O Dr. Basílio, aliás Brasilio, ou Brasil, assim mesmo, acordou de repente e colocou os pés no chão, depois de um dormir entre colchas e travesseiros macios, recheados com plumas de aves canoras e paina de frondosas quimeras.
O repouso inconsciente, foi resultado de uma carraspana colossal após uma festa bizarra, desproporcional e espantosa, promovida por ilusionistas, prestidigitadores, mensageiros do futuro e outras criaturas medonhas, que aplicaram o golpe da igualdade, fraternidade e liberdade, sem ordem e muito menos progresso. Em seguida a um período de severidade e retomada de valores morais e sociais, sob um sistema e método, muitas vezes assustador, o Dr. Brasil, encontrou um rumo para seguir. Olhando para cima e para os lados, percebeu que o casamento com a Dona Democracia seria a fórmula perfeita para o bem da Família.
A grande família do Dr. Brasil, formada pelos três filhos, a Pátria, mais velha, mais respeitável, mais experiente, o País, jovem arrojado, inteligente, um tanto afoito e orgulhoso e forte. Enorme. Finalmente, a Nação, e toda a curiosidade, aflição, insegurança quanto a própria identidade, esperança, desejos e angústias.
Agora, ao lado do berço, por sinal esplêndido, sentiu o desconforto do chão quase que em chamas, forrado com os escombros dos escândalos, patifarias, compadrios e nepotismo , adornados com "rachadinhas", refinarias enferrujadas, mensalões, propinas e comissões, sítios e triplex, boquinhas e sinecuras, anacronismos intelectuais, desperdício com vacinas e remédios, deixados para trás até perder a validade, falatórios, "pedaladas'', ameaças, enfim o assoalho do inferno.
Agora,o sonolento Dr.Brasil continua a procurar os chinelos para proteger os pés de todo aquele apocalipse, pronto a sublimar suas vontades, antes mesmo que possa voltar a caminhar de novo. O chão está apinhado de pés de chinelo de esquerda, de centro e de direita, nesse caso apenas um.
Curiosamente, uma pilha especial, e aí tem de tudo, chinelo, sandália, borzeguim, botina e até coturnos, tenta formar par, seja com algum do seu próprio grupo ou, ainda, com o mais provável pé, o mais bem acabado, melhor costurado, adornado com as tradicionais falácias, promessas e verborragias, o pé da esquerda.
Coitado do Dr. Brasil.
Nenhum calçado decente para proteger os seus pés. Ou chinelos corrompidos, rotos, ou botas enlameadas com a violência e o absurdo.
Só pés de chinelo para escolher como caminhar sobre o fogo do inferno, sobram para o Dr. Brasil.
Acreditar faz parte do nosso eixo, Desconfiar é parte da estratégica, Observar desnuda a desconfiança, Encarar demanda força enérgica, Todos somos meio pavio curto, Somos suave e somos brutos, Sem nos importar com a dialética.
Mesmo sem uma análise sintética, Fazemo-nos felizes e capazes: De amar a si mesmo e ao outro, Somos ecléticos e também eficazes.
Não se trata de nenhuma nova descoberta gastronômica, nenhum atentado contra as corujas, mochos, bacuraus e toda a moçada noturna, que tem por costume viver à sombra da lua, em vez do brilho do sol.
As discretas corujas e seus aparentados, aves de rapina, caçadoras, soturnas e de poucos amigos não tem nenhuma característica que as leve aos fornos e caçarolas dos mestres da cozinha.
Depois de duzentos anos de independência muita coisa aconteceu.
Esperanças, expectativas, tentativas, acertos, erros e muita conversa fiada.
Agora estamos vivendo as emoções de um ano de eleições para presidente. Depois de vários períodos de relativa calmaria, bem relativa por sinal, o nosso País foi trocando de regime até o que, hoje, somos uma Democracia.
Colônia, Império, República No.1, No.2, e vamos lá.
País do futuro, Celeiro do Mundo, o Petróleo é nosso, É tetra, É penta, Ame-o ou deixe-o… Assim tem sido nos últimos anos. Várias formas de exaltar e provocar o patriotismo, o nacionalismo, e democratismo, e outros ismos do povo.
O poder emana do Povo, pelo Povo, para o povo.
A frase solene pronunciada por Abraham Lincoln, é parte da Constituição Federal do Brasil de 1988.
