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Terça-feira, 20/9/2022 O que lembro, tenho (Grande sertão: veredas) Renato Alessandro dos Santos Neste intervalo entre a partida e a chegada, com essa correria de um lado a outro, a travessia que faz acontecer a vida – “a gente está aqui pra isso”, diria Jô Soares – é recompensada quando a bandeirada, ao final, traz alguma coisa boa como prenda, galardão ou “dáv’diva”. Compreender melhor as coisas e as pessoas, por exemplo. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça! ― Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho... ― ciente me respondeu. A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação ― porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. Medito como aos poucos e poucos um passarinho maior ia cantando esperto e chamando outros e outros, para a lida deles, que se semêlha trabalho. Me passavam inveja, de como devia de ser o ninho que fizessem ― tão reduzido em artinha, mas modo mandado cabido, com o aos-fins-e-fatos. E quem nos carrega é Riobaldo, do alto de sua visão de poeta-jagunço. É ele que começa rasteiro, vaqueiro a rodear os quatro cantos, cobra voadeira, até tornar-se Tatarana, afiançado por sua precisa mira, e, em seguida, CEO da jagunçada, o Urutu-Branco adiante do bando. O professor. Sua maneira de narrar, serpeante, peculiar, afasta e aproxima os leitores, que, da conversa entre o personagem-narrador e seu interlocutor, se achegam, aguçando os sentidos, para, nas entrelinhas dessa prosa, enxergar alguma mensagem que vai subentendida. Demorei que ele mesmo por si pudesse pôr explicação. E foi ele disse: ― Por vingar a morte de Joca Ramiro, vou, e vou e faço, consoante devo. Só, e Deus que me passe por esta, que indo vou não com meu coração que bate agora presente, mas com o coração de tempo passado... E digo... Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo jeito, se podia mandar o amor? Do lado de fora do romance Grande sertão: veredas, do ponto de vista de quem o lê, com a visibilidade e a fortuna crítica que a obra tem, todo mundo já sabe a respeito do sexo biológico de Diadorim, mas – do lado de dentro, lá onde as orações entrelaçam-se feito cipós semânticos – quando a descoberta chega, permeada de páginas e páginas de leitura muitas vezes vagarosa, como em certos trechos em que o terreno mostra-se incomunicável aos cascos cansados dos cavalos, ela – a revelação – chega mortificante, embalada nos presságios que, tristemente, nos levaram até ali. Estupefatos, todos, ficamos, porque não poderia ser outra a reação. E, nessa hora, já estamos perto do fim, com Diadorim recém-saíd@ do meio do redemunho. Vêm mais algumas páginas e... The End. Mas o que fica entre a primeira e a última página de Grande sertão: veredas? Fica essa tentativa de ser pôr, em letrinhas, a própria transmudação do que é a vida, em sua grandeza, em sua essência. O sertão é o diabo? O sertão é a própria vida? O sertão é a vida?! É? Escorrendo pelas mãos, ela nos leva, em rebuliço, enquanto se busca desesperadamente escapulir do perigo, para, se tudo correr bem, deixar-se ficar ali, embaixo de alguma árvore, à sombra, perpetuando-se em flor, vicejando em demasia, ininterruptamente, feito uma alegria repentina que surge, sabe-se lá bem de onde, sabe-se lá bem por quê. Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Trouxeste a jacuba, leitor, a fim de, bem alimentado, atravessar este universo onde o Diabo espera por você, no meio do redemunho? Até que, nisso, alguém se riu de mim, como que escutei. O que era um riso escondido, tão exato em mim, como o meu mesmo, atabafado. Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que isso era ideia falsa próxima; e, então, eu ia denunciar nome, dar a cita! ...Satanão! Sujo!... e dele disse somentes ― S... ― Sertão... Sertão... Leia também o "Especial Guimarães Rosa". Renato Alessandro dos Santos |
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