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Segunda-feira, 17/7/2006
Bubble: uma nova revolução no cinema. Será?
Marcelo Miranda

O diretor americano Steven Soderbergh é um cara esquisito. Junto com Quentin Tarantino, ele foi o papa do renascimento do cinema independente dos EUA nos anos 90. Assim como Tarantino com Pulp Fiction (1992), Soderbergh conseguiu que seu primeiro longa, sexo, mentiras e videotape (1989), saísse do Festival de Cannes com a Palma de Ouro - isso, três anos antes do colega, praticamente abrindo as portas para a retomada de narrativas e linguagens fora dos padrões impostos pela grande indústria e liberando passagem para a criatividade e o talento de jovens realizadores, que descobriram não precisar de orçamentos gigantescos para colocar na tela as suas idéias normalmente fora do senso (não) estético da máquina de Hollywood.

A esquisitice irônica e oportuna de Soderbergh fez ele, quase um ícone da década de 90 no cinema de baixo orçamento, ter entrado nos anos 2000 com produções milionárias como Erin Brockovich e Onze Homens e Um Segredo - intercaladas a projetos mais autorais, dentre eles O Estranho, Traffic e Full Frontal. E então, quando parecia ter se rendido ao cinemão depois de Doze Homens e Outro Segredo, o diretor surge com o recente Bubble, em cartaz no Brasil neste mês de julho.

Bubble é o Elefante de Steven Soderbergh. Assim como o filme de Gus Van Sant deu uma guinada na carreira do cineasta e retornou sua obra às origens mais focadas nas contradições do ser humano e menos no espetáculo de melodramas como Gênio Indomável, a nova empreitada de Soderbergh também devolve a ele a pecha de ousado e experimental. Não que Bubble seja uma pérola rara e absolutamente imperdível e revolucionária. Longe disso: afora o estilo seco e pouco narrativo do filme, tudo é absolutamente convencional. Dentro de uma pretensa modernidade, uma modernidade de fachada, está um enredo básico, simples (simplista, até), entremeado pela mão pesada do realizador e pela proposta de parecer novamente independente e livre de amarras impostas na indústria.

Bubble

Então, o que atrai em Bubble? Há duas formas de pensar a questão. A primeira está dentro do filme; a outra, fora. A questão externa talvez se torne a mais relevante no futuro e dentro do atual contexto de distribuição cinematográfica. Bubble foi filmado em digital, ao custo de U$ 1,6 milhão, protagonizado por atores não-profissionais usando suas verdadeiras casas para locações (como fez Van Sant ao usar os alunos na própria escola em Elefante), diálogos improvisados e duração de meros 73 minutos. Quando lançado nos EUA, em 2005, o filme chegou quase simultaneamente em cinema, DVD e televisão - o espaço entre um veículo e outro não passou de três dias. A idéia, segundo o diretor, era deixar o espectador escolher a melhor forma de se assistir ao filme: indo a uma sala de exibição, alugando na locadora ou vendo num canal de TV a cabo. A "operação" era até então inédita. Isto, sim, foi revolucionário ao se pensar em Bubble: nunca a janela entre o filme na telona e na telinha foi tão pequena (Ricardo Calil, em No Mínimo, levantou discussão sobre o assunto).

O filme não foi bem de bilheteria. Na verdade, tornou-se um fracasso de público. Mas assim como sexo, mentiras e videotape serviu de pontapé para uma geração de diretores se mostrar ao mundo mesmo sem dinheiro para filmar, Bubble talvez tenha a força de estimular os adeptos das pequenas janelas de lançamento - ainda mais porque Soderbergh é um nome que, goste-se ou não, possui respeito e respaldo na comunidade cinematográfica. Se ele fez um experimento desses, por que outros não o fariam? Não me admira se começarem a pipocar filmes diretamente em cinema, DVD e TV inspirados pela prática do cineasta. Mesmo os figurões da indústria adorariam. Afinal, o DVD é atualmente responsável pela maior parte do faturamento de um filmão, muito mais que as salas de exibição. Quanto mais rápido o filme for para as prateleiras, mais brevemente ele recupera seu investimento. E os ingressos custando os altos valores de hoje, pode-se esperar uma debandada do público de cinema.

