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Terça-feira, 9/7/2013
Notas Obsoletas sobre os Protestos
Duanne Ribeiro

Na noite de 13 de junho, tive a impressão clara do que é viver sob uma ditadura, a exatidão de um símbolo: a Avenida Paulista varrida pela fileira compacta da Tropa de Choque, seus coturnos marcando de uma ponta a outra da via, veículos negros logo atrás em escolta. Do outro lado das telas, os coadjuvantes também éramos acuados, porém de um modo mais íntimo; como resistir? Esqueça os motivos atuais de protesto. Imagine a causa mais justa. A marcha a que assistimos ameaça inteira e idêntica qualquer uma delas, sem frestras entre os escudos, sem respiros na névoa de gás lacrimogêneo, gás de pimenta para temperar a ordem - tiro de borracha pra apagar cidadania. Na tarde de 28 de junho, fui informado a respeito de um avanço da técnica. À disposição das nossas forças de segurança está o mesmo sistema usado para dispersar o Occupy Wall Street, apelidado de "Inferno": canhão sônico que desorienta, causa tontura, náuseas e dores no peito, pode levar à desmaios e vômitos. Enquanto eu lia a matéria, uma citação tentava subir à consciência, algo a ver com botas, rosto, humanidade. O Google me devolveu este clichê de Orwell à memória: "Se você quer uma fotografia do futuro, imagine uma bota pisando num rosto humano - para sempre". É tão batido lembrar de 1984 nesses casos. Mas, não, o escritor inglês não falava do nosso tempo.

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Seria fácil encerrar, em campo, as polêmicas ocasionais do futebol. Seja um gol em que a bola entrou-não-entrou, seja um impedimento duvidoso por centímetro demais ou de menos, bastaria um juiz fora de campo que assistisse aos replays, e momentos depois dos lances teríamos todas as respostas exatas. O curioso é que façamos neste caso a escolha consciente pela imprecisão. Aceitamos que a justiça não se aplique sempre, ou que o injusto seja parte do jogo. Que a regra seja clara; contudo, às vezes, as zonas obscuras ao seu redor são o determinante. Talvez um efeito colateral disso sejam esses instantes em que o árbitro se torna menos autoridade e mais autoritário: por exemplo, quando pune as reclamações dos jogadores. Vermelho é difícil de dar, mas um amarelo pelo menos, o cartão indiferenciando empurrão, carrinho e jogada perigosa de uma reles insistência. O que falo é o que vale: não reclame. O curioso é que aí também o poder seja menos poder; em cada jogo, os jogadores sempre testarão os critérios do juiz, até onde ele vai, como reage - toda partida estabelece essa negociação contínua e subterrânea. Mais: mesmo sob risco de punição, alguém sempre vai fingir uma queda e pedir pênalti, dramatizar a dor após uma falta e sugerir cartão; forçar a regra pra ver se ela cede, no futebol, é uma constante.

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A imprensa difundiu, durante a cobertura dos protestos, duas binariedades inconsistentes. A primeira é a dicotomia - expressa como se se noticiasse um décimo-primeiro mandamento - entre quem "exercia seu direito de protestar" e quem "só queria chegar em casa". Soa tal como se os do lado de cá estivessem agindo no campo da política - e, os demais, não. Mas isso não é plausível. A indiferença é também um ato político, quiçá um dos mais poderosos. Dar prioridade à vida particular é simultaneamente delinear as fronteiras da vida pública. A zombaria, a depreciação de uma manifestação são cartadas no campo da opinião, fazedoras de consenso. O isso não é problema meu aponta tão imediatamente ao que é problema seu; e à sua hierarquia de problemas, e aos seus critérios de listagem hierárquica. É como disse Sartre (na verdade, ele não disse isso): Você está condenado a ser político.

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Respire fundo e diga com mais verdade: Eu não me importo com isso.

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Essa ideia de passe livre, no começo ela me parecia simplesmente absurda. Estaria contente com essa opinião instantânea, todavia os quatro protestos antes daquele que abre este artigo ganharam em volume e evidência - e me arrastaram de volta para dentro das quatro linhas. O meu argumento inicial era o seguinte: essa gratuidade, ela é uma ilusão. Os custos seriam pagos ainda, inadvertidamente, através de impostos. Seis por meia dúzia. Como fui forçado, passei a avaliar os argumentos, que me trouxeram pelo menos uma grande novidade: a ideia de que transporte possa ser um direito social, como habitação, saúde, cultura, educação - e que, sendo assim, seu preço seria melhor pago se distribuído por toda sociedade; ademais sendo seus benefícios auferidos por toda sociedade. Outra, de que tinha ouvido falar pouco mais: a ideia de acesso à cidade, que atinge, por exemplo, todas as garantias constitucionais citadas (e também as não-citadas). Avançando na opinião que não era a minha, por respeito, ou algo parecido com isso, eu descobria sucessivamente a possibilidade de mudar o regime carrocêntrico em que vivemos, o potencial desenvolvimento econômico, a estrutura mafiosa (é o que dizem) que controla e lucra com o atual estado de coisas. O movimento inaugurou um universo de pensamento em mim, o que me ocorreu outras vezes (como essa e essa). Eu até fiz um Storify compilando os conteúdos que encontrei sobre o assunto.

