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Terça-feira, 19/3/2024
Blog de Anchieta Rocha
Anchieta Rocha
 
Calourada

Ele bateu o olho nela, o céu despencou. Aconteceu na festa dos calouros, o primeiro encontro dos estudantes no ano.

Falaram de vidas passadas — quem sabe os dois?... Lamentaram não terem se conhecido antes. Falaram de coisas que só os apaixonados falam. Ficaram numa ânsia grande, não dando notícia de nada acontecendo ao redor, o medo de se perderem um do outro. E o que não podia acontecer aconteceu, ela falando volto já, desaparecendo naquela noite, nos dias seguintes, meses. Conhecendo-se pouco, apenas os nomes, ele de Anápolis, ela de Diamantina, anúncio na rádio e tudo mais, tudo em vão. O tempo passou. Não é que no baile de formatura do cara, fim de festa, todo mundo indo embora, ele não aguentando de porre, ela, sem o frescor de antes, se encontram de novo no meio da pista de dança, o céu despencando mais uma vez, o tum-tum dos corações, o abraço demorado?

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Postado por Anchieta Rocha
19/3/2024 às 17h07

 
Apagão

Ela chegou, tocou o meu braço. Em vez de me conduzir como todo mundo faz, segurou minha mão até a porta da frente do ônibus, me pôs na cadeira, rodou a roleta e em seguida se sentou do meu lado.

Falou que trabalhava até tarde, não disse com quê. Eu imaginava: loura, morena, negra, magra, alta... A voz doce, falava e pausava. A pausa diz muito. Na hora me lembrei de um locutor de rádio que dizia que o Tostão jogava sem bola.

Trabalhava todas as noites. Podia ser uma enfermeira, uma garçonete, uma professora, não quis perguntar. Contei do meu serviço de telefonista na fábrica de bebidas, onde passava o dia datilografando pedidos, e que os colegas de vez em quando aprontavam comigo escondendo minhas coisas. Ela riu quando disse que um dia um cara trocou a minha escova de dente com a de um motorista. Não me importava, molecagem eles faziam com todo mundo.

Senti a maciez da sua mão no meu braço quando sem graça desculpou-se pela pergunta que tinha feito, a de não sentir medo enquanto esperava o ônibus no escuro. Contei que, desde pequeno, mamãe só apagava a luz do meu quarto depois que via que eu dormia. Disse ainda que sentia a noite de diversas maneiras. — Uma mulher também — acrescentei. Não demorou me perguntou se eu a imaginava bonita. Me aproximei mais, senti sua respiração, toquei o seu rosto. Não tinha dúvida, foi a minha resposta. Conversamos até ela descer.

No dia seguinte, na mesma hora, me pegou pela mão, aflito, demorou a se sentar do meu lado.

Morava com a mãe, chegava em casa de madrugada, quase não via o filho. Falou que não aguentava mais, queria ter uma rotina como todo mundo, chegar do trabalho no fim da tarde, botar uma bermuda e ver novela. Perguntou como era a minha vida, se sentia solidão, medo e outras coisas.

Foram dias assim. A minha alegria começava na hora em que nos assentávamos e eu tentava adivinhar como era o seu penteado, como se vestia. Se acertava, ganhava um afago.

Um dia não veio. Peguei o ônibus e procurei me concentrar no itinerário da volta pra casa. Os lugares por onde passava eu identificava pelo barulho, pelo cheiro e até pelo ar. Com algumas viagens e perguntas gravei a sequência: a umidade do vapor da lavanderia, a algazarra das crianças saindo da escola. Mais na frente, a pastelaria – um lanche, qualquer dia descia – e em seguida um longo trecho sem parada. Depois do semáforo o quartel e a cavalariça. A fábrica de tecidos com o ruído das máquinas, e o mais bonito, a alegria das meninas deixando o turno. Bares e bares. O presídio, um silêncio de entristecer, a igreja – a música! Mas o que mais me extasiava era a parada em frente à entrada do parque onde o ônibus permanecia por mais tempo. Num fim de tarde, um calor de ferver o asfalto, tinha chovido, o cheiro da vegetação invadiu o ônibus. Foi o meu pôr do sol. Espichei as pernas, abandonei o corpo e deitei a cabeça no encosto.