E como fica Bubble, o filme, na principal acepção deste termo? O enredo mostra dois personagens - Kyle, jovem rapaz de uns 25 anos, e Martha, senhora de aproximadamente 45 - numa pequena cidade do interior americano. Eles são trabalhadores braçais de uma fábrica de bonecas infantis. O moço mora com a mãe e tem outro emprego, à noite, o que o impossibilita de manter vida social. A mulher cuida do pai idoso e dá carona ao colega todos os dias. A rotina de ambos se resume a acordar, cumprir afazeres domésticos, ir trabalhar, lanchar e voltar para casa. Tudo é apresentado por Soderbergh de uma forma quase mecânica, sendo a cena da fotografia, logo no início, emblemática. Os dois personagens, com seus olhares ocos e a falta de pensamentos e perspectivas (Kyle guarda dinheiro "para alguma emergência", e só), não se diferem tanto das bonecas que eles fabricam todos os dias. Diferente de um David Lynch, que usaria essa calmaria na pequena cidade para mostrar as mazelas da sociedade conservadora dos EUA, Soderbergh prefere apenas exibir, sem grandes julgamentos, a realidade criada nas suas lentes digitais.

Bubble

Mas eis que surge um "ruído" no cotidiano certinho de Kyle e Martha. É a bela Rose, que chega para trabalhar na fábrica e logo se enturma com a dupla de colegas. Aparentemente tão oca e vazia quanto seus novos conhecidos, Rose vai se revelando uma espécie rara na cidade: alguém com atitude. Ela vem de um outro emprego, num asilo. O antigo trabalho é definido por ela como "limpar o traseiro dos velhinhos". Rose reclama da vida, não se mostra satisfeita com a realidade, quer um serviço digno, é mãe solteira, não guarda boas lembranças do pai de seu bebê e rouba dinheiro quando tem oportunidade. Rose é uma ameaça ao status quo daquela comunidade. Ela é uma bolha ("bubble") que vai crescendo e crescendo, tomando espaço e ganhando forma - principalmente quando se aproxima de Kyle a ponto de saírem para um agradável encontro, deixando Martha cuidando de sua criança.

Essa bolha não pode perdurar para sempre. A certa altura, um acontecimento inesperado (para o público e para os personagens) vai simbolizar o estouro da bolha - algo que, a princípio, era óbvio desde o começo. Ali está um universo que não aceita modificações e não tolera o olhar para a frente. É um universo já constituído, ainda que de forma praticamente acéfala. À medida que os protagonistas vão descobrindo o que aconteceu com a bolha, não há surpresa. O olhar vazio de boneca parece expressar indiferença, ou até um certo alívio. A terra retirada por um trator na cena inicial do filme vai, simbolicamente, voltar para o seu lugar de origem ao final. Ninguém na cidade está interessado no aprofundamento de relações (afetivas, familiares, fraternas, sexuais). A terra não deve ser cavada.

Soderbergh faz um filme de personagens conservadores usando uma estética que mistura o clássico e o moderno. A narrativa guarda em si um desenvolvimento tipicamente comum, com começo, meio e fim, mas tratada de uma forma assumidamente mais dura na maneira de inserir os personagens na imagem. O diretor não realiza tomadas mirabolantes. A câmera está parada o tempo todo, os cortes são bruscos e a música delineia sentimentos - interessante, aliás, o uso da música: no começo, ela soa como forma de apresentação ao universo retratado no filme; no desfecho, a mesma composição parece expressar a frustração (mais do público do que dos personagens) por tudo que deveria acontecer, mas não acontece.

Há certo simplismo da parte de Soderbergh no encaminhamento das situações e na composição de planos, o que não invalida o resultado final. Bubble é um filme instigante e leva à tela conflitos essencialmente humanos. Só de Soderbergh não aparentar piedade de seus personagens, e sim tratá-los como meros peões num tabuleiro sem grandes chances de xeque-mate, já eleva a produção a um patamar razoavelmente superior.

Marcelo Miranda
Juiz de Fora, 17/7/2006

 

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