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Sexta-feira, 8/4/2011
Somos todos consumidores
Marta Barcellos

― Obrigada, mas odeio promoção.

― A senhora nem gostaria de conhecer as vantagens?...

― Não gosto de levar vantagem. Prefiro pagar caro ― respondo. Não fosse o risco de prolongar a conversa, eu acrescentaria: Não acredito mais em almoço grátis.

Já acreditei, confesso. Penso mesmo ter almoçado de graça, algumas vezes, por conta da camaradagem de quem não contabilizava aquilo como investimento. Mas isso foi antes de todos fazermos parte de bancos de dados gerenciados por softwares de última geração, antes de os relacionamentos serem agrupados em redes de influência, antes de sermos primeiro consumidores e depois cidadãos.

É verdade que dá para ser um consumidor mais, ou menos, esperto. Veja o exemplo da internet. Se você souber usufruir da gratuidade sem entupir a sua caixa postal de spam, nem infectar o computador com o vírus que rouba a sua senha bancária, o almoço sai quase de graça.

Quase porque, de qualquer forma, terá que investir o seu tempo (dinheiro?) para manter a expertise de não desperdiçar o seu tempo (dinheiro?) com propaganda indesejada. Se você trabalha o dia inteiro no computador, e ainda por cima na área de tecnologia, não há desperdício nisso, mas se for um acrobata de circo ou cirurgião plástico, o almoço na internet pode sair caro e desagradável.

Mas deixemos a internet de lado, para não parecer implicância, pois já falei aqui da minha desconfiança de que ela não seja isso tudo. Passemos a uma situação de compra corriqueira, off-line, da qual você, uma vez nascido consumidor, numa sociedade eminentemente de consumo, não pode fugir, mesmo se fizer o estilo frugal ou consciente. Na hora de pagar por um produto ou serviço (até um corte de cabelo), lhe pedem o CPF. Um cadastro abre-se na tela do computador do lado de lá e a mocinha do caixa, como quem não quer nada (só quer você, o consumidor), começa a lhe pedir "alguns dados". Endereço. Ok, ninguém mais gasta dinheiro enviando papel pelo correio. Telefone da residência. Ok, a empregada está acostumada a despachar o telemarketing. E-mail. Juro que não tenho. Celular. Por acaso (?) está na minha mão. Preciso mesmo dar o número? Ok, cedo.

Sábado, 9h35 da madrugada, o telefone toca.

― Oi, Marta! Aqui é a Priscila, da Folic!

― Quem?

― Priscila, da Folic!

― Ahn.

― Estou ligando para avisar que a nossa liquidação continua!

Quem mandou fazer cadastro em butique para acumular pontos? Aliás, por que diabos as pessoas agora vivem para juntar pontos? Lembro da cena de O amor sem escalas em que George Clooney é saudado no avião por ter batido um recorde de milhas e atingido, assim, o objetivo de sua vida. O mesquinho que antes juntava dinheiro no colchão poderia ter sua imagem substituída pela do cliente que soma pontos no cartão fidelidade. Para continuarmos no cinema, Marilyn Monroe diria hoje que o cartão diamante é o melhor amigo de um homem.

Voltando à lição de sábado, mesmo quem não sonha com diamantes precisa aprender que o preço de ser um "cliente fidelidade" é acordar com o celular exigindo novas compras. Mas digamos que você não se considere cliente, muito menos fiel. Odeia shopping center. Não preenche cadastro de loja nem sob tortura. Afinal, não é uma mulherzinha consumista, repudia quem tem mais de três pares de sapatos e só corta o cabelo em casa. Não adianta. Também aqueles sem o tal poder aquisitivo, ou que abriram mão dele em busca de outro tipo de poder (o do conhecimento?), correm o risco de passar o dia recusando "ofertas" especialmente selecionadas para o seu CPF ou número de telefone. É como ser um vegetariano tentando apreciar saladas em churrascaria rodízio. Não, obrigado, não.

― Senhora Marta, esta ligação é para informar a senhora que a Vivo vai reduzir as suas tarifas nos fins de semana.

― Sei... E o que eu preciso fazer em troca? Não quero mudar de plano, não quero contratar nenhum "pacote" e já me aborreci com uns "pacotes" que vocês enfiaram na minha conta no ano passado.

― A senhora não precisa fazer nada. Apenas concordar na redução de tarifa nos fins de semana. Gostaria de informar a senhora que esta ligação está sendo gravada.

― Olha, não gosto de promoção, não gosto de levar vantagem...

― Mas a senhora não gostaria de estar reduzindo as tarifas nos fins de semana? É uma iniciativa da Vivo para clientes especiais como a senhora. Gostaria de lembrar à senhora que esta ligação está sendo gravada.

― Ok, tudo bem, pode reduzir a tarifa. Mas não inventa nada na minha conta, tá?

― A Vivo agradece a sua atenção, senhora, e uma boa tarde para a senhora.

Apesar da interrupção, consegui avançar no livro, e à noite comentei o quanto havia sido dura com a atendente da operadora. Estava com aquele peso na consciência que temos depois de explodir com uma ligação de telemarketing, esquecidos de que aqueles trabalhadores, afinal, são os operários dos novos "tempos modernos". Coitada da moça, retrucou o meu interlocutor, e para aumentar a minha culpa citou uma reportagem que lera sobre a redução de tarifas de telecomunicações, motivada pela concorrência entre as empresas. O almoço estava ficando mais barato.

Deixei a culpa pra lá, porque afinal culpa combina mais com a época em que éramos primeiro cidadãos e depois consumidores, e não o contrário. No dia seguinte, quando o torpedo apitou, levei alguns segundos antes de começar a espumar: "Parabéns. Você adquiriu o pcte fim de semana 50min no valor mensal de R$19,90" (sic).

Às vezes penso em virar hippie. Morar no meio do mato, abdicar dos bens materiais, ignorar os avanços da tecnologia, acender um incenso. Mas aí me lembro que a década de 70 acabou faz tempo. Melhor respirar fundo e repetir o mantra: não existe almoço grátis, não existe almoço grátis, não existe almoço grátis...

Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 8/4/2011

 

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