Por que ela não veio?

Entrei no quarto, liguei o rádio, só chieira.

A sopa, amarga.

– Nada não, mãe, muito serviço.

Se existe escuro, eu conheci naquela noite. Pesadelo, um atrás do outro, acordei com mamãe me entregando o telefone: — Já passou, o menino teve um febrão, amanhã tá bom, a gente se vê.

No dia seguinte, a boca perto da minha, precisava conversar. Deixamos o ônibus no ponto em que ela sempre descia.

Uma escada longa, vozes de mulheres. No quarto, me acomodou numa poltrona e perguntou se eu queria beber alguma coisa. Depois de algum tempo cantávamos as músicas do rádio. Riu muito quando pedi pra ela fazer strip tease.

Percorri o seu corpo com as mãos. Cada saliência me conduzia a mistérios e êxtases. Nunca tocara uma mulher daquele jeito. Cada parte, cada detalhe, tudo me pertencia?

No dia seguinte, a longa espera, ela não veio. O menino de novo, pensei. Já pra ir embora, outra mão, a de uma amiga, tocou o meu braço: — Ela não vem hoje. A polícia deu uma batida na casa onde trabalha, levou as mulheres, a mãe dela não sabe de nada também.

Eu me sentei no ônibus, baixei a cabeça e em vão tentei organizar o caminho de volta pra casa. As vozes dos bares se juntavam ao coro da igreja, os cavalos do quartel pisoteavam os canteiros do parque, as frituras da pastelaria e do vapor da lavanderia me confundiam.

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Postado por Anchieta Rocha
11/3/2024 às 16h40

 
Geraldo Boi

De vez em quando, me pedia dinheiro. Não o conhecia, rodava o prédio da Fafich inteiro. Usava um paletó de linho com o colarinho da camisa abotoado. Sempre aparecia com um livro debaixo do braço.

Tirei uma nota da carteira e dei pra ele. Não me interessei em comprar o romance que me ofereceu. Quando se afastou, perguntei ao funcionário da secretaria quem era a figura.

– É um pobre coitado que vive andando pra cima e pra baixo, cada um fala uma coisa, ninguém sabe direito quem ele é, de onde veio.

– Vai ver é agente do DOPS – brinquei.

– Que nada, coitado! Eles dizem que foi seminarista, que sabe grego e latim.

– Ele fala bem.

– É verdade.

– Ele vive de quê?

– Não sei, ouvi falar que ficou tantã porque estudou muito – respondeu o funcionário.

– No seminário?

– No seminário e aqui.

– Aqui também?

– Ele cursou todas as matérias de Letras. Quando chegou no fim do curso o professor de psicologia deu bomba nele. Tentou outras vezes, chegava no fim do ano, pau de novo. Mais um ano, pau, até que desistiu.

– Tá parecendo comigo.

– Parecendo com você, por quê?

– Eu tô brincando. É porque eu tomei pau no psicoteste quando entrei na faculdade.

– Ah!, tô lembrado, você é da turma que entrou com mandado de segurança.

– Sacanagem, né?

– Sacanagem, o quê?

– O professor dar bomba no cara todo ano. Vai ver era perseguição.

– Perseguição nada. O professor de psicologia não deixa de ter razão. Já pensou se um cara desses cisma em ser professor?

– Ele podia ser tradutor.

– Mas se ele não fala coisa com coisa em português, imagina duma língua pra outra!

Uma menina de trás do balcão chamou o funcionário da secretaria.

Sílvia, colega da Tânia chegou, mostrei o cara se afastando, contei da conversa.

– Pois eu já ouvi outra história – disse ela. - Na terra dele, uma menina, paixão platônica, se casou com outro, ele nunca mais foi o mesmo.

Geraldo Boi. Geraldo Boi pros alunos da Fafich. Geraldo Viramundo pro Fernando Sabino, anos mais tarde personagem de O Grande Mentecapto.

