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Terça-feira, 14/9/2021
Mãos de veludo: Toda terça, de Carola Saavedra
Renato Alessandro dos Santos


É daqueles romances que, quando caem nas mãos da gente, são lidos com o mais puro prazer. Leitura que flui. Toda terça, de Carola Saavedra, foi publicado pela Companhia das Letras em 2007. A escritora nasceu no Chile, em 1973, mas se mudou para o Brasil com apenas três anos de idade; deve ser a chilena mais brasileira de toda a literatura contemporânea.

Na primeira parte do romance, dois personagens, em capítulos e momentos temporais diferentes, têm sua chance de expor as dificuldades de suas vidas, com suas pequenas alegrias, conquistas e derrotas, além de observações flamejantes sobre as coisas; observações que caem muito bem em um romance contemporâneo, em que o material narrativo não segue uma fórmula, mas busca a inovação que somente aqueles romancistas-artesãos são capazes de alcançar, quando estão dispostos (a engendrar... o caos? Não. Que caos?!) não só a contar uma história, mas contar uma história do jeito mais diferente possível.

Esse tipo de coisa deve ser coisa daquelas personalidades que não se conformam em fazer parte de um padrão, de uma fórmula; de ser um tipo, de ser uma forma, de ser um repetidor burocrático das coisas, enfim. Carola, de carola, parece não ter nada. Isso é bom, não é? Sim, é. É que no romance de Saavedra dois personagens adultos vão vivenciando suas vidas incertas, repletas de pontos de interrogação espalhados pelo caminho. São incapazes de perceber o quão fascinantes são, neste romance carregado de lampejos, de passagens cheias de significado, mesmo que significados pequenos diante da dimensão telescópica que, da internet para cá, parece jorrar a vida num telão de drive-in, em vez de ser realmente vista na lâmina de microscópio onde todos os nossos micróbios estão, como diria Caetano, à toa na vida, flanando, para a alegria do técnico que tem, para si, a exposição incoerente desses fiascos que, dia a dia, vão compondo nossa biografia – uma biografia sempre disposta a parecer maior do que é, não é? Porque, no fundo, somos só isto mesmo; ou seja, esta bolota de carne e ossos, com rachaduras, com uma velinha de cera que, em cima, vai iluminando tudo, enquanto vai se extinguindo, aos poucos...

Narradora 1
Saavedra, pretendendo contar uma história com a forma contemporânea, isto é, inovadora, pouco tradicional, de se contar uma história, apresenta primeiro Laura, narradora 1, uma mulher bonita, atenta à modernidade ao redor dela e que mora num apartamento pago por seu amante, Júlio, um sujeito que banca todas as despesas dela e do qual não saberemos muita coisa, além de seu nome e, talvez, nisso, já haja aí o suficiente. Laura faz terapia com Otávio, que engendra aquele tipo de terapeuta boa-pinta, compenetrado, dono de si, sedutor até – à maneira dos terapeutas sedutores que parecem ser sedutores, mas sem querer parecer ser sedutores. Acompanhamos Laura em suas consultas às terças, quando ela vai ao compromisso semanal mais para cumprir um roteiro do que para buscar o que numa terapia se busca. A psicanálise, com as projeções e as transferências que Freud tanto cuidou, está lá (Lacan, como uma mochila às costas, também). São essas passagens, repletas das mais alegres sacadas, que trazem brisa, uma benfazeja brisa, ao romance. Vai aqui uma delas, tanto para a leitora óculos Ray-Ban de grau + franjas hodiernas quanto para o leitor barba hipster pirata, com um pouco das tardes fagueiras dos dois:

― Então, de onde você acha que vem o seu medo da humilhação, ou, melhor dizendo, essa ideia de que não ser correspondido é uma humilhação?

― Ah, Otávio, a ideia vem da minha capacidade de imaginar, ou você ainda acha que tudo o que a gente imagina tem que corresponder a alguma vivência pessoal?

― Não necessariamente a uma vivência pessoal, mas a um sentimento importante, um afeto, senão a sua mente teria escolhido imaginar outro tipo de coisa, somos a cada instante postos diante de escolhas, e cada escolha que fazemos tem seu significado.