Entretanto, ao exercer seu indiscutível poder, o Povo é conduzido, algumas vezes, a situações delicadas. As escolhas não cumprem o que prometeram, mudam de ideia, de discurso, de atitude e , raramente, confirmam as expectativas.
O Nepotismo. O Compadrio, a Prevaricação, a Mentira, a Desfaçatez.
O nepotismo é escancarado, do primeiro ao quarto grau de parentesco, todo mundo é aquinhoado com uma sinecura, uma prebenda, uma boquinha.
O compadrio é endêmico. Os "correligionários", os "de confiança", os indicados por amigos do peito.
O terceiro, é a atitude do "não soube", "quando me avisaram já tinha acontecido", "isto não é verdade"!
A mentira dispensa maiores explicações. É a falta de vergonha na cara muito necessária a quem se dedica a lidar com promessas e garantias vazias. São estatísticas manipuladas, fatos descritos em versões mirabolantes e fantasiosas, enfim, falha na verdade nua e crua.
A Desfaçatez é o mais recorrente dos comportamentos daqueles que deveriam se ater às promessas, também cognominadas de "compromissos de campanha".
Depois de muitos anos de vida, no meu caso 80, (oitenta) acho muito engraçado, senão trágico, ver os que se oferecem para escolha, repetindo discursos que escutei há mais de 60, (sessenta) anos, O pobre, O pão, A fome, O lucro, A reforma agrária ( essa de morrer de rir) o Trabalhador, Os direitos ( sempre a frente dos deveres) o Salário que não dá pra nada, etc, etc, etc, etc. Jean Valjean e seu Javert.
Diatribes, desaforos, grosserias, insultos, sempre procurando impressionar o eleitorado menos favorecido pela vida. Promessas, planos e projetos que encantam e provocam a esperança de todos não tem limite. A falta de respeito ao público, ao eleitor, ao cidadão que está ouvindo o tro lo ló, é espantosa.
Aí está o Sarapatel de Coruja, uma analogia bizarra com o besteirol boquirroto, o discurso venturoso e vazio.
Mas vamos lá.
Vamos, novamente, tentar o menos mal, o mais convincente, o isso e aquilo. É assim.
Sempre um Sarapatel de Coruja, com ou sem pimenta…
Deixei-me ir com o tempo, Sem carência, se a frente ou atrás, Paralelos, foi a única exigência, Na viagem que todo humano faz, No comboio vou matando as saudades, Reafirmando a minha liberdade, Caminhando sem olhar para trás.
Bom dia a esse dia, Bom dia pra ti também, Quem com sorriso fere, No fundo não fere ninguém, Cria base para o amor, Com sorriso de esplendor, Responda a esse alguém.
Cabeças explodindo, sexo compulsivo, corporações corruptas, heróis psicopatas, mocinhos indecisos. Tudo isso esfregado na cara do espectador, sem nenhuma condescendência. “The Boys”, a série da Amazon Prime, quer exatamente isso; chocar pela imagem, conquistar pelo grotesco, persuadir pela subversão.
Não que isso já não tenha sido feito no cinema, quadrinhos ou, até mesmo, em séries. Mas, nesse caso, a junção de imagens gratuitamente violentas e perversão (no sentido psicanalítico) é vista através daqueles que deveriam nos salvar.
Talvez, por isso, a série tenha ganhado tanta repercussão. Inverter o sentido do herói, explicitar o sexo pervertidamente, exibir a manipulação das pessoas, são parte dessa narrativa na qual semideuses e mortais compartilham do mesmo mundo midiaticamente degenerado.
Isso é uma parte. Provavelmente, nada disso teria provocado tantos efeitos se esses efeitos não estivessem de acordo com uma estética que, de certo modo, os fundamenta; uma dose cavalar de kitsch , pastiche e imagens que bastam por si mesmas.
O kitsch ( Umberto Eco ) é feito para dar ao espectador um sentimento já pronto, comestível, rapidamente consumível. As sequências e cenas de extrema violência são o principal, mas não o único, exemplo dessa estética na série.
Não por acaso, esses momentos surgem de modo inesperado, “surpreendendo” o espectador que vibra (pelo menos, creio, que é o que acontece com a maioria) com lutas com superpoderes, tripas para fora, cabeças pelos ares, corpos despedaçados.
É a expectativa da audiência sendo recompensada. Aqui, nenhuma centelha de violência deve, repito, deve, ser explicada por uma moral maior, por uma lição edificante, por um sentido enobrecedor como fundamentos principais a serem absorvidos. Splash! Mais uma cabeça se foi.
