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Sexta-feira, 18/2/2005
Apocalípticos, disléxicos e desarticulados
Julio Daio Borges

Por uma dessas razões que até a própria razão desconhece, eu acabei conhecido, na internet, também por causa das minhas opiniões sobre blogs. Não muito favoráveis, digamos. Tudo começou com um texto, pelo qual eu recebo comentários até hoje. Na verdade, houve antes uma nota e depois, bem depois, uma outra com base numa notícia de jornal. Ultimamente, andei escrevendo sobre isso e até publicando no Globo e no Estadão. E, recentemente, quem leu sabe, voltei a falar dos "blogueiros em fúria".

De uns tempos pra cá, porém, andei percebendo, sem que ninguém me dissesse, que muitos dos problemas que eu atribuo aos blogueiros são, no fundo, defeitos de fábrica da minha própria geração, e das posteriores. Somos quase todos, sem exceção, um bando de disléxicos e desarticulados. O fato, por exemplo, do blogueiro ficar na nota ou na frase e não conseguir extrapolar para o texto e para a análise é menos uma falha dele do que uma marca da geração X, Y ou Z — a atual, internauta. Essas pessoas que vivem soltando frases de efeito, mas que invariavelmente se embaralham quando têm de colaborar com uma publicação virtual ou real, são meros produtos do meio e particularmente não escolheram esse ou aquele formato — estão, simplesmente, condenados a ele.

Para quem não sabe entender o que é "disléxico", vou contar a história de um colega meu de faculdade. O nome dele não importa (e eu nem sei se posso revelar). Enfim, inteligentíssimo, muito hábil com números, ele tinha um pequeno problema com as palavras: trocava-as. Assim, no dia em que um professor faltou e eu me dirigia para a sala de aula, esse colega me interpelou no corredor e falou: "O professor faltou. Não veio. Está machucado". Não era uma justificativa comum e, de fato, ele não queria dizer "machucado" e, sim, "doente", gripado ou resfriado. Meu colega era disléxico. E não que isso o afetasse, ele trocava as palavras muito de vez em quando. Mas eu, com 5 ou 6 anos de convivência, já havia notado. Minha tese, resumindo, é a seguinte: à mesma maneira desse meu colega, em maior ou menor grau, hoje somos todos disléxicos e desarticulados.

Desarticulados mais até do que disléxicos. Eu já escrevi mas posso contar que fiz um curso na Casa do Saber e, embora seja um lugar de elite (ou supostamente), como os alunos se embananavam para perguntar qualquer coisa ao professor! E não era apenas os jovens; muita gente de meia-idade, senhores e senhoras. A maioria se perdia no enunciado: repetindo, na verdade, o que o professor acabara de dizer, acrescentando uma ou outra discordância e, quando terminava a preleção,... havia se esquecido completamente da pergunta (!). Alguns até se lançavam diretamente no tom interrogativo como se, em espanhol, a fala tivesse principiado justo por um ponto de interrogação, mas davam tantas voltas, em considerações para demonstrar conhecimento ou erudição, que acabavam perguntando alguma bobagem — do tipo relacionada ao último best-seller ou então carregada de intenções ideológicas ou religiosas escusas. Eu sei que sou um pouco abstrato nesse trecho, assim, vamos lá: o curso era, basicamente, sobre História dos Estados Unidos e um sujeito inquiriu a respeito da relação entre as guerras de conquista dos EUA e a paixão de Cristo (não sei se estava falando do filme do Mel Gibson); enquanto outra, uma americana, queria saber se o termo "ideologia" e o termo pejorativo "ideólogo" guardavam alguma relação com os referidos illuminati... informação quentíssima extraída de O Código Da Vinci, de Dan Brown. Nem precisa comentar.

Como editor de um site (eu sempre uso esse exemplo e sei que vocês estão cansados), eu tenho topado com as coisas mais variadas — afinal, como vocês sabem, por escrito é muito pior. Para começar que, muito mais que os blogueiros, quase ninguém sabe a diferença entre, por exemplo, conto, crônica, artigo ou ensaio. É óbvio que as pessoas na rua não têm de saber isso de cor, pois não é coisa que se ensina na escola, mas quem se mete a escrever deveria tentar trabalhar melhor essas definições. Exemplo prático: 99,99% dos "contos" que eu encontro na World Wide Web, principalmente em blogs, não passam de crônicas mal disfarçadas. (O Polzonoff, aliás, notou também esse fato.) Se o sujeito acorda e descreve, mal e porcamente, o dia que passou, não pode estar escrevendo um conto. Literatura não é isso. Literatura não é boletim de ocorrência policial. Literatura é descolamento.

