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Sexta-feira, 31/5/2013
Mamãe cata-piolho
Marta Barcellos

Eu almoçava com uma amiga que não via há meses quando a conversa chegou ao inevitável e delicioso assunto "filhos" ― os nossos têm idade próxima. Não lembro exatamente qual era a história, mas o fato é que ela precisou confessar: seu filho, de 15 anos, não sabia andar de bicicleta. Ela abaixou a cabeça, constrangida. Largou o garfo. Tentei minimizar seu desconforto, animá-la um pouco, mas nós duas sabíamos se tratar de um daqueles estrondosos atestados de fracasso da maternidade/paternidade.

Comigo foi por pouco. Jamais vou esquecer da tensão disfarçada, dos planos detalhados, tudo para tentar tirar as rodinhas de apoio da bicicleta na idade certa. Idade certa? Pois é, sua filha deve aprender a nadar, pular corda e jogar vôlei (ou queimado) em uma idade bem determinada, sob pena de sofrer graves problemas de autoestima para o resto da vida. E os culpados serão os pais, que inclusive poderão ser acusados de negligência pelos próprios filhos quando eles forem adultos.

Foram algumas tentativas frustradas: primeiro em torno da Lagoa ― cheia demais. Depois na pista fechada da praia aos domingos: ela ficava nervosa, brigava conosco, estávamos fazendo tudo errado, empurrando por tempo demais, ou de menos, ela queria as rodinhas de volta! Como eu já tinha observado no caso de pular corda, a presença de pai e mãe às vezes atrapalha. Se ela morasse numa cidade de interior, aprenderia na rua, com as outras crianças. Como de certa forma foi comigo (passando férias em Paquetá) ou com o pai dela, no interior do Rio Grande do Sul. Não sabíamos como lidar com a situação na zona sul do Rio de Janeiro.

O playgroud do prédio onde moramos é pequeno, mas talvez fosse nesse espaço, emblemático do lazer das crianças urbanas, que ela devesse aprender, sem a pressão de um programa de domingo com os pais. Obtive pequenos sucessos, mas o equilíbrio momentâneo logo esbarrava no complicador de ter que fazer a curva para não dar de cara na parede. O play era bem pequeno. Até que, naqueles dias, tivemos a visita da filha da empregada, três anos mais velha e com algumas orgulhosas cicatrizes no joelho conferidas pela precocidade com que andou de bicicleta. Em seu aniversário, eu havia lhe dado um presente que a frustrara ― soube depois, pela minha filha, que ela esperava um CD do High School Musical.

― Você quer ganhar um CD do High School Musical? ― perguntei. E fiz a proposta, como uma mãe desesperada, capaz de tudo para não ganhar um daqueles definitivos atestados de incompetência.

― Só isso? ― ela estranhou.

― Só. Mas, além de andar, ela tem que saber fazer curva.

― Fechado ― e pegou minha filha pela mão, rumo ao playground.

No dia seguinte, devo ter parecido a maior fã do High School Musical na loja de discos (elas ainda existiam), tamanha era a minha satisfação. Contei a história do suborno para minha amiga no almoço, e ela se sentiu um pouco melhor. Nada como a cumplicidade dos imperfeitos. Afinal, tínhamos um dia das mães pela frente, e precisávamos nos preparar para o papel de genitora impecável que nos cabe nessas horas.

O meu dia das mães começou ótimo, até porque, com minha filha mais crescida, agora posso ler o jornal com calma aos domingos. E teria terminado bem, não fosse eu resolver dar uma olhada, à noitinha, no Facebook. Entre as mil e uma homenagens e gracinhas relativas à data, uma amiga comentava, em tom indignado, uma matéria do jornal sobre a epidemia de piolhos que se repete todo ano no Rio. A reportagem incluía dicas de uma catadora profissional de piolhos, que cobra R$ 70 por hora, e tanto ela como os comentadores do post achavam um absurdo uma mãe contratar alguém assim. Ora, catar piolho é incumbência de mãe, no máximo da avó, e essas mães dondocas do Rio não têm mais o que terceirizar, depois que passaram a contratar até babás folguistas, vestidas de branco e empurrando carrinhos nos fins de semana.

Engoli em seco. Olhei para os lados. Eu tinha lido a matéria pela manhã, de uma página, com o máximo de atenção, apesar de já saber praticamente tudo sobre a reprodução dos bichinhos (já os chamo carinhosamente) e todos os remédios e receitas caseiras que nunca funcionam. Só tinha lamentado não haver, no jornal, o telefone da catadora. Diante da condenação explícita piscando na tela do computador (incompetente! desnaturada! terceirizadora de criancinhas!), tentei me consolar, como havia feito com minha amiga da bicicleta. Pelo menos eu nunca tive babá no fim de semana, pensei. Mas não havia jeito: meu dia das mães terminara com a tal vergonha de não ser assim tão perfeita quanto nos anúncios da TV.

Como eu precisava confessar em algum lugar, aqui está: nunca consegui enxergar os tais bichinhos, muito menos as lêndeas, que também precisam ser "removidas" do couro cabeludo para o tratamento dar certo. Nas vezes em que minha santa empregada (juro que ela não usa uniforme) precisou catar, condescendente com minha inaptidão, fiquei ao lado e constatei: tratava-se de mais uma daquelas habilidades intuitivas que surgem no pós-parto mas que a natureza, por algum descuido, esqueceu de me contemplar.

O curioso foi que, depois do baque, voltei ao post indignado com a cata-piolhos do jornal, e observei melhor os comentários. Ninguém falava da própria experiência de catadora, ou se orgulhava dela, mas sim de como tiveram seus piolhos catados por mães e avós sem frescura. Hummm, sei não. Acho que a catadora profissional deve cobrar tão caro por causa da cláusula de sigilo embutida no contrato.

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 31/5/2013

 

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