― Sabe o que mais me incomoda em você, Otávio? Nem deixei que ele pensasse no assunto, no que tanto me incomodava, fui logo dizendo:

― A sua mania de querer usar essas teorias só pra me convencer de que, seja lá o que for que eu diga, eu sempre serei suspeita, e, seja lá o que for que você diga, você sempre terá razão.


Pronto. Eis Laura e Otávio, além das caraminholas de sempre, no dia a dia de um consultório. Coisa de se admirar é a técnica utilizada por Carola no romance, especialmente, por orações que, intercaladas, vão se sobrepondo em camadas, fazendo as palavras fluírem como anéis de cebolas. Há de se pensar também em algo que liga Laura ao final da narrativa, mas que não há por que ser tratado aqui, por ser – (:D) – uma surpresa que a autora deixa aos leitores, na segunda parte da narrativa, e que não convém uma resenha estragar.

Narrador 2
De Laura, de Otávio e de Júlio, aos bocadinhos, a narrativa vai se ocupando; é quando surge outro narrador – bem enfeixado ao programa contemporâneo da arte de narrar – e, de repente, o romance passa a se ocupar de Javier, sul-americano que vive na Europa como imigrante e que tem lá seu jeito de ser capaz de enlouquecer as moças que, dele, se aproximam. Estamos falando de Ulrike, mas também de Camilla, ambas garotas anexadas à vida de superfície lisa, com aquela disposição de espírito que faz a pessoa lutar por canudinhos de papel, por papel higiênico biodegradável, por mandamentos para uma vida feliz e insípida (se for o caso), por tudo que possa fazer uma geração parar de fumar, para, em vez disso, dedicar-se a bifes de soja ou a hortinhas de fundo de quintal repletas de tomilho e de manjericão santo.

Os detratores desse estilo de vida só se ressentem da falta de anarquia que a vida pede, e exige, mas que, de certa maneira, deixa de existir. Há os que assim preferem ser, mas Javier não é um deles; é, pelo contrário, bem atencioso às pessoas que optam por viver assim (como Ulrike), e faz bem, porque não impõe a elas seu jeito de ver as coisas, aceitando a outra pessoa, como ela é. Tem de ser assim, não é? Alteridade? Total.

Javier começa a sair com Ulrike e, com ela, divide a vida, mas nunca se coloca inteiramente nas mãos da moça, deixando nela, vagamente, a certeza de que ela está com ele, sem estar. Camilla, por sua vez, é a moça que divide um dos quartos do apartamento comunitário onde vivem as duas mulheres. Javier, numa das terças à tarde em que o lugar fica ausente de moradores, passa a ter com Camila horas da mais pura energia, naquele tipo de divisão que, somadas todas as forças, faz faíscas. São dois seres com aparentemente nada em comum, mas que compartilham de suas angústias e das fogueiras que a existência, em noites de São João, acende e ascende.

Outro excerto da coisa toda? Vai lá então.

Primeiro, Javier e Ulrike:

Levantei-me da cadeira e fui até a janela, lá fora o céu também estava azul, parecia um azul artificial, desses retocados por computador, às vezes o dia ficava assim, parecendo saído do Photoshop. Ao longe, as nuvens avermelhadas e a silhueta imprecisa de árvores e casas. Ulrike não desistia, Javier, por que você é assim?, disse, esperando uma resposta, uma explicação, qualquer explicação, qualquer coisa[...] Mas eu não digo nada, não pergunto 'assim como', nem invento nada sobre medos ou traumas. Lá fora, as nuvens cada vez mais distantes.

O que existe ali, na página 103 do romance, intercalado à paisagem de nuvens, não parece ser algo com a cara da literatura contemporânea? No caso, as nuvens – a princípio, de um céu de Photoshop, que vão se transformando em “nuvens cada vez mais distantes” – não parecem espelhar a relação de Javier e Ulrike?

