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Segunda-feira, 28/10/2013
Dooois ou um?
Adriane Pasa

Quem inventou essa história de livre-arbítrio não tinha mais nada interessante para fazer. Esses dias uma colega de trabalho disse algo perfeito: "Imagina se a gente pudesse dar um pause na nossa vida, viver outra vida e depois voltar, se quisesse?". Achei o máximo. Mas óbvio que não é assim. A vida se organizou de uma forma que a gente só pode tomar um caminho. Tem um milhão deles, mas a gente só pode pegar um de cada vez. Ou nenhum. Mas será que o "estás livre para escolher" reflete mesmo a liberdade? Para Santo Agostinho, são conceitos diferentes. O livre-arbítrio é a possibilidade de escolher entre o bem e o mal; enquanto a liberdade é o bom uso do livre-arbítrio. O homem então não é livre só por ter o livre-arbítrio, depende sempre de como ele o usa.

O livre-arbítrio filosófico defende que todos os acontecimentos são causados por fatos anteriores. Para a filosofia, o indivíduo faz exatamente aquilo que tinha de fazer, seus atos são inerentes a sua vontade e ocorrem com a força de outras causas, sejam internas ou externas. Os espíritas acreditam que tudo depende da evolução em que o espírito se encontra e que o livre-arbítrio faz parte de um aprendizado. E os católicos, bem, eles dizem que a Bíblia apoia decisões que não façam mal a ninguém, que Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança, o que nos dá o poder de escolher nosso destino. Mas também que algumas pessoas, especiais, nascem predestinadas. A Bíblia deixa claro que não só temos a capacidade de escolher, mas também temos a responsabilidade de escolher sabiamente. "Sabiamente". Quanta responsa.

A coisa de "deixar nas mãos de Deus", que é adotada por muitas religiões e muita gente por aí, também é uma escolha, mas eu acho que quando as pessoas fazem isso elas já têm uma ideia do que vai rolar. Ou pelo menos que o tombo não será tão grande.

Se pensarmos friamente, é impossível tomar qualquer decisão e não afetar os outros, nem que seja indiretamente. Então, toda decisão tem mesmo uma carga imensa de responsabilidade e, às vezes, de culpa.

Se até na hora de escolher entre uma comida e outra na fila do buffet por quilo a gente dá uma titubeada, imagina no momento em que precisamos fazer escolhas na profissão, no amor, na educação de um filho, na própria saúde?

Decisões são ótimas quando temos duas opções antagônicas. Por exemplo, quando se tem um emprego que é uma merda e, de repente, aparece uma proposta irrecusável para sair dali. Não há grandes conflitos neste tipo de escolha. Nunca se ouviu uma história de alguém que ficou pensando "ah, meu chefe é tão idiota, eu ganho mal pacas, mas estou indeciso se quero ir para um lugar melhor...". Eu nunca vi. E tem gente que ainda se vangloria em dizer "fiz ~sabiamente~ as escolhas da minha vida". Quero ver escolher entre o ótimo e o ótimo! Ou recusar o ótimo porque não se quer tudo o que vem com ele, por mais que pareça tentador. Isso é uma sabedoria também. Dizer não ao que todo mundo julga como ~sensacional~ é para poucos. Porque além de recusar uma coisa aparentemente boa, vai ter que aguentar toda a pressão das pessoas que insistirão em dizer "mas como você recusou algo tão bom? Você é louco?". Dá preguiça.

A tragédia realmente começa quando a gente tem que decidir entre duas coisas boas. E geralmente é nessa hora que chega alguém com aquela frase mais batida que claras em neve "ah, põe tudo na balança". Como se existissem pesos e medidas exatas para cada coisa da vida. E aí a gente pensa mesmo "por que a vida não tem um pause?".

Poder experimentar devia ser uma lei. A maioria das pessoas deve pensar assim, mas não assume. É feio e considerado vulgar querer "testar" as coisas. A "cultura do sofrimento" também teve seu bom marketing durante muitos anos, o que ajudou a construir este tipo de pensamento. Ter prazer sempre e buscar só pelas coisas boas, sem passar por perrengues, é coisa errada. Não pode. Mas tenho certeza que Deus fez a gente para viver numa nice. É do ser humano, desde pequeno, querer tudo, achar que pode. Para as crianças - que ainda não sabem o que as esperam - a gente pode ter tudo. A bicicleta rosa e a boneca. Na prática, a gente vai aprendendo que não é bem assim e as escolhas vão ficando cada vez mais difíceis na medida em que a vida se torna mais interessante. Ou mais perigosa.

Desculpa, mas este texto a partir de agora contém spoiler. De leve. Nada que as sinopses e blogs não falem, mas tem gente que não gosta. Então, quem ainda não viu a série Breaking Bad ou Homeland, sugiro que pare por aqui.

Afinal, há o livre-arbítrio, não?

Eu não era muito ligada em séries até ser "fisgada" por duas delas. E ambas contém de maneira muito inteligente e forte este tema das escolhas.

Em Breaking Bad, Walter White (Bryan Cranston),um pai de família e professor de química de uma escola pública, é diagnosticado com um câncer grave de pulmão e desesperado em deixar sua família bem financeiramente para enfrentar um futuro sem ele, acaba se metendo no mundo das drogas e do crime, produzindo metanfetamina num laboratório improvisado, junto com um ex-aluno. O grande lance dessa trama é que a coisa vai se transformando, como o próprio nome sugere. O protagonista é absorvido pelos problemas de sua vida dupla e cada decisão tomada pode desencadear um verdadeiro inferno. Considero muito inteligente a forma de mostrar os motivos pelos quais o personagem continua na "vida lôka", que também têm a ver com uma frustração profissional do passado. É aquela velha fórmula de todo bom roteiro e que acontece também na vida real: como um personagem decide resolver seus problemas e as decisões que lhe trazem mais problemas.

