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Quarta-feira, 18/9/2002
Digestivo nº 99

Julio Daio Borges

>>> NINE ELEVEN Uma semana e um ano nos separam do 11 de setembro. O caráter oficialesco das cerimônias, neste primeiro aniversário, roubou toda a singularidade do evento. O acontecimento que deveria ter aberto uma fissura na História acabou absorvido por jornais, revistas e livros como mais uma data qualquer. O grande momento ficou para trás, muito atrás. Foi quando o racionalismo, a lógica e a moderna inclinação cientificista foram postos de lado, porque simplesmente não davam conta da catástrofe. Durou alguns dias, ou algumas horas, dependendo do tempo que cada um demorou para arranjar explicações minimamente satisfatórias. Foi quando a humanidade novamente se aproximou das grandes tragédias fundadoras da tradição ocidental. Poderia ter nos ensinado muito, mas infelizmente caiu na vala comum do "processamento de dados", do jogo de "causa e conseqüência", do populismo e da demagogia de políticos e aproveitadores de ocasião. Devolveu-nos a falsa segurança e a crença ingênua de que o mundo caminha para uma época melhor. Em Nova York, a grande sensação não foi a leitura da interminável lista das vítimas dos atentados no Ground Zero, mas sim os altares improvisados que a própria população montou nas esquinas, nas ruas e nos metrôs da cidade. Isso provavelmente a televisão não mostrou, até porque lá havia fotos que a mídia inteira, enojada, suprimiu convenientemente dos noticiários. Diante das verdadeiras imagens dos escombros, dos retratos e das mensagens aos mortos, dos objetos e dos restos do World Trade Center não havia como se confortar com os discursos empolados, com a demonização vingativa do oriente ou com a pretensão acintosa de quem se compara ao arquiteto do universo, apontando arbitrariamente caminhos para bilhões de pessoas. Embora a distância (que se estabeleceu na linha do tempo), de atos tão brutais, proporcione a tranqüilidade e a serenidade necessárias para se sobreviver, rouba, na mesma proporção, qualquer esperança de que o mundo efetivamente se transforme.
>>> Especial 11 de setembro
 
>>> ESPÍRITO DE PORCO Muito espanto por causa da saída de Nando Reis dos Titãs do Iê-Iê-Iê. Ainda que eles não tenham sido os mesmos há mais de dez anos, os fãs lamentam o que então parecia inevitável. É fato incontestável que a trajetória ascendente de "Cabeça Dinossauro" (1986) e "Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas" (1987), a mesma que culminou com "Õ Blésq Blom" (1989), vinha descendo a ladeira desde "Tudo ao Mesmo Tempo Agora" (1991). Na época, os Titãs se deixavam seduzir pelo modismo do "grunge" de Seattle e se submetiam à produção (que acreditavam salvadora) de Jack Endino, o mesmo que se consagrara ao lançar o Nirvana de Kurt Cobain. Na tentação fácil de regredir ao "puro rock" e de deixar para trás toda a influência dos ritmos brasileiros, a musicalidade tão arduamente conquistada foi sacrificada (em nome da santíssima trindade: guitarra, baixo e bateria e das letras que ficaram presas numa espécie de "adolescência" [farta em palavrões e terminologia chula]). Não por acaso, Arnaldo Antunes, o verdadeiro "desafinado", abandonaria o barco no álbum subseqüente, para se dedicar à carreira de compositor (seduzindo Marisa Monte, Maria Bethânia e Zélia Duncan, nesta ordem) e também de intérprete (nunca com o mesmo sucesso, obviamente). Pode-se dizer que Nando Reis já vinha botando as "asinhas para fora" desde o "Mais" (1991), da mesma Marisa Monte, em que assinava simplesmente a composição mais importante do álbum: "Diariamente", cuja versificação seria repetida exaustivamente por hordas de jovens admiradores da diva. O último espasmo de inteligência dos Titãs, porém, ocorreria em 1997, no "Acústico", que reuniria novamente o octeto e remeteria às suas canções mais criativas até o momento. Paulo Miklos - mais conhecido com o ator do "Invasor" (2002), de Beto Brant - ascendia como cantor, enquanto que Sérgio Britto e Branco Mello, outrora "apagados", assumiam muitas vezes o comando. Nando Reis ainda gravaria dois discos solo e veria o seu sol brilhar com Cássia Eller, sua discípula mais dedicada, para fortalecido optar pelo afastamento. Desde a morte trágica de Marcelo Fromer que os seguidores do Titãs se perguntam se ainda vale à pena. Ao que parece, os Titãs (ou os seus remanescentes) ainda acham que vale.
>>> Nando Reis abandona os Titãs
 