Já vai longe a hora em que uma descrição em um romance era só uma forma de ilustrar a imaginação dos leitores para as sardas da personagem; por hora, essa ilustração também conta uma história, injetando ação e pequenas descobertas que, maturadas, podem gerar alegrias contendo argúcia em demasia, quando é o caso, como nessa passagem anterior, que registra um pouco da relação entre Ulrike, uma lagartixa nórdica loira em forma de ninfa, e Javier, o enigmático pé-de-chinelo imigrante.

Agora, Javier e Camilla:

[...]Camilla não disse nada, apenas aceitou e sentou ao meu lado, os dedos inquietos contornando a taça, deixando no vidro as suas marcas, a proximidade da sua respiração, você é um cara estranho, eu, estranho?, eu perguntava, surpreso de ouvir tal palavra, estranha é você, Camilla, que muda de rosto a cada instante, que muda de rumo, de idioma. Camilla fechava os olhos levemente enquanto bebia, e os cílios eram longos e negros, e caíam feito uma cortina sobre o rosto[...] e assim, cheios de oportunos silêncios, fomos repondo vinho em nossas taças e reinventando histórias que nunca havíamos contado, e as horas se passaram[...] Camilla, como você faz isso de colocar palavras na minha boca? E era como se ela fosse sussurrando no meu ouvido e eu apenas repetindo, imaginando que já as tinha ouvido, em algum disco, em algum filme, e naquela noite, sem querer, disse a Camilla coisas que não me lembro em idiomas que não me pertenciam, Camilla, diálogos, poemas, restos de boleros, Camilla, e o seu rosto parecia uma máscara, e o seu sorriso tinha algo de abandono, e as suas mãos desapareciam entre as minhas.

Vão assim as coisas em Toda terça, e há muitas delas; dentre elas, essa forma despojada de discurso, sem mais necessidade, no discurso direto, de dois pontos, travessão etc. Vai em meio à matéria narrativa, numa torrente – uma torrente que é a cara de nossos dias; esses dias que vão se acumulando, sem que a gente consiga retê-los, dar-lhes forma e sentido, desafogando-se no tempo como em uma encruzilhada com, ou sem, macumba. Ah, Carola Saavedra dá a cada narrador um estilo, e, dessa forma, os leitores sabem bem quando é Laura quem narra ou Javier, uma vez que os capítulos vão se intercalando, fabulação adentro. Ficam nessas horas as melhores e boas impressões, por conta de trazer uma grande autora na arte de narrar.

Para encerrar os trabalhos aqui, seria necessário contar sobre a segunda parte do romance, mas tal empresa significa (como explicado antes) estragar o embate entre os leitores e a narrativa, tirando deles o prazer que a autora oferece à inteligência que se depara com a semântica das coisas, das frases, das palavras, ou seja, do sentido que tudo carrega.

O que deve ser mencionado, sem estragar surpresa alguma, é que, com esse recurso, como se muda a visão que os leitores podem ter da personalidade de um personagem, quando esse mesmo personagem (Laura) deixa de ser o observador e o mensageiro de coisas novas e passa a ser o outro, aquele que é observado e, por isso, começa a ser lido sob outra perspectiva. É algo a se pensar.

Outra coisa, por fim: nessa técnica narrativa, fica embutida uma ideia que parece entrelaçar-se às transferências e às projeções psicanalíticas e que é a de que, neste romance de Saavedra, essas mesmas projeções e transferências vão ser usadas por Laura em benefício próprio, ou, até mesmo, como mais uma possibilidade de se dar um nó na imaginação dos leitores. Diz: não é essa uma das atrações que o romance, como forma literária, oferece aos leitores?

Resta ler outros romances de Carola Saavedra, essa chilena-brasileira que, em Toda terça, ajuda, humildemente, a ampliar a arte de narrar a níveis cada vez mais profundos, que carregam, neles, a vida contemporânea com todos os seus arcabouços e suas arapucas.

Nota do Editor
Leia também "Flores Azuis, de Carola Saavedra" por Julio Daio Borges e "Flores Azuis, de Carola Saavedra" por Mariana Mendes.

Renato Alessandro dos Santos
Batatais, 14/9/2021

 

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