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Quarta-feira, 19/7/2006
O Yamandu é que é moderno
Rafael Fernandes


Ilustra by Tartaruga Feliz

Lançado no ano passado pela gravadora Biscoito Fino, o DVD Yamandu Costa - Ao Vivo é o melhor registro do violonista até o momento. Seu primeiro disco Yamandu (de 2001, fruto de sua vitória no Prêmio Visa) é muito bom (produzido pelo ótimo Maurício Carrilho), mas muitas vezes os elaborados arranjos escondem um pouco a vivacidade e a potência de sua interpretação. Yamandu Ao Vivo (não confundam: este é um CD de 2003 e agora há o DVD; são apresentações distintas) dá um passo à frente, mostrando Yamandu no local em que mais fica à vontade - o palco - acompanhado apenas de baixo e bateria (formação também presente em algumas músicas neste novo lançamento).

É interessante observar como Yamandu simplesmente ama tocar. Seja estar no palco - no mais fuleiro (o que não é o caso deste DVD) ou ao lado da OSESP, num boteco, numa roda de choro, parece tudo igual - todos esses locais merecem o mesmo comportamento do artista: respeito e despojamento. Fui a um dos dias da gravação ao vivo de seu segundo CD, que ocorreu no auditório do hotel Crowne Plaza. Eu estava no hall de entrada do local e faltavam cerca de 10 minutos para o início do show. Eis que vejo Yamandu chegando. Ele pega sua chave e sobe para o seu quarto. Eu desci para a ante-sala do auditório. Cinco minutos depois Yamandu desce, atravessa essa ante-sala, passa no meio de todas as pessoas que esperavam o início do show - ele estava com uma cerveja na mão - cumprimenta os presentes e entra no teatro. Dali cinco minutos começa a apresentação, impecável - com uma interpretação com seriedade, sem esquecer a descontração.

Analisar a música de Yamandu torna possível discutir a questão "modernidade". Com um instrumento antiqüíssimo - o violão - Yamandu consegue ser mais moderno que muitos DJs de plantão ou essas bossas de butique que estão por aí. É um artista ciente de seu papel: abraça e afaga o passado e a tradição, sem se tornar refém deles e incorporando seus elementos em sua música; esta é fruto do presente, em busca do futuro, numa continuidade sem continuísmo. Por exemplo: o formato violão, baixo elétrico e bateria não é nada novo - Baden Powell utilizou algumas vezes; porém, a capacidade e talento dos músicos faz com que as músicas - arrepiem-se "modernosos" de plantão - tenham abordagens contemporâneas em suas execuções - há frescor, algo além do que já foi feito. É fantástico, ainda mais para os parâmetros atuais, em que qualquer disco de música brasileira que tenha scratches e "barulhinhos" é aclamado como "vanguarda" e novidade - mesmo que seja apenas uma bossa requentada.

Olhemos agora para o DVD, que evidencia como Yamandu evoluiu (e evolui) claramente ao longo dos anos: agora - para desespero de seus detratores - executa as canções de acordo com o que elas pedem: precisão ou sujeira, virtuosismo ou singeleza, com volúpia ou comedido nos momentos necessários. Também fica clara a tranqüilidade e propriedade com que o artista passeia por diferentes ritmos e formações: passa sem cerimônias por um tango, um choro, um samba-canção; seja acompanhado por baixo acústico (Guto Virti) e acordeom (Toninho Ferraguti), com um power trio faiscante (Thiago Espírito Santo no baixo e Edu Ribeiro na bateria) ou uma peça solo. Além de mostrar músicas próprias - que evidenciam seu amadurecimento também como compositor - e fazer versões de artistas consagrados (Baden Powell, Pixinguinha, Radamés Gnatalli, Caetano Veloso), Yamandu também apresenta novos compositores: Toninho Ferraguti e Mariano Moraes.