Nesse caso, nem mesmo a possível confusão com o “midcult”, um estilo que tenta imitar estilos anteriores com alguma grandeza, existe. É verdade que existe a imitação de heróis e temas anteriores, o que pode parecer uma paródia quando os ironiza, como Capitão Pátria /Superman , Soldier Boy /Capitão América , etc.
Mas, o sentido maior, é se aproveitar desses conteúdos anteriores que são reconhecíveis, para fazer uma imitação que, aparentemente, inverte os sentidos dos filmes de heróis, seus comportamentos, moral e objetivos.
Mas essa intenção quase desaparece por completo quando predominam a ideia das corporações malvadas, as imagens impactantes, o terror confeccionado, o sexo como choque e piada.
Sim, como choque e piada. Em “The Boys” o sexo, a perversão, nada tem a ver com uma crítica satírica profunda à condição humana (ou super-humana (sic)). Nada tem a ver com o sexo, tão decisivo, por exemplo, no cinema de Buñuel .
Na série, a perversão é exibida pela perversão. Imagem pela imagem. Expectativa e compensação. Exibição pela exibição. Não é à toa que ela se dá, principalmente, entre os super-humanos. Talvez porque, os “super”, como são chamados, corrompidos pelo poder, descem do seu olimpo, tornando-se, em seus “defeitos”, humanos.
E, no mesmo sentido, os humanos, querendo “ascender”, aspirem os poderes dos “super”, como uma obrigação de combater os maus heróis, mas também (vejam a alegria do frágil Hughie ao ter um super poder) como êxtase e compensação de si mesmos.
Você deve estar se questionando: mas a série não se propõe a fazer uma discussão profunda sobre esses temas, é entretenimento!
Exatamente. Daí ela poder ser considerada uma das manifestações da nossa contemporaneidade. A imagem, em si, domina a sensação. Ela não precisa estar ligada a uma justificativa ou a um propósito crítico.
Por isso o sexo é surreal, mas um “surrealismo sem inconsciente” (Fredric Jameson ). As imagens sobrepostas, descontextualizadas e as colagens da arte surrealista tinham um propósito; tornar menos familiar nossa compreensão das coisas.
Em “The Boys” a familiaridade exagerada das imagens não se propõe a isso. Não precisa. É o sentimento mastigável, a violência exacerbada e o sexo como choque programado que dão, aos Boys, o sentido. Sentido?
O noticiário via Internet, nos dá conta da inimputabilidade de um indivíduo que tentou matar com uma faca, um outro indivíduo desarmado, exposto, sem aparatos de proteção ou defesa. O motivo não importa. O assassino fracassado em seu intento, quis matar, finalizar uma vida, interromper o destino de outro.
Insisto em que o motivo não importa. Não há nenhuma justificativa para um assassinato.
A demonstração escancarada, brutal, aterrorizante, estúpida, foi concluída com a prisão em flagrante do criminoso.
A finalidade da Justiça parece clara. Não há o que argumentar. Tentou matar ou matou, tem que ser tirado do convívio das outras pessoas não assassinas, encarcerado, segregado, trancado, na melhor das hipóteses. Mas…
A figura do inimputável em casos tais é, simplesmente, absurda. É tão acadêmica quanto uma firula qualquer , de um vetusto areopagita magistral, com seus conceitos e argumentos vertiginosos, achando que um maluco, um doido, um louco sem medida, é irresponsável e suas ações ficam atenuadas, por falta de qualquer noção de responsabilidade . É inimputável, não pode ser responsabilizado pelos seus atos…
Aí mora o despautério, o desatino, o horror e a insegurança nos tais ínclitos julgadores e suas interpretações escabrosas.
No passado o Marquês de Beccaria escreveu um tratado sobre os delitos e as penas. O nobre jurista, com toda razão, reavaliou os absurdos que os tribunais de então, cometiam quando atribuíam castigos muito severos, a delitos provocados pela miséria, pela falta de trabalho, pela opressão das classes dominantes sobre a ralé fedorenta. Aquela coisa muito bem contada por Victor Hugo em sua obra antológica Os Miseráveis.