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Postado por Anchieta Rocha
27/7/2023 às 19h17

 
Júlia

No meu primeiro ano de faculdade, fui lecionar em um colégio noturno que fazia parte de uma associação de ensino sem fins lucrativos e que usava as instalações de uma escola pública.

Numa tarde em que eu estava de um jeito que não sabia se valia a pena viver, entrei na biblioteca da faculdade, fui à seção de literatura brasileira, peguei um livro do Vinícius de Morais, passei em casa, tomei banho e fui dar aula.

Fiz a chamada, parei em frente da turma, li o poema.

Júlia se sentava na primeira carteira.

Eu te peço perdão por te amar
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos

Li com uma emoção que desconhecia em mim. Quando terminei a leitura, pedi aos alunos que escrevessem o que quisessem sobre o que eu tinha acabado de ler. Percebi que Júlia chorava. Fui pra porta da sala e fiquei olhando pro pátio.

Depois de algum tempo tive que deixar o colégio, o que ganhava não dava pra nada. Uma semana antes de sair, falei da decisão com meus alunos.

No último dia na escola, me despedi das turmas. Quando acabei de dar a última aula da noite, que caminhava pra sala dos professores, Júlia me alcançou no corredor, enfiou a mão na bolsa e me entregando um envelope pediu que só o abrisse quando eu estivesse longe.

Professor Marcos,

Durante meses em que fui sua aluna, você sempre se dirigia a mm do mesmo modo que se dirigia aos meus colegas de turma. No início, nada de especial chamava a minha atenção. Com o passar do tempo, um sentimento começou a tomar conta de mim. Observava que depois que passava uma tarefa – a voz tranquila, as mãos num ritmo suave —,você se assentava e seus olhos se distanciavam. Tão logo os meus colegas curvavam sobre seus cadernos, eu o observava. Com o passar do tempo a minha contemplação aumentava. Sem que percebesse, eu invadia os seus olhos e sentia que neles se escondiam inquietação e doçura. No dia em que leu o poema do Vinícius, eles chegaram diferentes e a bobona aqui chorou. Ao pedir que fizéssemos a tarefa, eles se arrastavam. Ilusão ou os meus embaçados? Escrevi esta carta na noite em que falou que ia nos deixar. Quero que seja feliz porque muito fui pelas “horas que passei à sombra dos teus gestos”.

Júlia

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Postado por Anchieta Rocha
12/5/2023 às 18h57

 
Minha Mãe

Às cartas de mamãe, choradeiras constantes, eu não respondia. Histórias longas, assuntos de sempre, acontecimentos de Lagoa Grande não me despertavam interesse. Vivia dizendo que se preocupava comigo, que rezava por mim, queria saber se eu não passava frio, se me cuidava, as perguntas de sempre. Por mais que explicasse que o metrô, as casas e os lugares públicos de Nova York tinham aquecimento, não adiantava. Pior ainda as cansativas e constantes indagações sobre minha alimentação, se comia fruta e legume, acrescentando que não me descuidasse porque eu vivia num país onde o povo só comia cachorro-quente e hambúrguer. Ficava penalizada por me privar de coisas que ela fazia — descrevia tudo —, de farofa de carne seca, de goiabada cascão com queijo, por aí ia, não cansando de dizer que tão logo aparecesse um portador, ela mandava pra mim. Então eu tihha que explicar que os alimentos que as pessoas traziam de outros países ficavam retidos na alfândega pra quarentena, que dava um trabalho enorme retirar, muita burocracia, que era melhor não mandar nada. Eu tinha preguiça e impaciência pra responder suas cartas, mas mesmo assim, pra não deixá-la aflita, de vez em quando jogava um cartão postal na caixa do correio pra acalmá-la. Depois de um tempo, sua letra começando a perder firmeza, dizia que sentia a minha falta, que queria ouvir a minha voz, que podia ligar a cobrar. Aí eu baqueava. Os meus pensamentos ficavam confusos, um incômodo insuportável. Eu então era invadido por sentimento de culpa, de estorvo e de arrependimento por não ter sido um filho melhor. Tinha dia, punha uma folha de papel sobre a mesa, escrevia querida mamãe e não passava disso. Minha mãe. Minha mãe que me carregou tanto, hoje eu a carrego, um peso dolorido.

