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Quarta-feira, 13/6/2007
Coque, o violeiro de uma mão só
Diogo Salles

O ano é 2005. Meados de junho. Inverno? Não no Tocantins. Não no coração do Brasil. Na pequena cidade de Natividade, encravada entre o Deserto do Jalapão e a Chapada dos Veadeiros, a temperatura não desce nem ao ameno. Com cerca de 10 mil habitantes, nos salta aos olhos uma cidade deteriorada por uma pobreza e desigualdade social frutos do descaso e de décadas de coronelismo. Diante de tantas dificuldades e de tão poucas oportunidades, muitos encontram no artesanato a única maneira de subsistir. Estamos em três pessoas mapeando a região onde faremos dentro de algumas semanas um trabalho de ação social com a comunidade local. Estou pegando um café na entrada da pousada e vejo um instrumento do tamanho de um cavaquinho amarrado por quatro cordas de náilon. É uma violinha feita de buriti, uma espécie de palmeira, madeira típica da região. Começo a dedilhá-la, produzindo um som sofrível. A dona da pousada diz que foi produzida por um artista local, chamado Coque, que também toca violão. Não chamaria tanta atenção se não fosse por um detalhe: ele é aleijado. Da mão direita. Sim, um artesão-violeiro de mão esquerda.

Coquelino Soares Cardoso, filho da própria Natividade, nasceu em 1958 e foi vítima de paralisia infantil aos três anos de idade. Aos 16 anos, ignorando a reprovação da própria família, construiu o seu primeiro violão e ensaiou em acordes disformes seu pioneirismo. "Quer viola pra quê? Nós com duas mãos não tocamos. Você, com uma, vai tocar?", diziam. Solitário, prosseguiu em seu sonho e se tornou um autodidata no instrumento. Além do violão, ele hoje divide seu tempo entre modestas vendas das violinhas de buriti e seu sustento, cortando lenha e afiando serrotes e facas.

Despertados por uma atroz curiosidade, saímos à sua procura. Chegando à periferia, em meio a uma vizinhança quase medieval e envolta por terrenos baldios de um mato implorando por um cortador de grama, vemos uma casa de adobe de dois cômodos, sem janelas ou qualquer iluminação. Só um fogão, duas camas e uma cômoda entulhada de quinquilharias para contar a história. O anfitrião chega para nos receber. "Eu ia sair, mas um anjo veio me avisar que vocês vinham e que era pra eu ficar em casa", disse ele, com um sorriso tímido. Sentados em banquinhos improvisados no quintal, Coque começa nos falando sobre ele, sobre suas origens e de suas dificuldades para ganhar a vida. "Da madeira agora está mais difícil ganhar dinheiro, porque pouca gente hoje tem fogão à lenha", explica. Chegamos aos instrumentos de buriti. Ele nos mostra alguns itens e nos vende dois a módicos 5 reais cada. Enquanto ele enrola um cigarro de palha em sua própria coxa a uma velocidade quase industrial, perguntamos sobre o violão e oferecemos uma cachaça da região como presente. Seus olhos alcoólatras vibram cintilantes. Ele vira a primeira dose e, já de cigarro na boca, começa a tocar.

Pela primeira vez na minha vida estou duvidando dos meus olhos. Seu violão de 10 cordas ― afinadas de forma bastante pessoal ― emanam um som denso, com influências calcadas em violeiros sertanejos, mas de estilo único. Sempre guiado pela melodia, a interpretação para cada música tem sua marca própria. "O menino da porteira", de Sérgio Reis é a sua preferida. Entre uma música e outra de seu modesto repertório, vira uma dose de cachaça como se estivesse abastecendo. Você deve estar se perguntando como ele faz para tocar só com a mão esquerda. Digitando as notas com os dedos, o mindinho lhe serve como "palheta". É dele que saem os acordes. Enquanto isso, do outro lado, sua acanhada mão direita apenas repousa, imóvel, um mero suporte para manter o violão bem apoiado. Ao tocar, o que seria a sua "mão direita" é, na verdade, o dedo mindinho da mão esquerda.

Ainda em estado de hipnose, pergunto a ele quais são suas influências musicais. Uma pergunta estúpida e ao mesmo tempo pertinente. Não há aparelho de som em sua casa, não há TV, nem mesmo energia elétrica, nada. Nenhuma fonte musical em que ele possa beber num raio de quilômetros. Excetuando-se por nomes óbvios como o do próprio Sérgio Reis, a resposta vem em tom prosaico: ele "tira" sons de jingles que ouve de comerciais em televisões ligadas na vizinhança e pratica em cima de melodias que "grava" em sua cabeça e de músicas que ouve no radinho do botequim onde joga sinuca e se embebeda com os amigos.

Depois de algumas horas, vamos embora, e sinto um misto de felicidade, por ter conhecido essa figura tão genuinamente brasileira, e frustração, por não poder fazer nada por ele a não ser contemplar seu talento e rezar para que algum produtor musical visionário o descubra. Sonhando em um dia ver um CD de Coque encontrar a luz do dia, entro em parafuso tentando encontrar meios de lapidar esta pedra preciosa, que, embora calejada, paradoxalmente ainda se encontra em seu estado bruto. Meu consolo era que estaríamos de volta a Natividade dentro de dois meses. E, quando eu voltasse, teria de trazer alguma solução para essas inquietações.