Os atuais deslumbrados jurídicos, de forma perversa e vulgar, aplicam conceitos de "dosimetria" da pena, para liberar toda e qualquer espécie de ladrão, estelionatário ou bandido que tenha um advogado, suficientemente competente para um fantástico juridiquês. A desculpa mais ordinária é a mesma dos tempos de Victor Hugo. A miséria, a fome, roubo de um pão, etc, etc. Em seguida vem a superlotação do sistema carcerário. Tem preso demais e os "crimes de menor" ofensa, são resolvidos com uns bofetões policiais, o que não mais acontece, e o bom amigo, o alvará de soltura. Assim, a gente fica mais dentro de casa, tem mais medo, tem menos prazer em socializar, passear nos parques, na orla da praia, e o testemunho dessa catilinária, mais uma vez, está no mesmo noticiário cotidiano que nos mostra a realidade da vida na cidade.
Mas o absurdo vai muito mais além. Até aqui falamos dos "pés de chinelo". Loucos e desvairados que batem em velhos, roubam celulares, chutam cachorros, ficam nus nas janelas dos condomínios, defecam na calçada, urinam em postes de iluminação.
O absurdo está na libertação de criminosos, estelionatários, peculatórios, patifes e profissionais de política que, mesmo após terem seus crimes e descalabros, alardeados despidos, estripados, autopsiados virtualmente, pela Polícia, pela própria Justiça, através do Ministério Público, finalmente julgados e CONDENADOS, inclusive com início de cumprimento de pena, são liberados com a garantia da própria justiça agora menor, mais feia, menos compreensível, surreal em argumentos bizarros, fundados em deformidades nos ritos e mitos do processo…
A indignação aumenta quando se fica sabendo, sempre pelo noticiário, que um assassino potencial vai ser libertado! Um indivíduo que , em público, esfaqueia um cidadão, com a mais nítida e clara intenção de matá-lo, não importa o motivo, vai ser solto?
É assim ? Não vai ficar trancado em um Hospício? Ou num presídio? Vai ficar solto, assistido por psicólogos, etc.
Se fosse um cão PitBull, seria cancelado . O cão não é inimputável… Dura lex sed lex. O loco meu.
Aprender a desenhar foi uma das mais agradáveis atividades em toda a minha vida. E já se vão algumas dezenas de anos.
Até onde a memória alcança, o ato de rabiscar, buscando formar representações das coisas imaginadas ou à minha volta, sempre foi facilitado por meu avô, amigo desde as horas mais remotas do meu lembrar, ali pelos seis anos. Ainda tenho guardadas garatujas daquela época. Foram colecionadas e deixadas em meio a outros papéis muito mais importantes, organizados em pastas e envelopes.
Um barco, uma "paisagem", um automóvel. Um perfil de um índio com o cocar foi repetido diversas vezes, assim como um veleiro, copiado de uma estampa.
O lápis comum, os lápis de cor, os blocos e folhas de papel sempre andaram por perto. Mais tarde e mais habilidoso, fui apresentado a caneta de desenho com tinta nanquim. Aí a coisa demorou bastante.
Um amigo muito próximo do vovô era desenhista profissional. Trabalhava no Ministério da Guerra, ali do lado da Central do Brasil. Era o chefe da seção da cartografia. Dele ganhei o meu primeiro lápis Turquoise HB. Que presentaço. Era sextavado, tinha cor azul, um "lamborguini" enquanto material de desenho. Só profissionais usavam aquele instrumento sagrado. A primeira vez que o visitamos, fiquei maravilhado. As pranchetas tal como púlpitos sagrados, os bancos altos, a luz natural inundando tudo. Voltamos lá várias vezes, com intervalos muito maiores do que eu gostaria que fosse, mas era um lugar de trabalho. Também o visitávamos em sua casa. Aí fiquei sabendo que ele era professor. Em seu atelier e escritório mais uma novidade ao alcance das mãos: cavaletes de pintura. Um, grande e outro menor, com o banquinho em frente. E como tinha coisa! Paletas, tubos de tinta,uma prancheta encostada e de frente para a janela, um jaleco pendurado num cabide, por sua vez enganchado numa estante de livros… Tudo meio arrumado, meio tumultuado, meio sei lá o que…
Nunca parei de desenhar. Sempre garatujando, rabiscando, tentando fazer melhor.
