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Quinta-feira, 5/5/2011
Sidney Lumet, invisível
Vicente Escudero


Paul Newman, Sidney Lumet e Roxanne Hart no set de filmagens de O Veredicto

É no mínimo injusto considerar que um diretor de cinema como Sidney Lumet não tenha sua genialidade reconhecida por não ter criado um estilo próprio, capaz de identificá-lo. Não teria sido esta sua maior qualidade? Nesta época de diretores que prestam homenagens a filmes sem nenhum valor artístico ou moral, trabalham roteiros cada vez mais clichês e emprestam idéias sem o menor pudor, torna-se quase obrigatório valorizar um diretor que trabalhou para apresentar os conflitos de idealistas ordinários contra a realidade, muitas vezes perversa, do mundo. Neste sentido, é possível dizer que a arte de Sidney Lumet foi muito mais reveladora da condição humana do que estética criadora.

Segundo Paul Newman, em entrevista sobre os bastidores de O Veredicto (1982), Sidney Lumet exigia que todos atores ensaiassem livremente, incentivando as improvisações para aumentar a espontaneidade durante as gravações. Depois das preparações, as cenas eram gravadas, no máximo, em duas tomadas. Além da aprovação dos atores que não se sentiam perdidos dentro do roteiro e no set de filmagens, esta pequena exigência, aparentemente retrógrada e contrária a qualquer resultado espontâneo, acabava resultando no domínio das cenas através da economia nos diálogos e da valorização da linguagem corporal.

Paul Newman cita como exemplo a cena em que visita a vítima em coma no hospital e, após entrar no ambulatório onde ela está conectada a diversos equipamentos que a mantém viva, senta-se numa das camas e a fotografa por diversas vezes, mudando de expressão enquanto se aproxima da cama onde ela está e compreende sua situação frágil, entre a vida e a morte. Num silêncio que dura quase dois minutos, interrompido apenas por uma enfermeira que o questiona, do corredor, o advogado alcoólatra interpretado por Newman deixa toda a confiança que trazia desabar sobre os ombros, curvando-se, sentado, demonstrando perplexidade pelo sofrimento da vítima. Ele pressiona o colchão, levanta-se e começa a fotografá-la, hesitante, enquanto se aproxima apontando a câmera Polaroid, lentamente, cada vez mais.

O silêncio do personagem de Paul Newman é acompanhado apenas pelo barulho do respirador artificial, ligado ao pescoço da paciente, e sua expressão facial, cada vez mais tensa, acompanha cada sopro de vida inalado artificialmente por ela, mesmo quando assopra a foto para revelar a imagem. Em apenas dois minutos, as expressões e gestos do ator revelam todo o conflito moral entre o possível lucro que poderia ter com o encerramento antecipado do processo através de um acordo e sua esperança de levá-lo a julgamento, para tentar punir os causadores do erro médico.

Al Pacino, protagonista de outros dois grandes filmes dirigidos por Sidney Lumet, também incorporou a economia exigida pelo diretor na intepretação dos personagens. Em Um Dia de Cão (1975), como também em Sérpico (1973), sobram cenas longas e sem interrupções em que seus personagens revelam as personalidades esticando um elástico, lavando uma panela para dar água a um cachorro ou descansando, exaustos, num local qualquer.

Em Sérpico, dois momentos chamam a atenção. No primeiro, Sérpico (Al Pacino), está na banheira com a namorada, Leslie Lane, quando ela começa a insinuar a intenção de se casarem, dizendo que pretende mudar para o Texas com um homem que havia conhecido numa festa. As falas de Leslie se arrastam e não chegam ao clímax; Sérpico desarma suas intenções sem dizer nenhuma palavra, apenas passa a esfregar a esponja pelo corpo cada vez mais lentamente, fazendo com que Leslie mude o rumo da conversa até abrir o jogo, revelando que só permanecerão juntos se casarem.

No segundo exemplo da genialidade construtiva do diretor, Sérpico lidera um grupo de investigadores na captura de traficantes em um prédio nos subúrbios de Nova York, mesmo alertado de que poderia ser abandonado para morrer pelos novos parceiros, depois de ter delatado o esquema de corrupção dentro da polícia. Sérpico e outros três investigadores aguardam do lado de fora, dentro do carro, observando o sinal de um informante que sinalizaria aos policias quando deveriam começar a agir.

O diretor usa tomadas longas, aproveitando-se da tensão vivida pela relação entre os policiais dentro do carro. Sérpico não consegue disfarçar o constrangimento da situação, evita qualquer contato visual com os parceiros que o tratam com desdém e respondem suas perguntas com grunhidos.

Quando a ação policial começa, os policias chegam ao apartamento onde está o traficante, abrindo caminho para que Sérpico bata à porta. Num espanhol arrastado, ele consegue convencer o morador a abri-la. Seus parceiros se escondem no corredor enquanto Sérpico tenta entrar pela fresta aberta e vencer a resistência do traficante que já o identificou como policial. Sua mão segurando a arma fica presa, esmagada entre o batente e a porta. Nenhum dos policias o ajuda. Quando ele consegue se soltar, é atingido por um tiro no rosto, disparado pelo traficante de dentro do apartamento.

Caído no chão, seus parceiros o observam e atrasam a chamada da ambulância pelo maior tempo possível, esperando sua morte. Sem dizer uma palavra sequer, os policias trocam olhares incisivos entre si, sem piscar, esperando que alguém tome a iniciativa de matá-lo ou chamar o socorro. No cinema policial atual, toda esta ação não chegaria ao seu ápice sem um punhado de discussões inúteis, palavrões e alguns socos.

Sidney Lumet foi o diretor que não se rendeu à narrativa fragmentada da atualidade, nem aos excessos de significados. Foi o Balzac do cinema, levando todos os detalhes de interpretação dos atores ao extremo e revelando a condição humana de fracassos e sucessos através do realismo de personagens singulares. Seus homens e mulheres nunca deixaram de apresentar suas personalidades, reveladas com a ajuda do talento criativo do diretor. Vai fazer falta, afinal, é muito mais difícil representar a realidade humana do que criar um universo particular.

Vicente Escudero
Campinas, 5/5/2011

 

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