>>> UM HOMEM DE OZ Veio a calhar a idéia da José Olympio de (re)publicar "Aqui está Nova York", ensaio de E.B. White, em tradução de Ruy Castro. Afinal nos arredores do 11 de setembro o texto de White soa assustadoramente premonitório, como diz a orelha e frases como esta: "de todos os alvos, Nova York tem uma espécie de clara prioridade". Ou então: "Na mente de qualquer pervertido que enlouqueça, Nova York deve exalar um encanto irresistível". Mas o ensaio não é nem de longe um exercício de clarividência sobre o holocausto que se abateria sobre a cidade, é, na verdade, um misto de celebração e de nostalgia, afinal, E.B. White voltava à metrópole que escolhera para morar duas ou três décadas antes. Estamos falando de um manuscrito forjado em 1949, quando White foi especialmente convidado por Roger Angell (então seu enteado) para preencher as belas páginas da revista "Holiday". À insinuação por parte de Angell de que seria "divertido" reencontrar Nova York anos depois, e registrar suas impressões a respeito dela, White respondeu: "Escrever nunca é divertido". Ponto. Ao lê-lo, porém, a impressão é outra; há, além do mestre do estilo, uma poesia inebriante, que permanece encantando leitores através dos tempos. Claro, o ensaio caminha para a desilusão e para o enfado, à medida que as páginas avançam. A dádiva da solidão e a dádiva da privacidade (no primeiro parágrafo) cedem lugar à árvore, que, se um dia morrer, com ela tudo mais perecerá (no último). O que interessa, contudo, é o passeio, o vagar ou, nas próprias palavras de E.B. White, a vadiagem. Até porque quem nunca mandou às favas o trabalho e os compromissos diários para se perder, de vez em quando, nas ruas e ver a sua cidade respirar, nunca chegou a conhecê-la de fato.
>>> Aqui está Nova York - E.B. White - 55 págs. - José Olympio
 
>>> PERTURBADOR E COSMOGÔNICO Quase cem anos nos separam do lançamento de "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Um clássico perante o qual muitos dos brasileiros ainda permanecem analfabetos. Grosseiramente, é possível classificar os escritores como de síntese ou de análise, cabendo a Euclides a segunda classificação. Barroco por excelência, doente desde o nascimento, não podia compor uma obra que não fosse marcada pela exuberância e pelo exagero - como que para compensar o emprego de funcionário público, o casamento com a esposa infiel, as crises advindas da tuberculose. Sua vida não podia ter tido desfecho mais trágico e melancólico: o duelo contra o amante da mulher, Dilermando, que terminou fulminando-o. Antes que a culpa recaia sobre o assassino, por ter calado um escritor de gênio, há hoje indícios de que Euclides sofria de desequilíbrios mentais (quando resolveu partir para o enfrentamento homem a homem). Apesar de sua realização descomunal em literatura, a posteridade não o eximiu de todos os pecados. Acredita-se que os seus descendentes o tenham imitado justamente nos pontos em que sua obra mais falha: na desmedida ambição cientificista; no desejo (frustrado) de dar conta do Brasil; e no objetivo (no caso dele, atingido) de fazer frente a toda a tradição épica ocidental. Assim como Machado, pelo lado da economia e da contenção verbal, Euclides deixou um modelo que inspirou pelo menos um livro fundamental: "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Durante as festividades do centenário, contudo, a classe dos jornalistas foi a que mais arrolou para si os feitos euclidianos - esquecendo-se de que o autor foi também engenheiro, geógrafo, historiador, romancista e poeta. A relativa bonomia do século XX (descontando os períodos e focos bélicos) privou a humanidade de criadores viscerais como Euclides da Cunha. Afinal, se Wittgenstein tinha razão, a vida só ganha sentido perante a morte. Num tempo em que a última virou uma abstração, a primeira só poderia acabar em impostura (ainda mais no "melhor país do mundo").
>>> Euclides da Cunha
 
>>> LE MAL A velha história dos bebês trocados na maternidade. Não é o tema principal, mas o ponto de partida para o filme de Claude Chabrol: "A teia de chocolate" ("Merci pour le chocolat" [2000]). Parte do 1º Festival de Cinema Francês, organizado pela Pandora Filmes, começa como drama e termina como policial. É o típico longa europeu de fim de século (XX): tenso, morno e com um cast bastante simplificado. Roteiro: durante um almoço informal, moça descobre que pode ser filha de um renomado pianista; apesar das negativas da mãe, insiste em abordá-lo e conquista a sua confiança quando revela preparar-se para um concurso... de piano (!). A dúvida, não esclarecida até o final, sobre a paternidade move três quartos do filme. O pianista, de meia idade, sente-se rejuvenescido pela presença da possível filha e toma-a como aluna. A moça, que o tinha em alta conta, encontra a situação ideal para aperfeiçoar-se no instrumento. Seria, portanto, perfeito se tratasse dos relacionamentos entre gerações de artistas. Ainda mais com Chopin e Liszt como pano de fundo. Acontece que a esposa do artista, a fria Isabelle Huppert, revela-se uma mulher perversa e uma mente maligna. É aí que "A teia de chocolate" desanda: quem se encanta com as notas e os acordes não quer saber de suspeita de assassinato... Enfim, vale apesar do desfecho melancólico. Aos estetas, sobretudo pela presença de Anna Mouglalis, candidata a beldade na França, uma morena que lembra muito Patrícia Pillar (candidata a primeira-dama). A ambientação é bastante atual: carros Mercedes-Benz Classe A, moderna arquitetura de interiores, laboratórios de última geração (a mãe da moça é médica). E as paisagens da Suíça, para completar. Pensando bem: quem liga para o enredo com tanto cartão postal para olhar?
>>> Merci pour le chocolat
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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