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Postado por Anchieta Rocha
26/4/2023 às 10h42

 
Meu avô

Vou me lembrar pra sempre das temporadas de meio de ano na fazenda de meus avós. Tinha vez, vovó pedia pra ir na venda, eu não gostava.

Todo dia, escuro ainda, meu avô levantava e pegava o cavalo. Montado, recebia a marmita e o agasalho das mãos de vovó. Só voltava no fim da tarde. Às vezes demorava.

— Meu filho, vai lá na venda e traz seu avô.

Tonto, os olhos teimando em ficar abertos, me via, baqueava. Podia estar no melhor da prosa, gesticulando, contando façanha. Abaixava a cabeça e me seguia.

Do tamborete da cozinha escutava o sermão de sempre. Não falava, não interrompia vovó, os olhos fixos na chama do tição de lenha.

Ela destampava a panela, vinha com uma tigela de caldo fumegante e punha na mesa. Ajeitava o xale e o coque e saía pra sala.

Muitas vezes, sem que ele percebesse, eu ficava por perto.

E aí começava. A discussão com o encarregado do curral que descuidava da ração dos animais, a mulher do retireiro reclamando da escola dos filhos, a demora pra receber as contas da última colheita. Ficava exaltado, movendo a colher no ar. Outras vezes permanecia em silêncio como que ouvindo o interlocutor, movendo a cabeça, concordando ou desaprovando.

Foram muitas temporadas na casa dos meus avós nas férias de meio de ano.

Eu gostava de tudo na fazenda. Só não gostava quando tinha que trazer vovô da venda. Chegava lá, ele me via, abaixava a cabeça e me seguia.

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Postado por Anchieta Rocha
3/1/2021 às 11h46

 
Cata-lata

Desde que chegou de Maravilhas, Tião não pôs o olho em mulher nenhuma. Viu Tonha, os amigos não perdoaram, desengonçada, não ligou.

Verão, estação das latinhas, fim do show no campo de futebol, ao atirar uma caixa de papelão no carrinho, errou a mão. A mulher praguejou. Acertar uma belezura dessa? — disse se desculpando. Ela acalmou, escondeu o sorriso atrás da manga, limpou o suor do rosto. Ele foi no carrinho, veio com uma garrafa e ofereceu um gole. Tão logo virou as costas, Tonha sumiu.

Do lado de fora do campo, os refletores apagados, Tião foi até ela, puxou conversa. Ajeitaram o que recolheram do show e desceram a rua juntos.

Debaixo do viaduto, esvaziando o carrinho, uma rajada de vento seguida de chuva mudou o tempo. Ele foi num monte de caixas e voltou com duas cobertas. Espalhando papelão no cimento, disse que o temporal ia demorar a dar trégua.

Com o tempo os companheiros acabaram aceitando Tonha. Conseguir um canto no vão do viaduto ao chegar do interior, foi difícil pra ele também. Nas primeiras noites ficava do outro lado do rio, debaixo da marquise, observando o movimento. Aos poucos, oferecendo gole, acendendo um foguinho, conversa mole, apanhou confiança.

Depois de alguns dias o céu abriu. Com o Pirata latindo no carrinho, os dois partiram pra buscar as coisas dela no depósito na Gameleira.

No que faltava um pedaço pra chegar, ele encostou. Do fundo do carrinho tirou uma toalha e sabonete. Ela não disse nada, fez cara feia e sentou no meio-fio.

Ele entrou no posto, o frentista apontou pros fundos.

Tião pôs a toalha e o sabonete no latão e ficou de short.

O frentista chegou, abriu a torneira do tanque, espichou a mangueira e deu uma esguichada nele. Tião começou a cantar e os lavadores caíram de gozeira. Passado um pouco, fez sinal pro cara baixar a mangueira e deu uma ensaboada. Mais uma esguichada, pegou a toalha, enxugou e vestiu a roupa.