A vida foi acelerando e dispersando bons focos, agrupando quimeras e idéias, distraindo o olhar com borboletas imaginadas em fantásticas aventuras e perigosas experiências. Assim fui, tocando, literalmente, num conjunto musical de pós adolescentes poucos adultos, onde eu tinha quinze anos e o segundo mais velho dezenove… Toda semana tinha baile. Rendia um troco muito bem vindo. Semanas com dois bailes, um sábado e uma domingueira. E na segunda feira, o colégio, o ginasial e suas matérias, inclusive música, latim, desenho…
E voltamos para o desenho. Aquilo era muito aborrecido. O professor estava cumprindo a tabela da própria vida. Era desinteressado, sem carisma, sem pulso para segurar um magote de moleques patifes, que não prestavam atenção aos desenhos geométricos ou decorativos,a fazer em cadernos quadriculados, imitando ladrilhos de banheiro.Não aprendi nada. Mas, fazia a minha parte e sempre tirei boas notas na matéria, apesar do comportamento menos que recomendável.
Adulto, casado e com filhos, trabalhando em Banco, descobri uma associação de Artistas, onde eram oferecidos cursos de desenho e pintura artística. Conversei com a minha inspiração maior, meu anjo da guarda, minha luz até hoje e contei do meu interesse em frequentar as aulas daquela sociedade. Ela concordou imediatamente. Incentivou com entusiasmo. Duas vezes por semana, após o trabalho de verdade.
Fui apresentado aos modelos em gesso, para copiar sob a orientação de um artista experimentado, paciente e competente. Fiquei entusiasmado. Demorou até que aprendesse a usar o carvão no lugar do lápis. O esfuminho, a escovinha, no lugar da borracha. A minha pretensa habilidade se descobria grosseira, primitiva, desarrumada, insolente. Eu precisava aprender a ver! a enxergar, a sentir os espaços, as proporções, a luz! Estava tudo ali na minha frente. Era só prestar a atenção.
O primeiro desenho estufou o meu peito de alegria e orgulho. Estava muito parecido com o busto de gesso que a turma estava copiando, retocando, aperfeiçoando, escovando e esfumando o carvão sobre o papel.
Finalmente, chegou o dia que eu esperava em total silêncio.
Depois de estar mais ou menos enturmado com os frequentadores da sociedade, todos boêmios, cervejeiros, um tanto bregueiros e bem mais velhos, fui convidado a "encontrar o pessoal", num domingo, numa esquina do centro antigo da cidade do Rio de Janeiro. Eram uns quatro pintores de verdade, fazendo perspectivas com fachadas das igrejas históricas.
Você pinta?
Quero aprender, respondi.
Tem material?
Naquela altura, imagine só um cavalete de campo, uma caixa completa, com a paleta, as tintas, o solvente e os trapos. Nem pensar.
Material?
Uma risada coletiva e simpática, liberou a minha pergunta de uma resposta.
-Tudo bem, não deixa de aparecer lá.
E eu fui, ainda sem o tal material, no fim da rua do Ouvidor, quase na Praça XV. Cheguei pouco depois deles, mas a tempo de perceber a responsabilidade com o que estavam fazendo. Fui cumprimentando todo mundo e olhando com atenção quase que alucinada, para o que estava acontecendo. Um para lá, outro para ali, um terceiro mais para trás, enfim, todos buscando o melhor ângulo para começar o trabalho.
A primeira lição estava começando.
O traçado, o horizonte, o ponto de fuga. Assim começou. No dia seguinte eu tinha uma caixa pequena, de estudante. Pincéis, uma espátula, uma paleta,tubos de tinta, os potes para o óleo e o solvente. Os trapos, peguei em casa. O cavalete, até hoje segue conservado, baleado, meio jururu, mas firme.
Comecei a acompanhar aqueles mestres amigos. Fui aprendendo a ver as ruas, as casas, as fachadas, os monumentos, as árvores, as calçadas. Depois fui aprender a pintar mato, florestas, lagoas, praias, Nunca deixei que a mediocridade me abandonasse. Nunca atingi a maioridade em desenho, pintura, música…
Sigo tentando achar o verdadeiro ponto de fuga para estabelecer a melhor perspectiva, o melhor ângulo da mais tranquila paisagem, da natureza mais gentil.
As fachadas sempre aparecem para ocupar um espaço de destaque. Os caminhos têm curvas e elevações para atrapalhar a minha incipiente técnica. A melhor descoberta foi aquela do horizonte duplo para se colocar algum corpo ou objeto flutuando no espaço.
Acho que a morte tem dois horizontes, mas somente um ponto de fuga.
Alimentar-se com leite é o primeiro acontecimento na vida de qualquer mamífero, seja ele bípede ou quadrúpede, hirsuto ou pelado. Não tem erro. Saiu do ventre, seja lá de que espécie for, vai direto para o peito ou para as tetas. A Natureza assim definiu.