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O Movimento Dos Que Só Querem Chegar em Casa (MDQSQCEC) nos apresentou nessas últimas semanas ao seu gênero de "vândalo": o motorista-assassino (ou quase). A apatia da carreata, que começou pacífica, foi prejudicada por uma minoria.

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Uma palavra de ordem é um elemento de meia-vida curta, é um meme, é uma casca oca, é uma bomba de efeito ideológico. O "não me representa" se tornou viral, mesmo meramente ingênuo: afinal, é claro que nem todos os políticos te representam, é exatamente nisso que o sistema se baseia. Sendo viral, não obstante seu estofo conceitual deficiente, ele gera poder. O "não são só os R$0,20" serviu igualmente a uma miríade de lados contrários, de tal modo que os mais próximos das manifestações iniciais tiveram de reformulá-lo, sistematicamente, em "é, sim, pelos R$0,20". Para além do Facebook, o "vem! vem! vem pra rua, vem, contra o aumento!" teve variadas versões, como "vem pra rua, vem, sem preconceito!", no protesto contra o projeto de cura gay encampado por Marcos Feliciano. (Aproveito para lançar aqui o projeto de cura crente, para quem quer deixar de ser evangélico. A ciência não consegue provar com certeza que as religiões não são só distúrbios psicológicos. Brincadeira.) Nesta final da Copa das Confederações, nós vimos, em escala nacional, o coro "o povo acordou!" ser convertido em "o campeão voltou!", a mesma melodia ressoante nos metrôs entupidos de São Paulo enquanto eu me dirigia ao Largo da Batata na segunda-feira após o dia 13 - só que alguém trocou o cenário e os personagens e o palco enquanto cantávamos.

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A segunda binariedade inconsistente difundida pela imprensa é a oposição entre "vândalos" e "manifestantes". O que parece existir de fato é uma gradação de um ponto a outro; ou, se quisermos ser ainda mais precisos, há nas pessoas certos potenciais, certos sentimentos, que são postos em jogo - ou não. Nesse sentido, Pedro Munhoz escreve: "As coisas, é sempre necessário explicar, são mais fluídas quando estamos falando de uma multidão heterogênea que resolveu se formar para ganhar as ruas. O nós e eles do cotidiano, reproduzido, de certa maneira, no discurso midiático, não serve para descrever a dinâmica de uma manifestação que reúne dezenas de milhares de pessoas". (Àquele que me contrapusesse uma separação incondicional desses Tipos, perguntaria: Entretanto, não há nada que poderia por a pedra na tua mão e dispor a lançá-la? Nada capaz de te despertar, como cunha Yan Boechat, o poder da raiva?) Eu quis compreender mais a fundo as relações entre política e agressividade; me caiu no caminho por sorte este artigo de Hannah Arendt: Reflexions on Violence. A filósofa discerne os sentidos de poder e violência, grosso modo, o primeiro como o consenso das vontades que funda e mantém o Estado, a segunda os atos fora dessa cidadania, que ataca o que está fora dela (criminosos) ou as balizas que a sustentam (símbolos de controle?). Esses dois conceitos são opostos; o poder não é gerado pela violência, mas a ausência de poder, isto é, de cidadania, pode gerar violência, como nas sociedades burocráticas, como a nossa, em que ocorre, nos termos de Arendt, a "ditadura de ninguém".

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Na noite de 17 de junho, o poder real se disse acordado pelas arbitrariedades policiais de quatro dias antes. Não creio que eu estava também antes em sono profundo, mas andei com a multidão, sem ver nunca, à frente ou atrás, onde terminava a marcha; andei pelas avenidas Faria Lima, Juscelino Kubitschek, Brigadeiro Luís Antônio e Paulista - esta última, agora sim, retomada (como sugeriu a Folha à Tropa de Choque), ocupada de um extremo a outro. Andei: em desafio, por um princípio de liberdade. (Os analistas atribuíram, a mim e a cada um dos outros, uma série abundante de motivos.) Sinto, claro, a empolgação de estarmos todos juntos, de eu saber que "isso é um momento histórico", de cumprimentar o motorista de ônibus sorridentíssimo que filma a passagem da massa, de ver o gesto honroso e falso do sujeito que literalmente tira o chapéu à gente passante. O poder acordou remelento e se notou alienado pelas arbitrariedades da burocracia. Empregou uma palavra de ordem à guisa de contra-ataque: "Sou brasileiro!". Agregou a ela, sincero/superficial, os valores de "orgulho" e "amor".

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Fui ultrapassado, como é natural, pelas diversas manifestações políticas que aconteceram e estão acontecendo: as opiniões têm obsolecido rápido nesses dias. Porém não me inflei das pautas todas que pude imaginar. Do resíduo dos protestos, me interesso com prioridade pela desmilitarização das polícias. Pergunte-me por quê.

Duanne Ribeiro
São Paulo, 9/7/2013

 

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