Aquele filho de Deus era o único que fazia uma caridade daquela. Tinha vez, fazia um carinho no Pirata.

Na volta Tião encontrou Tonha, cara amarrada, a mão na barriga. No canteiro do posto, uma roda de vomito que Pirata cheirava. Disse que achava que estava prenha, a regra estava tardando, e que uma mulher na Cabana tirava.

Ele assobiou, Pirata pulou no carrinho.

Chegando no depósito, ela diminuiu os passos e baixou a cabeça. Tião achou que ela ia botar pra fora de novo.

— Alá ele.

— Ele quem?

— O que eu morava com ele. — Disse ainda que era melhor Tião ir embora que o sujeito era dos ruim e que sempre carregava uma faca.

O cara parou perto dos dois e com um safanão afastou Tonha. Tião partiu pra cima. Com um chute desarmou o cara, chutou a faca pra longe e pôs toda a raiva na mão.

De tardinha já estava do outro lado da cidade. Tinha que sumir por uns tempos.

Numa tarde de sábado, catando latinha num comício, ele levanta a cabeça e dá com Tonha.Ela fez que ia embora.

— Que pressa é essa, é o peste?

— Que peste? É sua filha, tá na hora dela mamar.

Tião caiu de joelhos e cravou os cotovelos no chão. A primeira coisa que passou na cabeça foi levar Tonha e a menina pra debaixo do viaduto e em seguida correr pro posto de gasolina e dar um abraço, um abraço apertado no cara que esguichava a mangueira nele.

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Postado por Anchieta Rocha
1/12/2020 às 16h19

 
Vida de boy

Toda noite chego da aula, pego o prato no forno, levo pra sala e fico vendo televisão até mamãe chamar, filho, vai deitar, está tarde. Entra semana, sai semana, entra mês, sai mês, todo dia a mesma coisa. Estudo, trabalho, o dinheiro não dá pra comprar uma roupa decente. Ando sem parar, pego fila de banco, de correio, corro atrás de ônibus o tempo todo. O pior é de noite no colégio. Me esforço pra não dormir, não tem jeito. Até na hora do intervalo dá pra levar. Depois é uma luta pra ficar acordado. Eles acham que a gente dorme por desinteresse. As aulas de biologia são boas, a matéria pesa pro vestibular, debruço na carteira, não tem jeito. Um dia a turma me sacaneou. Saiu todo mundo em silêncio, apagaram a luz e ficaram de longe, esperando. A faxineira chegou e me cutucou.

Turma legal a minha. Dá de tudo: ajudante de pedreiro, trocador, auxiliar de escritório, manicure e um cara muito estranho que trabalha na escola de medicina, na sala onde ficam os cadáveres. Me contaram que quando corta os órgãos pros alunos, ele morde a língua de cacoete. O Luiz, gente boa, eles gozam muito. Durante o tempo em que a professora de história está na sala, ele fica se alisando debaixo da carteira. Com as meninas eu não consigo nada. Não sei se é porque sou tímido, ou porque não sou bonito. Feio de todo também não sou. Tem cara que vai chegando e falando, com assunto pra tudo, pra toda hora. Falam umas coisas sem graça e todo mundo ri. Fico num canto olhando, encolhido feito um caracol, coçando a cabeça ou assobiando, fingindo que está tudo bem, que estou numa boa. No fundo fico doido pra ser diferente. Será que tem cara que nem eu, cismado com tudo?

Chega sábado é legal. Largo o serviço ao meio-dia e corro pra casa. Almoço, descanso um pouco e caio na rua. Bato perna no bairro, encontro um e outro e quando vejo o dia acabou. É no sábado que acho que alguma coisa vai acontecer. Imagino uma menina, a gente acabou de dançar. Caminho com ela pro jardim e digo uma coisa do tipo faz tempo que não vejo uma noite tão bonita. Eu só fico imaginando a cena de sábado. Nada acontece. Nada muda. Não sei se é porque sou sonhador ou é porque a gente vê isso nos filmes e nas novelas.

Chega domingo, acordo tarde, almoço e de tardinha baixa a tristeza. Do fim de domingo ninguém escapa. Não acho resposta pra muita coisa. Às vezes mamãe fala pra sair quando me vê parado, pensativo.