Vamos pensar na ideia da sobrevivência, onde a alimentação tem o mais sagrado e privilegiado lugar. Comemos para nos mantermos vivos, suficientemente fortes para viver o que o destino com seus acasos e fatalidades nos reserva a cada momento.
A evolução dotou os seres humanos de inteligência, a diferença magistral entre nós e os outros mamíferos, que continuaram dotados de instintos, às vezes confundidos com lapsos de inteligência e racionalidade. Entretanto, os animais não aproveitam as sobras da amamentação se, e quando, existem. Símios, equinos, caprinos, muares, suínos, enfim, não produzem queijo ou coalhada. Ah, mas como fariam? Sei lá. Conseguem armazenar sementes, frutos, carniça…
Nós humanos, descobrimos que o leite ,mesmo quando azeda, segue sendo alimento, transformado em coalhada que pode virar queijo. E descobrimos muitas outras formas de conservar outros alimentos, evitando desperdício e provendo para momentos de escassez. Alimentos estragados que não estão estragados! Poderia ser um paradoxo, mas é um recurso, uma técnica, uma prática ancestral.
O paradoxo da virtualidade material, é uma outra circunstância visível em qualquer mapa-múndi.
Países, pátrias e nações são convenções. São resultado da concordância entre iguais humanos, quando se dispõem a resolver seus instintos animais, de posse, poder, similaridade biológica(parecidos uns com os outros) entre tantas outras questões.
As fronteiras são imaginadas e estabelecidas por seres humanos. Tudo ligado ao instinto da sobrevivência acrescido de valores outros que a tal evolução foi agregando.
O País é o Direito, o Poder, o Estatuto. A Pátria é a Paixão, a beleza, a natureza, a Terra primeira onde se nasceu. A Nação é a Turma, a Gente, as Criaturas humanas que a amam. Aí encontramos o bígamo País e suas duas esposas,Pátria e Nação, fidelíssimas, estoicas, maravilhosas e ávidas para alimentar as criaturas humanas que em seu colo se abrigam.
Milhares de anos foram sedimentando normas, regras, diretivas, leis, sistemas e regimes, visando garantir a autoridade, integridade, poder e domínio dos mais proeminentes guerreiros, pensadores e, sem dúvida, místicos que sempre existiram, tentando explicar aos distraídos e assustados, os fenômenos, e as contorções da mãe Terra.
Quem se interessa, lê e estuda a história do mundo e as peripécias de personagens formidáveis.
Em tempos de agora o estupor e o espanto ronda as cabeças pensantes com as marcas virtuais dos Países sendo sacudidas por tanques e mísseis, a comida ameaçando escassear, retida em portos e porões de navios, miseráveis sem fronteira buscando um lugar para sobreviver, arriscando-se em travessias oceânicas , ou tentando romper fronteiras onde não são bem vindos, além de fenômenos climáticos de grande porte, epidemias colossais.
Somos obrigados a escolher o nada, a passividade estéril e segura, o desdém ou a fuga da realidade, em busca de algum sossego. Ah, se fosse tão fácil.
O alimento político para manter vivo e saudável o triunvirato virtual , Pátria, País, Nação é conhecido: Democracia.
Democracia, para quem não sabe, é o regime onde o Povo, a Nação, escolhe quem é que vai dirigir o País. Que escolhe o Governo garantidor da Pátria Amada, a terra onde nascemos e a Nação da qual nos orgulhamos por adoção ou origem natural. De tempos em tempos, bem definidos pelas Leis, o Governo é substituído. É modernizado.
Aí, entra o lado primitivo, o lado obscuro da vaidade, da ânsia de poder, da patranha, da promessa de Manah e Néctar, de delícias e festa.
O alimento estraga. Assim como o leite vira coalhada, se desintegra em soro e material semi-sólido, mais adiante vira queijo, e depois embolora, escurece, fede …
Tem sido assim.
Interessante notar-se que, durante a oferta de possíveis novos governantes, uma variedade de figuras, virtualmente semelhantes ao leite, apresentam-se, entre promessas, afirmações entusiasmadas. Jarros de leite… Alguns já estão fermentados, amarelados pelo tempo de exposição à luz. Outros decantaram e seguem como coalhadas envelhecidas, e a maioria já embolorando e fedendo como queijos impróprios para consumo.
Não há leite fresco, nem coalhada, nem queijos finos.
E o laticínio do demônio.
Um horror.