busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Segunda-feira, 4/12/2006
João Moreira Salles
Julio Daio Borges

João Moreira Salles é, antes de mais nada, o conhecido documentarista de Nelson Freire (2002) e Entreatos (2004). Irmão mais jovem do cineasta Walter Salles Jr., começou sua carreira incentivado por este, em 1985, fazendo roteiro e texto para a série Japão, uma Viagem no Tempo, exibido na extinta TV Manchete. A consagração veio a partir de Notícias de uma guerra particular (1999), co-dirigido por Kátia Lund, seguido de 6 Histórias Brasileiras (2000), uma série documental exibida pelo canal GNT, onde João dirigiu dois episódios, um deles com o jornalista Marcos Sá Corrêa.

Mas João Moreira Salles é também conhecido por sua relação de admiração com o chamado "jornalismo literário" surgido durante o século XX. Já prefaciou um volume da coleção de mesmo nome, editada pela Companhia das Letras e idealizada pelo jornalista Matinas Suzuki Jr. Hoje, inclusive, investe pessoalmente no lançamento de uma publicação mensal que privilegia o texto e cujo objetivo é, acima de tudo, "contar boas histórias" — a já celebrada revista
Piauí.

Nesta Entrevista, João Moreira Salles convida os Leitores deste
Digestivo a tornarem-se, também, "piauienses". Nega, veementemente, a inspiração na bíblia do jornalismo literário mundial, a revista The New Yorker — ao mesmo tempo em que rejeita qualquer ambição de "salvar" o jornalismo atualmente praticado no Brasil. Revela-se surpreso com a acolhida da Piauí na blogosfera brasileira, enquanto que promete, para sua publicação, "um site tão interessante quanto a versão impressa". Comenta, ainda, as várias intervenções do grupo Moreira Salles na cultura brasileira e anuncia que, quando a Piauí atingir velocidade de cruzeiro, pretende retornar aos documentários. — JDB

1. Há alguns anos que eu ouço falar desse seu projeto de implementar a "New Yorker brasileira"... Me parece óbvio, mas não custa perguntar (até para confirmar): a Piauí é esse projeto? Ou seja, a inspiração é mesmo assumida ou vocês preferem deixar mais nas entrelinhas? A marca "New Yorker" traz a vantagem da tradição de mais de 80 anos, da penetração, da história enfim, mas não acha que esse modelo pode, de repente, engessar a revista? Até onde vai a comparação (até onde vocês querem levá-la)? Ou, no fim das contas, esta discussão nem se coloca, é despropositada e não faz o menor sentido?

Nem eu nem as pessoas envolvidas no projeto dissemos que a Piauí seria a New Yorker brasileira. Seria meio bobo e pretensioso afirmar isso. A New Yorker é o resultado de um momento específico do jornalismo americano: um grupo extraordinariamente talentoso de escritores oriundos de diversas partes dos EUA (quando não do mundo) encontraram-se na cidade que, àquela altura, já tomava o lugar de Paris como centro da vida literária mundial. Isso não se reproduz em lugar nenhum. A Piauí é uma revista nova, inventada do zero. Temos nossas admirações — Senhor, Pasquim, New Yorker, Realidade, Opinião — mas admirar é uma coisa, copiar é outra. Não há nada muito parecido com a Piauí. Nem aqui, nem fora.

2. Eu lembro de você na coleção Jornalismo Literário, organizada pelo Matinas Suzuki Jr., para a editora Companhia das Letras, e lembro da sua declaração de que o Joseph Mitchell é, na sua opinião, o maior escritor do século XX... Quanto a Piauí tem desse seu background? Pensa, como o Matinas, que o momento é propício para se investir novamente no bom texto jornalístico, como certamente investe a Piauí? Com as editoras soltando coleções, e mesmo livros avulsos, de jornalistas-escritores, acredita que o leitor brasileiro está, mais uma vez, maduro para uma revista de reportagens (ou de "boas histórias", como vocês colocam)?

A frase sobre o Mitchell não é minha. Foi dita e repetida pela velha guarda da New YorkerE.B. White, Lillian Ross, William Shawn. Eles nunca disseram que Mitchell era o maior escritor do século XX, o que seria um absurdo. A afirmação é mais modesta: ele seria um dos maiores escritores americanos do século. Isso posto, concordo com o Matinas. O bom texto nada mais é do que uma história bem contada. E histórias bem contadas nunca saem de moda. A Piauí busca isso. Temas interessantes contados com verve, drama, tensão narrativa, e que empreguem um vocabulário que exceda cem palavras.

