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Quinta-feira, 7/10/2010
Dentes usados, dentes guardados
Vicente Escudero

Lá pelos idos de 2001, um pouco antes dos ataques ao World Trade Center, fui presenteado por um inconveniente quarteto de dentes do siso que nasceram com o único fim de impedir que eu mastigasse e fechasse a boca corretamente. Dois dias depois de muita comida de bebê marquei uma consulta com o dentista para extração dos intrusos. Seriam dois dias sob o ataque daquelas pequenas ferramentas de guerra de Lilliput, um breve purgatório para eu nunca mais esquecer a importância de escovar os dentes diariamente, ou melhor: de evitar a visita ao dentista de qualquer forma.

Guardo esses dentes até hoje numa pequena caixa. Espólio de guerra. Custaram-me seis horas deitado na cadeira do consultório, numa terça-feira nublada que só não foi pior porque a coleção de revistas na sala de espera do dentista era repleta de edições da Bravo! e da The Atlantic. Eles têm a aparência de vírgulas com quase três centímetros de comprimento e, assim como o sinal de pontuação, separam dois períodos bem distintos da minha vida.

Tudo correu quase como previsto. Depois de mais de duas horas extraindo os dentes superiores, o dentista sugeriu que eu poderia retirar os dois inferiores no mesmo dia, pois o paciente do horário seguinte havia cancelado a consulta. Ok, fiquei feliz por acreditar que a dor estaria acabada quando estivesse na cama à noite. Minhas exigências foram uma pausa de quinze minutos para descansar um pouco e que ele trouxesse uma das revistas da sala de espera.

E ele pegou uma Bravo!. Depois de ler o índice, fui direto na coluna do Sérgio Augusto. Lembro-me de dois detalhes desse texto: ele falava algo sobre seu pai, que sempre respeitou todos da mesma forma, independentemente do nível social, e citava a dificuldade dos jovens em seguir este ensinamento. Daí em diante foram mais quatro horas de sofrimento. Mesmo com o ar-condicionado ligado, suei bicas. Lembro-me da minha camisa ensopada ter ido direto para a lavanderia quando cheguei em casa. E de ter procurado o texto do Sérgio Augusto na internet.

Foi aí que encontrei o Digestivo. Durante a pesquisa no Google, surgiram cinco ou seis referências ao Sérgio Augusto no Digestivo Cultural. Quando fui perceber, já estava lendo colunas sobre assuntos completamente desconectados da busca. No mesmo dia, o site havia sido incluído nos meus favoritos. Eu estava terminando o segundo ano do curso de Direito e havia descoberto um lugar onde as pessoas falavam sobre aquilo que me interessava da forma como eu gostava. Literatura, música, cinema, artes, um pouco de política, muita internet e crítica ao establishment cultural, político e cívico do país. Continuei leitor silencioso por muito tempo, até 2007, quando o senhor Julio Daio Borges caiu de paraquedas no meu blog, disse que havia gostado disto aqui e me convidou para ser colaborador do Digestivo. Daí em diante, a confusão entre leitor e escritor se instalou em definitivo do lado de cá da tela do computador.

Este ano o site completa dez anos, e a maioria das minhas lembranças deste período passa por uma estrada que também é percorrida até hoje pela maioria de seus colunistas e colaboradores. Em outras ocasiões, quando o site comemorava três, cinco e sete anos de vida, muitos dos que escreveram aqui fizeram questão de dizer que não eram intelectuais, não eram jornalistas, tinham apenas a pretensão de dividir um punhado de ideias com o leitor. Embora um pouco rebelde, a ideia de alguém que se dedica a escrever e a ler intensamente, com espírito crítico, mas negando o sentimento de classe, representa com clareza a impressão negativa, o estrago que a vida intelectual acadêmica e o repetitivo jornalismo cultural deixaram em muitos de seus alunos e leitores. E o Digestivo tem contribuído muito para diminuir esta distância imposta entre o leitor e o livro, o cinema e a plateia, a cultura e o cidadão, sem abrir mão da qualidade e sem a pretensão de tentar impor qualquer criação.

Um espaço plural. E muito profissional. Toda a estrutura do site é automatizada, cada colunista e colaborador acessa e atualiza seu conteúdo sem dificuldades, comentaristas e parceiros têm seus espaços. É a internet 2.0 funcionando a todo vapor. Quem imaginaria toda essa longevidade de um site colaborativo brasileiro que trata, justamente, de cultura, enquanto as publicações impressas e suas réplicas digitais tentam desesperadamente encontrar um novo modelo de negócio?

Participar do Digestivo, ao mesmo tempo, ratificou a impressão negativa que sempre tive do mundinho literário e intelectual que de tempos em tempos tenta se apropriar dos escassos espaços disponíveis no país para a cultura e me aproximou bastante de algo muito melhor, menos artificial, de ideias mais arejadas e sérias, pessoas comprometidas com as próprias opiniões e não com uma ou outra organização. E isso não é pouco, diante da pobre realidade cultural do país.

E nestes 10 anos o site caminha. A passos justos, nem curtos nem largos, com os ajustes necessários para se adaptar a cada novo Twitter prestes a surgir. Se existe um sentimento que reflete a minha sensação de participar desta história, este é a gratidão. A gratidão, que é a memória do coração, nas palavras de Antístenes. Como os dentes inconvenientes, as impressões negativas de dez anos atrás hoje não passam de memórias guardadas numa caixa qualquer, esquecidas no fundo de uma gaveta.

Vicente Escudero
Campinas, 7/10/2010

 

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