E assim vai passando o tempo. Todo dia, toda semana, entra mês, sai mês, o mesmo de sempre. Nada de novo acontece. O negocio é inventar qualquer coisa pra mudar o rumo da vida, sem nada a ver, sem muita explicação. Uma vez eu estava viajando de ônibus numa estrada longa e deserta. Na frente ia um caminhão que começava a fazer ziguezague nas duas pistas e depois de algum tempo voltava a seguir normalmente. Passava um pouco, fazia o mesmo. Foi assim até que eu virei prum sujeito de meia idade sentado ao meu e lado e perguntei por que o motorista fazia aquilo. Ele ficou pensativo e depois de algum tempo respondeu que achava que o cara fazia aquilo pra acabar com a monotonia da viagem.

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Postado por Anchieta Rocha
21/2/2020 às 10h15

 
Quando estive em Hollywood

Fiquei puto comigo porque perdi a menina prum amigo. Fiquei puto porque eu tinha que ser como os caras nos filmes. Tinha que fazer que nem o William Holden no Férias de Amor, num feriado, num tempo em que as pessoas faziam piquenique.

Saltando dum trem de carga numa cidade do interior, fazendo bico, limpando quintal, flertou com a Kim Novak na varanda da casa ao lado. De noite, fim de festa, a orquestra tocando Moonglow, os violinos nas notas agudas arrepiando a nuca, marcando a música com o estalar dos dedos, sem ninguém entender nada, roubou a moça do ricaço da cidade.

Num domingo à tarde fui com três amigos conhecer a BR-3. Nunca tinha visto uma rodovia asfaltada, só em filme. A BR-3 era a coisa mais bonita. Viajava de trem, em estradas poeirentas, esburacadas, os ônibus sacolejando o tempo todo.

Do Centro pegamos carona com um cara que tinha um sítio em Água Limpa. Descemos na Lagoa Seca, o paredão da Serra do Curral logo na frente. Bonito ficou quando o sol avermelhou pros lados de Betim.

— A reta da estrada tem que aparecer — eu disse pro vendedor de laranja ao receber a Kodak Caixote do Beto.

Todo mundo fazendo pose, me lembrei duma foto que tinha saído no Cruzeiro, o James Dean num dia chuvoso, encolhido de frio, as mãos enfiadas no bolso do sobretudo, a gola até o queixo, franzindo a sobrancelha como costumava fazer. Apesar do calorão danado, eu levantei a gola da camisa, botei um cigarro na boca, comprimi os olhos como ele e esperei o clique da máquina.

Em casa de noite minha irmã veio: “Andar o dia inteiro, subir e descer morro pra ver uma estrada?”

Eu tinha estado em Hollywood. Ela não entendia. Ela nunca ia entender.

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Postado por Anchieta Rocha
9/1/2020 às 22h29

 
Hemingway

Numa noite depois de ler a última página de Paris é uma Festa, fiquei pensando no Ernest Hemingway. Durante a Segunda Guerra Mundial, aprontando mais uma, possivelmente pilotando seu barco Pilar, o escritor e amigos saíram à caça de um submarino alemão que navegava no Caribe. Fiquei sabendo de muita coisa da vida dele. Ava Gardner, tesão de mulher, foi passar uma temporada em sua casa em Havana. Numa noite quente e azul, nua, mergulhou em sua piscina. Quando foi embora, esqueceu ou propositadamente deixou uma calcinha no quarto de hóspedes. Ele recolheu a peça que abrigara a coisa mais, mais — apertando-a contra o peito, não encontrando palavras —,envolveu-a com o revólver e a partir daquela noite nunca deixou de dormir com ela debaixo do travesseiro. Bagunceiro, brigão, mulherengo, gostava de rinha de galo, de boxe, soltava foguete, arrumava confusão com os vizinhos e tomava umas com Fidel. Li alguns livros dele. Gostava mais de sua vida. Tinha mais arte.

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Postado por Anchieta Rocha
24/12/2019 às 13h11

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