Outro exemplo prático: 99,99% dos ditos "ensaios" de internet não o são — incluindo os deste Digestivo Cultural. Quando eu criei a seção "Ensaios" aqui, sabia que não teria condições de efetivamente publicá-los na WWW, tirando talvez os do Sérgio Augusto. Ensaios, de verdade, são longos e intrincados, feitos para se publicar em livro e não para cansar a vista de quem navega na Rede Mundial. Pessoalmente, para ir mais longe, até acho que a grande maioria dos chamados "artigos" de internet, também, não o são. Quando você escreve um artigo, você tem uma tese na manga e tem, obrigatoriamente, de conduzir o leitor de maneira cartesiana: apresentação ou introdução; argumentação ou desenvolvimento; fechamento ou conclusão. Sem querer desfazer da minha geração, e já desfazendo também das outras, alguém acha que o adolescente blog-maníaco, quando vai escrever seu diário virtual, ou o recém-formado jornalista, debutante na redação, tem essas noções muito claras na mente ou então tem alguém que o oriente nessa direção? Eu acho que não.

O exemplo mais gritante de como somos atrapalhados com as palavras, e não só com os gêneros, é a estrutura das frases e dos parágrafos e o que eu, aqui, chamo de formatação. Eu não sei bem por quê, mas temos uma mania tremenda de inverter os períodos e de complicar as coisas. Em vez de escrever: "Meu tio matou um cara, na noite passada, em plena BR e fugiu apressado", escrevemos: "Fugiu apressado — depois de ter matado um cara —, o meu tio, quando estava na BR (ontem à noite)". É uma verdadeira tara por voz passiva, parênteses, travessões e vírgulas, na maior parte das vezes, desnecessários. Sou uma eterna vítima dessa situação e procuro limpar meu texto de quando em quando. Volta e meia, submerso num exagero de sinais gráficos, sou alertado por algum leitor atento. Isso sem mencionar negritos e itálicos, relativamente raros em impressos em geral mas tipicamente abundantes na WWW. É um caos total.

Eu atribuo essa nossa "formação" à alardeada, e fomentada pela mídia, indústria cultural. (Será que é esse o termo exato? Acho que não. Enfim...) Absorvemos, hoje, tudo em migalhas. Muitas migalhas, milhões de migalhas. São toneladas de informação bruta, mas muito pouca informação aprofundada. Somos, digamos, craques em ler manchetes, em acompanhar os destaques da edição, em amontoar links — mas, quando vamos explicar o que aconteceu, destrinchar um conceito ou uma definição, transcrever aquilo nas nossas próprias palavras, nós nos perdemos e não nos encontramos nunca mais. Somos os reis do título, do slogan, da gíria de significado pseudoprofundo — mas, ao mesmo tempo, somos incapazes de transmitir uma emoção em palavras, somos muito maus contadores de histórias (relatamos o dia por meio de palavras-chave) e somos, no limite, pobres de conteúdo e infestados de "vazios" que refletem vazios interiores reais (como um dicionário cheio de definições que apontam para outras definições, mas que, no extremo, não define nunca nada).

Eu não sei de quem é a culpa por essa situação e seria, na verdade, muito fácil atribuir culpados aleatórios, como "o capitalismo", "a modernidade", "o ceticismo" — mas são todos, esses e outros, conceitos hoje tão abrangentes e tão vagos quanto os que eu acabei de abordar... Como já disse em outro texto, penso que nossa época é muito mais de fazer perguntas do que de vir com respostas prontas. Talvez por isso, quando escrevo, eu saiba muito bem como começar, e até muito bem como levar a coisa adiante, mas não saiba nunca como o negócio vai terminar. (Outra característica da minha geração, que conclui mal ou preferencialmente não conclui nada.) Penso ainda que a época contemporânea (onde os "tempos" são simultâneos), por conviver com períodos muito variados da História, produziu seres humanos bastante hábeis em investigar, em arquivar, em inventariar... mas fracos, ou — de novo — pobres, em se situar, em se localizar e em tirar, também sobre si, conclusões. Mas estou divagando.

Pessoalmente, para mitigar esse fato, procuro trabalhar as definições. Sou o melhor amigo dos dicionários (dos bons). Tudo bem que as palavras mudam com o contexto e tudo bem que, numa era relativa, não existe absoluto (maldito Nietzsche, maldito Einstein). Outra coisa que aconselho aos que me perguntam é trabalhar o que o Nêumanne chamou de "texto zero". Veja se consegue escrever com o mínimo de recursos, primeiro. Veja se consegue se expressar com o mínimo de recursos. Cursos de oratória vêm depois. Até imaginei uma oficina de textos em que eu ensinaria, justamente, as pessoas a simplificarem o que vem escrevendo — e a simplificar o próprio pensamento, na verdade (apesar da minha pretensão). E ler os mestres. E ouvir os mestres. E não ficar só nos flashes piscando... É duro se orientar no meio dessa bagunça, no meio dessa confusão. Tantos os charlatães, tantos os "sabe-tudo", tantos os falsos profetas. Os passos são dados no escuro e percebemos, às vezes atônitos, que nem no nosso próprio juízo podemos confiar mais. É a tal da travessia do Guimarães Rosa. E um passarinho me contou que nos sabermos "apocalípticos, disléxicos e desarticulados" já é um grande passo. Tomara.

Julio Daio Borges
São Paulo, 18/2/2005

 

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