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Quarta-feira, 5/8/2015
O poeta, a pedra e o caminho
Wellington Machado


Imagem: Jak Lins



Alguém foi tomado de um espanto: tinha uma pedra! Ela sempre foi uma pedra qualquer, em meio a outras, e foi percebida como obstáculo naquele momento? Ou ela sempre esteve ali, isolada, imperceptível até então?

De que tamanho era a pedra? Se era grande, do tamanho de uma bola de futebol, por exemplo, seria impossível que ela não pudesse ser notada anteriormente. Se alguém a visse, certamente a removeria dali, sob pena de um outro se machucar.

E se até aquele exato momento ninguém tivesse passado por ali e percebido que aquela grande pedra incomodava? Teria sido este o primeiro encontro entre o homem e a pedra, desde o surgimento da Terra e da humanidade? E se, ao contrário, alguém tivesse, sim, passado por ali, mas não desse a mínima para aquela pedra, nem para a possibilidade de alguém tropeçar nela e se machucar no futuro? Apesar do encontro entre o homem e pedra, portanto, ela continuava ali, sem ser notada.

Como ou por que a pedra chegou ali, no meio do caminho? Seria ela a resultante de um vulcão pré-histórico, que fez pedras de variados tamanhos se deslocarem até atingirem o estado estático? Ou: alguém teria posto aquela pedra ali, num ato intencional?

Consideremos, então, que a tal pedra não fosse tão grande como uma bola de futebol, mas do tamanho de uma batata. Não seria em princípio, convenhamos, um obstáculo em si, a ponto de exigir grandes esforços do poeta para transpô-la. O mais provável era ele ter um primeiro impulso de lançá-la longe, o mais longe possível mirando o horizonte, como se quisesse imitar um atleta olímpico lançando um dardo - ele tomaria o cuidado de imitar os movimentos do atleta para conseguir o maior êxito possível.

Mas, sorte que as retinas fatigadas não estavam tão esgotadas assim a ponto de o poeta ignorar ou não enxergar a pedra. Se assim fosse, ou o poeta transporia distraidamente a pedra - como alguém que por sorte não pisa numa casca de banana - ou iria pisar nela, causando-lhe uma dor incômoda (ele iria xingar mentalmente a pedra, soletrando palavrões horrendos). Ou: na hipótese de a pedra ser arredondada (não sabemos que formato ela tinha), poderia o poeta derrapar e cair sentado. Em ambos os casos - pisando ou transpondo a pedra - não haveria poema.

De outra forma, se a pedra fosse do tamanho de um grão de feijão, já seria um grande mérito as retinas fatigadas terem-na percebido ali. Ora, se as retinas eram fatigadas, supõe-se que o transeunte já tinha uma certa idade. E o fato dele ter se atido a uma pedrinha num caminho (hipoteticamente longo), poderíamos considerar que este fora um ato intencional: o poeta praticamente procurava uma pedra (ou outra coisa qualquer) enquanto percorria o caminho. Mas a impressão que se tem é a de que a pedra era mesmo um pouco maior, do tamanho de uma batata média.

Mas quem estava diante da pedra: o poeta ou um personagem? Se foi o primeiro, muito provavelmente ele tivesse mesmo se deparado com a tal pedra motivadora do poema, dando a ela uma importância inédita. Quem haveria até então relevado um objeto comumente ignorado, quase vil? A pedra foi, com o poeta, alçada a mesma importância do amor, dos aromas, das flores, borboletas e estrelas, exaltados por outros notáveis. Se foi o poeta quem se deparou com a pedra, o cerne do poema é o acaso que se tornou relevante. A pedra é um mote para uma condição fenomenológica, uma intencionalidade do homem [o poeta] em reconhecer a existência de um objeto [a pedra] por alguns instantes.

Agora, se considerarmos que quem se deparou com a pedra foi um personagem, a pedra é tão ficcional como o próprio. Pedra e personagem estão em pé de igualdade e são joguetes nas mãos do poeta para ilustrar possíveis questões existenciais: a pedra foi "colocada" no caminho do personagem, a fim de ilustrar um momento de espanto, de auto-questionamento do poeta (não do personagem) no sentido de "estar-em-si", consciente daquele recorte (a percepção da pedra). O espanto do "tempo perdido", da vida que se esvaiu até ali, com a percepção da sua decadência física (retinas) sem que ele tivesse se atentado devidamente aos momentos sublimes da vida, presentes na simplicidade cotidiana. Personagem e pedra são a metáfora de uma descoberta tardia.

Há indícios de que não foi o poeta quem se deparou com a pedra, mas o personagem. Partindo do pressuposto de que o poema é de 1930, ano em que o poeta tinha 28 anos - jovem, portanto -, dificilmente ele teria retinas fatigadas.

E que caminho? Se o poema é já quase centenário, podemos inferir que na sua época havia vários caminhos, digamos, rurais - tipo aqueles que desenhávamos nos cadernos sem pauta e coloríamos de amarelo ou bege a terra desgastada pelo caminhar das pessoas, e de verde, a vegetação lindeira. A palavra "caminho" remete a campo, algo primaveril. Nas cidades não há caminhos; há ruas. Quem se depara com uma pedra, inevitavelmente está a pé. O poema seria impossível ser composto por um citadino, pois quase não há pedras nas metrópoles e por ali anda-se muito de carro, ônibus, metrô ou bicicleta.

O fato de as retinas estarem fatigadas nos leva a crer que o poeta tinha visto muita vida, e percorreu o mesmo traçado durante anos, sem notar a tal pedra. Provavelmente não só as retinas estavam cansadas, mas os pés rachados. O que ele sentiu ao fitar a pedra naquela altura da vida? Culpa - por ter perdido outras coisas na vida pelo fato de não estar permanentemente atento? Compaixão - por considerar aquela pedra um ser da mesma importância de uma formiga, ainda que a pedra seja inanimada e dura?

Aparentemente o poeta/personagem deixou a pedra pra trás, sem nela tocar. A pedra virou passado, memória, pois dela ele nunca se esqueceria, como prometeu. O "obstáculo", palavra que carrega um sentido negativo intrínseco, tornou-se uma espécie de epifania, um congelamento de um instante único, fotografia de um sentimento.

Pelo visto o poeta respeitou o estado da pedra: una, dura, estática. Estaria ela lá neste exato momento?

Nota do Editor
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Wellington Machado
Belo Horizonte, 5/8/2015

 

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