* * *

Voltamos. Agora é agosto e o calor insistente castiga. O trabalho social flui bem, mas a ansiedade é grande. Ao pôr do sol, enfim, rumamos para a estradinha de terra que nos leva à casa de Coque. Desta vez eu estava preparado. Ele, sim, teria surpresas. Ao contrário da primeira vez, hoje são mais de trinta curiosos, e estão todos querendo acreditar no que eu lhes contara. Entre os voluntários da equipe, médicos, engenheiros, advogados, dentistas, fotógrafos e uma equipe de televisão, que registra cada grão de poeira.

Coque demonstra certo nervosismo, afinal não é de sua rotina receber tanta gente, mas se mostra satisfeito com a nossa presença. Simpático, conversa com todos e acaba por vender quase todas as suas violinhas de buriti, que a partir daquele dia têm seu preço inflacionado em 100%. Agora custam ainda módicos 10 reais. Até mesmo violinhas inacabadas foram vendidas. Antes que todos se acomodassem (no chão), descemos de nosso caminhão 10 cestas básicas para ajudar Coque e sua família... Ele costuma receber seus irmãos para almoçar eventualmente.

Hora do show. Um grande círculo se forma à sua volta num clima intimista, típico de shows acústicos. Logo na primeira nota, ele coloca o pequeno público na palma de sua mão esquerda, que circula desenvolta pelo braço do violão, conquistando todos os olhares. Revisitando seu repertório básico, Coque faz cada acorde se materializar em um sorriso. Na noite escura, a única iluminação de seu quintal transformado em palco vem do equipamento do cinegrafista e dos constantes flashes das câmeras fotográficas. Todos queriam uma lembrança daquele momento. O gran finale vem triunfal, em uma versão de "Asa branca", de Luis Gonzaga ― tocada em dueto violão-violino com um integrante da equipe, que é músico. Arrancando aplausos em meio à apoteose, Coque curte, sem devaneios, aquele breve momento estelar. Sabia que, horas depois, seria devolvido ao ostracismo.

Todos satisfeitos e com suas curiosidades devidamente saciadas, é hora de surpreendê-lo. Só um artista entende outro artista. Em um país como o nosso, as dificuldades de se viver de arte não são poucas. Mesmo sendo artista de outras paisagens e de viver a realidade de outro Brasil, eu podia enxergar todo o sofrimento de Coque. Sofrimento de não poder desenvolver o divino dom que quase lhe tiraram, de ter de viver às voltas com a pobreza e todas as limitações que ela impõe. Sofrimento em saber que os únicos prazeres que ele pôde desfrutar até hoje estão no violão e que sua única e inseparável companhia durante todo esse tempo foi a bebida. Mais do que enxergar, eu sentia que devia isso a ele.

A única coisa que eu poderia fazer naquele momento era ajudá-lo a aumentar seu repertório, influenciá-lo de alguma forma. Por mais singelo que isso possa parecer, partiu de uma constatação óbvia: todo grande músico tem seu estilo formado por influências musicais vindas desde a juventude. É a partir daí que ele treina o ouvido e desenvolve o próprio gosto musical. Eu precisava recuperar todo esse tempo em que ele não ouviu música, ou pelo menos tentar atenuar todas essas décadas de não-audição. Como a eletricidade chegaria dentro de poucos meses à sua casa, incluímos no orçamento da ação social um aparelho de som portátil e eu tomei a iniciativa de gravar 10 CDs de música, com um repertório que ia de Almir Sater a Michael Hedges. Fiz também uma pequena reforma em um velho violão de seis cordas que estava encostado desde a minha adolescência e fui à Rua Teodoro Sampaio ― a 25 de Março dos músicos e aspirantes a músicos ― em busca de cordas, palhetas de dedo e outras quinquilharias para dar um tom mais musical à sua cômoda entulhada.

Do pouco que fizeram por Coque até aquele agosto de 2005, fico feliz de ter lhe proporcionado um horizonte musical um pouco maior. Hoje, dois anos depois, ainda tenho vivo em minha memória cada detalhe desses dois encontros. Penso que um dia o destino ainda poderá corrigir essa terrível falha e mudar sua trajetória. Ainda imagino que ele possa se tornar uma nova versão de Helena Meireles, a "Dama da Viola". Coque e "Dona" Helena possuem as mesmas peculiaridades da vida interiorana de realidade hostil: ambos, apaixonados e influenciados pela viola caipira, tiveram o autodidatismo oriundo da falta de apoio da família e são vítimas do talento inóspito. Foram necessários 69 anos para que "Dona" Helena fosse descoberta. Hoje já não podemos mais contar com sua genialidade, mas ainda há tempo para que o Brasil descubra a mágica mão esquerda de Coque.

Nota do editor
Trechos dessa coluna estão no livro Caminhos de um Brasil solidário.

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Diogo Salles
São Paulo, 13/6/2007

 

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