3. Me chamou a atenção o fato de vocês, na divulgação da Piauí, evitarem o rótulo "jornalismo cultural"... Foi proposital? Acha que as publicações impressas de jornalismo cultural andam meio desgastadas? Ou foi por serem, historicamente, um fracasso comercial no Brasil (ainda que um sucesso sob muitos aspectos)? A opção por "contar uma boa história", naturalmente herdeira do jornalismo anglo-saxão, é mais simpática do que a outra? É evidente, para mim, que vocês querem abraçar os temas políticos, e mesmo as hard news (economia etc.), mas queria saber se é, realmente, uma opção editorial a priori (excluindo a outra)...

Nossa opção editorial é simples: falar de tudo, de política a odontologia. Se um autor for capaz de tornar uma reportagem sobre cáries interessante, ela será publicada na Piauí. Isso significa que a cultura nos interessa, mas não é nossa obrigação cobrir a agenda cultural. Para isso já existem boas revistas. Ademais, o que é cultura? Um ensaio literário sobre a goiabada, publicado no nosso número de novembro, seria cultura? Ou cultura é apenas a crítica de um livro, de um disco ou de um filme?

4. Mesmo que a comparação com as revistas culturais não caia, exatamente, como uma luva, no caso da Piauí, a referência que primeiro vem à cabeça é a Bravo!. Eu, particularmente, acho muito significativo que a Piauí venha do Rio, da, digamos, "tradição" do jornalismo do Rio (puxando mais pelo Pasquim), e que a Bravo! venha de São Paulo, com aquela carga "plástica", de imagem precedendo a palavra... A opção de vocês por um desses dois mundos foi consciente ou simplesmente aconteceu?

Nossa revista é de texto e imagem. Uma coisa não é mais importante do que a outra. Publicamos dossiês fotográficos e histórias em quadrinhos; e também contos com mais de sete páginas. Vale tudo, contanto que seja bom e interessante. O fato da revista ser carioca tem a ver comigo, que vivo no Rio e não gostaria de trocar minha cidade por outra. Como você, acho que isso tem certas conseqüências. Digamos que não nos levamos muito a sério, que entre nós predomina um certo ceticismo, e que pouca coisa vale a pena sem humor e um pouquinho de deboche.

5. Eu queria aproveitar e elogiar a relação de nomes que compõem a Piauí: vocês conseguiram contrabalançar a experiência de jornalistas como Mario Sergio Conti, Roberto Pompeu de Toledo e até Danuza Leão com "jovens talentos", digamos assim, como Vanessa Barbara (editora de A Hortaliça), Cecilia Giannetti (que eu conheci de podcast e de blog) e Daniel Galera (que se lançou em ezine)... Como foi, para usar uma gíria do mundo do trabalho, o "processo seletivo"? Saiu tudo da sua cabeça? Vocês tinham essas conceitos em mente, como ponto de partida?

Desde o início, havia a idéia de misturar as gerações. Deixar os experientes conviver com os aventureiros. Todo número contará com essa mistura, que eu realmente acho muito saudável. A escolha foi feita sob o critério da qualidade e da originalidade. Quem tinha coisas novas a dizer, ou dizia coisas velhas de maneira nova, foi convidado a participar.

6. Ao mesmo tempo em que vocês parecem atentos aos novos autores da internet, digamos, adotaram, a meu ver, uma postura um tanto quanto tímida no site da Piauí... A Web é uma plataforma importante para a revista? Ou tem mais uma função de divulgação on-line? Como vocês consideram a questão da crise do papel como suporte para o jornalismo escrito? A Piauí tem algum "plano secreto" para lidar com essa questão? A vendagem de exemplares é um pilar de sustentação da revista ou vocês apostam mais em publicidade (como normalmente fazem as revistas de cultura)?

Começamos concentrando todos os nossos esforços na revista física. Só um mês depois, o site entrou no ar. Por enquanto, ele é apenas a reprodução da revista. Com o tempo, ele trará novidades. Nossa internet será de responsabilidade do Marcos Sá Corrêa, que há tempos se dedica ao jornalismo eletrônico. Não temos propriamente um segredo na manga, mas temos idéias de como tornar nossa versão eletrônica interessante. Levará tempo, mas os leitores terão acesso a uma Piauí eletrônica tão curiosa (espero) quanto a versão física. Como a maioria das publicações, nosso modelo de negócios depende essencialmente de publicidade e de assinaturas.

7. Ainda que a postura da Piauí não tenha sido, vamos dizer, "agressiva" em relação à internet, acho que foi uma das revistas mais comentadas (e elogiadas) dos últimos tempos em sites, blogs, fóruns de discussão... Vocês imaginavam toda essa repercussão? Qual a responsabilidade e quais as implicações depois dos aplausos aos primeiros números? Não parece haver ainda um consenso se a geração do e-mail, do MSN e do Orkut lê e escreve mais ou menos, melhor ou pior, mas não considera interessante que a internet, de certa forma, dialogue tão entusiasticamente com um projeto em papel que faz referência à New Yorker, uma publicação nascida em 1925?