O DVD começa com uma interpretação solo embasbacante de "Aurora", composição do próprio Yamandu, na qual o violonista despeja seu virtuosismo sem medo (pessoal, virtuosismo é elogio e não depreciação, lembram-se?), ao mesmo tempo em que mescla grande sentimento com o vigor da execução - uma interpretação com a marca registrada do artista. Brilhante. A seguinte é "Tareco no. 2", também de Yamandu - essas duas canções mostram que a faceta de compositor de Yamandu já apresenta uma marca característica. Só ouvindo (e vendo) para entender. Em "Valsa no. 1", de Baden Powell, sobem ao palco os nada menos que fenomenais Thiago Espírito Santo (baixo) e Edu Ribeiro (bateria). Essa música já era brilhantemente apresentada no CD Yamandu ao Vivo, mas aqui ela fica ainda melhor, marcante, precisa: swing, peso e dinâmica na medida exata. Os bons só melhoram com o tempo. "Taquito Militar" (Mariano Moraes) - que também já havia sido gravada no mesmo CD e fecha o disco El Negro Del Blanco, duo de Yamandu com Paulo Moura - já é candidata a clássico e nesse registro visual mostra um show à parte de Thiago Espírito Santo e Edu Ribeiro, também infernais em "Besteira" (Yamandu Costa) e fabulosos na clássica "Nuages" do genial Django Reinhardt. "Sanfonema", de Toninho Ferraguti, com a participação do próprio no acordeom e de Guto Virti no contrabaixo acústico, é certamente um dos pontos mais altos de Yamandu Costa - Ao Vivo. A música é sublime, certamente merecedora de entrar no panteão das grandes músicas brasileiras. A interpretação não deixa por menos e faz jus à canção. Quem disse que não existem mais músicas marcantes e de qualidade neste país?

A direção do DVD - a cargo de Hugo Prata e Márcio Soares - é prodigiosa: discreta, com ritmo e cortes na medida exata. Boa também é a iluminação - sutil - que está a serviço da execução dos músicos e não o contrário. Nos extras há uma versão personalíssima de "Sampa" (Caetano Veloso). E ainda fotos e alguns momentos de bastidores como Yamandu compondo no aeroporto, encontro com outros artistas entre outras coisas. Nada de sensacional (à exceção de uma hilária cena num aeroporto com Armandinho e do ótimo "Lembranças de Django"), mas independente disso é certamente item obrigatório para quem gosta de ver músicos fantásticos interpretando grandes canções.

Retomando o assunto de uns parágrafos atrás, há por aí uma mania de anunciar a gritos o tal do "novo". Mas é um anúncio feito pelo "novidadeiro", essa mania de querer a cada semana algo diferente - uma ansiedade quase compulsiva. Há a mania da espera pelo próximo "gênio" - que deve durar nesse status até aparecer algum outro novo produto. Há a busca do novo apenas pela notícia, pelo "furo" - chutar dezenas e mais dezenas de novas "tendências" para acertar, quem sabe, umas duas ou três coisas um pouco interessantes. Gente que noticia o mais novo "estouro" do rock - direto de Nova Iorque, Seattle ou Londres - que mostra "inovações" que já aconteceram há 10, 20, 30 anos atrás. Yamandu não ilude ou mente: tem consciência de que o que apresenta tem muito do passado, mas consegue imprimir sua marca - e uma marca contemporânea. Há também por aí um "novo" baseado em texturas sonoras eletrônicas, barulhinhos, traquinagens de estúdio. Isso vai ficar datado daqui alguns anos - como aquele som artificial de bateria dos anos 80, ou o "poperô" do início dos anos 90. Garoto, Baden Powell, Raphael Rabello e agora Yamandu - além de muitos outros, é claro - podem ter (e ser) marcas de uma época. Mas sobrevivem - e sobreviverão - por muitos anos como marca de qualidade e bom gosto. A interpretação de "Disparada" (Theo de Barros e Geraldo Vandré) é uma grande mostra desse abraço à tradição, trazendo-a para os dias de hoje. Mais do que moderno Yamandu é candidato a clássico.

Rafael Fernandes
São Paulo, 19/7/2006

 

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