Uma pessoa boa e correta pode se desviar em algum momento, e pior, pode gostar disso. Difícil ser o mesmo quando se escolhe um caminho perigoso e fora do padrão. A metamorfose é inevitável. É quase impossível passar por uma experiência tão forte e continuar a mesma pessoa, com os mesmos desejos.

Em Homeland, uma série de TV norte-americana baseada na série israelense Hatufim, minha visão romântica põe o foco na história de amor. Um amor pra lá de proibido, ou melhor, fora da lei. Carrie Mathison (Claire Danes, maravilhosa no papel) é uma agente da CIA que investiga um ex-fuzileiro americano, desaparecido por oito anos como um prisioneiro de guerra da Al-Qaeda e que, de repente, é resgatado e vira herói nacional. Ela tem certeza que ele é um terrorista. Ela começa a investigá-lo. Apaixona-se por ele. Que, além de tudo, tem uma família. E aí, como faz? Homeland é uma coisa dentro da outra, é duvidar do outro e de si mesmo.

A vida se resume a um "quero ser pai de família, mas também quero fazer a melhor metanfetamina do mundo" e a um "quero ser uma agente da CIA bem-sucedida e também amar um terrorista". Oh, God!

Decisões são mais cruéis ainda quando envolvem questões morais, quando desafiam nossas crenças mais profundas. Porque às vezes, a situação mostra que a crença não era tão profunda. Não quando comparada a algo que a gente quer muito. E quando é assim, as tentações são maiores e a gente fica meio "afogado", perdido.

As novas séries têm trazido muitos protagonistas do tipo anti-herói nos papéis de pessoas boas e corretas em conflito pessoal e com vidas duplas. Todas têm grande sucesso de público. Até mesmo seres que na vida real seriam abomináveis, como o psicopata vivido pelo ator Michael C.Hall em Dexter, outra série famosa e bem-sucedida, conquistam pessoas do mundo inteiro. Por mais que todos saibam que é horrível fabricar uma droga ou explodir um colete-bomba e matar pessoas, é incrível como estes personagens cativam e ficamos ao lado deles, queremos que tudo dê certo para eles. Porque eles podem e nós, não. Ou seja, vale tudo o que for ruim mas desde que os libertem. Porque todos estão presos em seus conflitos e queremos vê-los livres. Sabemos que por mais que seja errado o que eles fazem, fazem com paixão. Ou por uma paixão.

Consultei um amigo muito erudito para contribuir comigo nesta parte do texto, pois queria citar algo da literatura que eu não conseguiria jamais explicar com minhas palavras. Expliquei meu tema e ele disse: "Tem uma frase do Joyce - na edição do Ulisses pela Penguin Companhia - em que ele fala o seguinte: a força motriz das principais ações humanas é a paixão. Ele queria provar que os grandes feitos, narrados por Homero, são equivalentes às ações 'comezinhas' do 'homem comum', por isso escreveu Ulisses, que é um épico também, mas no qual os heróis são 'gente como a gente'. Em 1905, Joyce escreveu a seu irmão Stanislaus: 'Você não acha a busca pelo heroísmo uma tremenda vulgaridade?' Tenho certeza de que toda a estrutura do heroísmo é, e sempre foi uma mentira e que não há substituto para a paixão individual como força motriz de tudo".

É, a paixão move o mundo. E nem sempre ela é coisa boa. Mas que faz a gente se mexer, faz.

E como seria se a vida fosse diferente e pudéssemos ter a ferramenta de pause? Sabe Deus, mas uma coisa é certa: os palpites na vida alheia diminuiriam muito. E seria como um universo paralelo. Enquanto experimentamos a nova possibilidade e avaliamos a experiência, a "outra vida" está lá, guardadinha. Muitos vão pensar "ah, mas isso é pensamento de covarde". Ou coisa de gente mimada. Mas quem disse que se atirar em algo novo é sinal de coragem? Ou escolher o velho é prudência?

Não tenho certeza de que a gente escolhe as coisas. Às vezes acho que somos tão insignificantes perto dos fatos, que muitas vezes parecem nos engolir e transformar as coisas do jeito que eles querem. Há certa ilusão de que podemos interferir em tudo ou que é a gente mesmo que escolhe todos os nossos caminhos. A vida tem uma dinâmica própria e às vezes não respeita nossas vontades.

Esses dias li um tweet que dizia "enfrente seus problemas como se eles não fossem seus. Afinal, é bem mais fácil dar palpite na vida dos outros." Genial. Isso nos dá outra perspectiva. Se decidíssemos nossa vida e as dúvidas que ela traz abstraindo um pouco o nosso ego, frustrações e tudo mais que vem nesse pacote, teríamos uma visão bem diferente e mais ampla. O umbigo só atrapalha.

No fim das contas, está tudo dominado na frase de Shakespeare: "Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar".

Resolvi escolher uma frase não tão famosa dele. Porque "ser ou não ser...?", vamos combinar que está bem longe do nosso alcance.

Para aliviar um pouco, deixo vocês com o melhor remédio para momentos de indecisão, com Zeca Pagodinho. ;-)

Adriane Pasa
Curitiba, 28/10/2013

 

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