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Terça-feira, 17/6/2014
As ruas não estão pintadas. E daí?
Duanne Ribeiro

Os escrevinhadores estão todos de acordo: essa é uma Copa com menos festa nas ruas por conta de um mal-estar generalizado, "por frustrações com governantes ou por temer protestos violentos", segundo o Estadão. A ideia não é absurda, mas não sei como estamos tão convictos dela - o desencanto em relação à seleção e ao Torneio Mundial, do meu ponto de vista, podem ser explicados simplesmente pelo fato de que os afetos do futebol se deslocaram: falta aos agregados nacionais a capacidade de nos unir, uma capacidade esbanjada pelos times.

Luiz Zanin diz que "nossa vida pode ser contada pelas Copas que vimos", e talvez isso possa ser verdade, principalmente para a geração dele. De minha parte, o que digo é que minha história futebolística (pouco dedicada, mas ainda assim...) pode muito mais ser contada pelas Libertadores a que assisti. Ou pela conquista de um Brasileiro, até mesmo de um Paulista. Não há partida do Brasil que valha um jogo decisivo do Corinthians (e o torcedor de outro clube não dirá o mesmo?). O gosto pela seleção é meio automático, regulamentar. O do time é genuíno, cotidiano.

Com 12 anos, em 1999, o Corinthians foi eliminado da Libertadores nas quartas-de-final pelo Palmeiras. Com 13, em 2000, novamente o mesmo time alijou o meu do troféu, dessa vez na semi. Chorei em ambas, ouvindo os fogos comemorativos e jocosos do vencedor. Em 2012, estava elétrico, paralisado frente à TV, contando os segundos, mordendo o lábio. Gritando feito um filho da puta quando acabou e éramos vitoriosos - isso nas duas finais, a da Libertadores, contra o Boca, e a do Mundial, contra o Chelsea. Minha identidade é investida de preto e branco.

Por outro lado, o Maracanaço pra mim é uma foto de almanaque. Lembro de ver as pessoas em pé, emudecidas no estádio, e a descrição dramática do jornalista. A Paolo Rossi só fui apresentado neste domingo último. Em 1994, recordo a família reunida para ver a cobrança dos pênaltis, e ter sido levado para a Paulista depois, ou algo assim, para comemorar. Eu não cheguei nem perto da euforia do Galvão. Perdemos 1998, achei chato - só. Ganhamos 2002, achei legal - só. Meus times imaginários continham jogadores da seleção e eu jogava com ela no International Super Star Soccer Deluxe, mas era apenas isso mesmo.

Eu acredito que essa conexão maior com os clubes é o motivo principal das ruas menos pintadas, do menor número de bandeirinhas penduradas, do "hoje somos todos iguais" com um mas nem tão iguais assim mais pronunciado. Também creio que é um processo irreversível, e suspeito que tem estado em movimento faz um bom tempo. Minha avó conta há duas décadas que em sua época "todo mundo se juntava para pintar a rua, e agora não tem nada". Em uma afirmação política mais arriscada, poderíamos mesmo dizer que "nações" não unem mais com tanta força - o que nos une são as identidades particulares, subjetividades de menor escala.

Narrativas Políticas
Mesmo que tenhamos explicações mais diretas e simples para a tímida (segundo o que se diz) festa da Copa, circulam versões que se apropriam desse "fato" para defender, através dele, ideias políticas. As matérias do Estadão linkadas no texto possuem esse viés: afirmam que os protestos atentam contra uma tradição, o que seria parte de uma "naturalidade" do brasileiro. Essa tese implícita é só o reverso da ideia de que uma "minoria", um grupo distinto do "povo", é que protesta.

Na manhã de 10 de junho, o jornalista José Paulo de Andrade fez uma variação da mesma ideia na rádio Bandeirantes; nos convocou a abandonar o "mau humor", o estado de desânimo gerado por alguns "radicais" desde junho de 2013. Com isso teríamos uma polarização bem definida, entre constrangidos e raivosos, e toda a efusão que constatarmos será uma derrota desses últimos. A festa da Copa, nesse sentido, seria a prova de que o "povo" não se identifica com as reivindicações. Mas eu posso ter forçado um pouco essa interpretação.

Doutro lado do espectro político, Vladimir Safatle afirmou na Folha: "no chamado 'país do futebol' pela primeira vez uma Copa do Mundo não trará dividendos (...) mostrará uma população consciente da tentativa de espoliar seus sonhos". Vejam que a equação está invertida: a falta de festa da Copa prova, agora, o "desencanto de um povo". O texto de Safatle tem, não obstante, o valor de destacar a intenção governamental ao trazer a Copa, a narrativa que almejavam construir e que teve seu caminho obstruído pelas várias tendências em conflito no país.

Essas grandes análises me parecem mais estratégias retóricas do que descrição de fenômenos. Há festa e há ausência de festa, há expectativa e indiferença, existe tanto o constrangimento quanto a raiva. Também: não há nexo obrigatório entre torcida futebolística e convicção politica. O que temos é muito mais um mosaico. Aquela sugestão que avançamos quanto aos times parece aqui menos arriscada: várias identidades, várias subjetividades formam a "nação", a "torcida", o "povo", e esse tipo de palavra megalomaníaca não é capaz de abrangê-las.

Ainda mais, desencanto e festa podem ser, digamos, cooptados. Em 9 de junho, o PSDB entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para tentar "garantir a realização de protestos dentro dos estádios", não exatamente pelo grande amor a manifestações públicas, mas para roer a imagem do governo presidencial do PT. E o Google, que montou uma página para as ruas pintadas pelo Brasil, não contou nela que ele próprio pagou a tinta, rolos e bisnagas de pelo menos uma. Assim, os complicantes para uma explicação simplista do humor nacional aumentam.

#vaiterCopaecríticaàCopa
O que não podemos perder de vista é o valor próprio de cada reivindicação feita durante o pré-Copa. Os gastos públicos, a violência policial, a remoção de pessoas das suas casas - esses fatos não podem ser esquecidos em uma trégua eufórica. O #vaiterCopasim é leviano e apolítico na medida em que se esquece dos outros temas em jogo. A seleção pode ainda ser um fascínio nosso, contudo não precisa implicar em uma cegueira coletiva. Torcedores e/ou cidadãos, temos de saber o que nos toca, e o que toca a todos com quem compartilhamos a vida.

Duanne Ribeiro
São Paulo, 17/6/2014

 

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