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Quinta-feira, 22/8/2002 Gramado, o cinema e as estrelas Lucas Rodrigues Pires Confesso que não gostei das premiações do Festival de Gramado. Praticamente em todas as categorias meu olho analítico via outro vencedor. Quem leu os posts que publiquei no blog, de lá, sabe disso. Mas antes de falar dos filmes em si, é importante dar aos leitores uma idéia desse que é considerado o maior festival de cinema brasileiro. Com 30 anos de existência, a festa na serra gaúcha passou de espaço reflexivo e pensante da situação política do país e do próprio cinema brasileiro para um evento em que "artistas" se encontram para verem e serem vistos. E isso é uma norma da nova organização, que prioriza (e banca) a ida de convidados famosos para a cidade e os trata como verdadeiros ícones do cinema brasileiro. Quem conseguiu um ingresso para alguma das noites frias no Palácio dos Festivais (coisa de difícil acesso, já que custavam 30 reais e a maioria dos assentos estava destinada a convidados famosos e à imprensa), onde eram exibidos os filmes em competição, se deparou com situações ridículas e cômicas. Uma delas: quando os apresentadores (um casal diferente por noite) chamavam os artistas que lá estavam para subir ao palco e receber uma salva de palmas do público. Um deles teve o cúmulo de dizer para que fossem até lá (ao palco) para fazer a "delícia dos nossos câmeras, que farão imagens que irão correr o Brasil inteiro, e o mundo também"... Além disso, os discursos eram longos e repetitivos demais, apresentadores se alongavam em suas próprias experiências com o festival e introduziam homenageados com tamanho excesso de qualidades que deixam em dúvida se aquele ser premiado seria um homem ou um deus perdido entre meros mortais. Muitas vezes me lembrou a premiação do Oscar, em que o ufanismo sem medida e totalmente insensato substitui e ofusca o verdadeiro homenageado da festa - o cinema em si. Quanto aos filmes em competição, devo admitir que todos são bons - uns mais, outros menos. Foi fato que não havia um bicho-papão e uma grande produção que chegasse com pinta de campeão antecipadamente; pelo contrário, com filmes totalmente inéditos e até certo ponto desconhecidos, em termos de cinema Gramado conseguiu bons frutos. A competição de longa de ficção nacional foi, sem dúvida, a melhor delas. Ei-los abaixo: QUERIDO ESTRANHO, de Ricardo Pinto e Silva: abriu o primeiro dia do festival e apresenta uma família paulistana no dia de aniversário do patriarca Alberto, vivido por Daniel Filho. Ele é um velho ranzinza, dono de uma peçonha de inigualável veneno que não poupa esposa, filhos ou cunhado. Reunidos para o almoço, ele tem um filho executivo de certo sucesso, casado e obediente à mulher; uma filha ligada à política e única de quem ele gosta realmente; e a caçula tímida e reprimida pelo pai, que no mesmo dia quer anunciar o noivado com um homem bem mais velho que ela. Num universo restrito praticamente ao interior da casa em seus momentos centrais, traz à tona todos os problemas e sentimentos presos dentro de cada um - todos mirando um único foco, o pai, que com a ajuda da bebida inicia uma empreitada de ofensas que gerará o clímax final. O texto é inspirado em peça de Maria Adelaide Amaral, chamada "Intensa Magia", e traz situações que facilmente qualquer um de nós já viveu ou sentiu em certo momento da vida. Seria mais que merecido o prêmio de ator para Daniel Filho e até de roteiro. Levou apenas o de ator coadjuvante (Emílio de Mello). A abertura do filme é fantástica, lembrando o início de "A Marca da Maldade", de Orson Welles: cena de uns 4 minutos, num único plano, com a câmera planando sobre as ruas de Pinheiros e dentro do cenário apresentando os créditos. Muylaert escreveu o roteiro e imprimiu nele situações que lembram o surrealismo, lembrando quadros de Dali a Bunuel, como na cena em que, no quarto de cima do sobrado, estão um cadáver, o cavalo branco com a garotinha vestida de balé em cima e pintando a parede com uma vassoura suja de sangue, Durval atônito e a mãe sentada à cama pensativa e louca. Esta cena deve ter sido a responsável pelo alto número de kikitos recebidos (sete no total). O pecado talvez seja a mudança brusca de gênero no meio do filme, pois, o que se inicia como uma comédia ao estilo "Alta Fidelidade" acaba por se transformar num drama tenso gerador de grande suspense, muito disso graças à trilha sonora de André Abujamra. Eis os prêmios conquistados: filme, diretora, roteiro, fotografia, direção de arte, júri popular e prêmio da crítica. Não merecia tanto, é inferior a "Dois Pedidos", mas serviu para trazer à tona uma jovem diretora paulista que tem uma postura demasiadamente séria, o que às vezes soou como arrogância de quem se considera genial (não que seja este o caso). É mais uma das promessas do cinema paulista. SEPARAÇÕES, de Domingos de Oliveira: fechou o festival agradando principalmente o público, que gosta mesmo é de rir. Esta comédia do diretor carioca segue a mesma linha de seu filme anterior, "Amores", e trata das relações conjugais de vários personagens ligados à vida cultural teatral do Rio de Janeiro (o que nos leva a pensar em situações autobiográficas de Domingos Oliveira). O principal conflito dá-se entre Cabral e Glorinha, que, depois de 12 anos juntos, inventam uma separação quaresmal para reavaliar o relacionamento. Ela se apaixona por outro homem e deixa Cabral a ver navios. "Separações" é basicamente as lamentações desse homem abandonado - sempre envolto em muito humor - e suas tentativas de reconciliação. Dividido em 4 partes - Negação, Negociação, Revolta e Aceitação -, tem seu forte nas palavras e na temática universal imerso no ambiente burguês carioca. Oliveira não rechaça o rótulo de "Woody Allen brasileiro", mas afirma que sua maior influência vem do cinema francês, de Truffaut a Godard. Em termos estéticos, o filme também inovou em relação a "Amores", conseguindo impingir maior agilidade de câmera (filmado em digital) e apostando nos personagens/atores (com foco muito voltado aos rostos) e não nas locações. Priscilla Rozenbaum, que interpreta Glorinha e é mulher do diretor, ficou com o prêmio de melhor atriz. Estava pouco cotada já que esta foi, sem dúvida, a categoria mais disputada, com Débora Falabella ("Dois Perdidos"), Etty Fraser ("Durval Discos") e Suely Franco ("Querido Estranho") dando show e roubando a cena em seus respectivos trabalhos. Talvez o kikito de roteiro serviria mais, e até o de ator coadjuvante (Fábio Junqueira). Também recebeu o de melhor atriz coadjuvante, para Suzana Saldanha, mais por falta de opção do que por destaque de interpretação. Lucas Rodrigues Pires |
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