Sim, foi uma boa surpresa. Quando começamos a pensar no projeto, entramos no mundo dos blogs, que desconhecíamos (eu pelo menos desconhecia). Ainda que muitos sejam excessivamente voltados para o próprio umbigo, o que me parece notável é que a internet reascendeu o desejo de escrever. É como se estivéssemos retornado ao século XVIII, com sua literatura epistolar e confessional. Quanto à responsabilidade dos próximos números, ela é grande. Não será fácil manter o grau de cuidado com os textos e com as apurações. O que não significa que deixaremos de perseguir esse objetivo.

8. Você me parece bastante ocupado com a Piauí e todo mundo sabe que revista mensal de qualidade dá mesmo muito trabalho... Entrando um pouco mais no lado pessoal, como pretende conciliar a Piauí com seus outros projetos em cinema? Pelos próximos meses (ou, quem sabe, anos) vamos ver o documentarista ceder lugar ao publisher João Moreira Salles? Traçando um paralelo entre essas duas atividades: do mesmo jeito que o documentário vem sutilmente ocupando o lugar do cinema de ficção, acha que continuará a tendência do jornalismo ir ocupando, também no século XXI, muito do espaço dedicado anteriormente à literatura de ficção (naquela mesma tradição de contar boas histórias etc.)?

Do ponto de vista pessoal, pelo menos nos próximos dois anos me dedicarei exclusivamente à revista. Mas não penso em deixar o documentário. Quando a Piauí entrar em velocidade de cruzeiro, voltarei aos filmes. A segunda parte da tua pergunta é interessante. Tom Wolfe já disse várias vezes que a não-ficção é hoje muito mais original do que a ficção. A afirmação é tão bombástica quanto seu autor. Um exagero. Ainda assim, é verdade que o texto de não-ficção não precisa se sentir inferiorizado em relação à literatura tradicional, assim como o documentário não precisa ter vergonha de não ser longa de ficção.

9. Eu queria aproveitar e fazer outro elogio, a vocês da família Moreira Salles, e ao Unibanco, pela atuação indiscutivelmente significativa no âmbito da cultura, desde o Espaço Unibanco de Cinema até o Instituto Moreira Salles (e seus Cadernos de Literatura...), desde a ligação com a Companhia das Letras até, evidentemente, a revista Piauí... Podemos esperar novas intervenções, do grupo, em outras áreas da cultura? Como, por exemplo, no caso da Flip? (Aliás, a Piauí vai continuar patrocinando mesas de jornalismo em Parati, como as deste ano?) Apesar das inúmeras realizações de vocês, do Unibanco etc., para a cultura do Brasil, enfrentam críticas? Se, sim, como lidam com elas?

Cada uma dessas atividades é movida por uma lógica própria, que vai desde o posicionamento mercadológico ao interesse particular da família. Há decerto uma convergência, pois creio que não atuaríamos desse modo se não fosse o meu pai. Se a nossa interferência cultural é positiva, parte da razão é que se trata de uma interferência sincera, mesmo quando a serviço dos negócios. Crescemos com a idéia da cultura como valor intangível, mas essencial. Novas iniciativas virão, quando surgirem idéias ou oportunidades.

10. Voltando ao João Moreira Salles "jornalista" — se podemos falar aqui assim —, o que você diria para o jovem autor que está lendo esta Entrevista e que deseja participar, de alguma maneira, da Piauí? É bastante óbvio que você acredita no jornalismo, então, que "mensagem" gostaria de transmitir às novas gerações de jornalistas? Em outras palavras: será que poderíamos falar já num retorno ao bom texto jornalístico, na imprensa, puxado pela Piauí? Vocês tem essa ambição? (Em resumo: quando muita gente parecia ter desistido do jornalismo em papel, vocês vêm e afirmam que o jornalismo ainda vale a pena... Como é isso?)

Não sou jornalista. Sou um documentarista que está ajudando a criar uma revista. Não tenho ambições pedagógicas — nem eu nem as pessoas que compõem a redação da Piauí acreditam que o jornalismo brasileiro precisa ser reformado ou salvo. Existe excelente jornalismo e mau jornalismo no Brasil. Nossa idéia é apenas ocupar um nicho que até agora estava vago. Nossas pretensões são relativamente simples: queremos fazer uma revista perene, que seja divertida e que revele coisas curiosas, importantes, fúteis, boas e ruins sobre o Brasil. Portanto, minha recomendação ao jovem escritor/jornalista/artista gráfico/poeta é a seguinte: se você tem alguma coisa curiosa, importante, fútil, ruim ou boa a dizer sobre o Brasil, e consegue dizê-la com talento e graça, venha ser piauiense.

Para ir além
Revista Piauí

Julio Daio Borges
São Paulo, 4/12/2006

 

busca | avançada
59318 visitas/dia
1,7 milhão/mês