione algum tempero à superficialidade tridimensional do autor (me refiro a Brás Cubas).
Para elucidar o "talvez" enfático do parágrafo anterior, façamos uma comparação.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é de 1881. Sete anos depois, outro ídolo publicaria outro romance presente na minha lista de preferidos, um romance também escrito em português, também com um gato no elenco, mas com um dono provavelmente em tudo contrário a Brás Cubas.
(Parte II)
Guilherme Pontes Coelho
Brasília,
27/2/2013
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