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Segunda-feira, 30/3/2020
Minha biblioteca de sobrevivência
Julio Daio Borges

Por que a gente monta uma biblioteca? Certamente não é porque se espera um momento de pandemia (para ler).

A minha - como acho que a da maioria - foi sendo montada, organicamente, ao longo da vida. Livros que eu queria ler; livros que eu já tinha lido e queria reler.

Nesta fase em que as pessoas estão meio perdidas, tentando manter sua rotina. Ou, simplesmente, procurando alguma coisa para fazer - que não seja acompanhar o noticiário -, resolvi falar dos livros que guardei. Quem sabe, estimulo alguém a ler.

Fiquei pensando em como descreveria a minha biblioteca. Pelos autores, ao longo do tempo? Começando pelos antigos e indo até os contemporâneos? Com certeza não seria começando em ordem alfabética... Também, não, por editora. Por assunto, então?

Concluí que a melhor forma era tentar reconstituir a minha biblioteca por ordem de aquisição, explicando como foi sendo formada. Assim, conseguiria organizar melhor o texto na minha cabeça e ir justificando as escolhas.

Biblioteca, eu acho que a gente começa a formar quando tem um impulso de adquirir livros por conta própria, independente da biblioteca da família e, também, das leituras obrigatórias, sejam as da escola, as da faculdade ou as de trabalho.

O início da minha biblioteca tem muito a ver com o fato de que eu descobri que sabia escrever no ano do cursinho e fui cursar faculdade de Engenharia.

Enquanto me ocupava com as matérias da Poli, continuei lendo e escrevendo. E, dessa época, destacaria os livros do Rubem Fonseca, que devorei, desde “O buraco na parede” (1995) até “Os prisioneiros” (1963), passando por “Lúcia McCartney”, “O caso Morel” e “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos” (cito aqueles de que gostei mais).

Mais tarde, nos primeiros anos do Digestivo, lembro de “A Confraria dos Espadas” (1998), sobre o qual escrevi e o Rubem Fonseca me respondeu com um telegrama, também “Pequenas criaturas” (2002). Guardei para um futuro, que pode ser agora, “O Selvagem da Ópera”, “O Doente Molière” e “José”, o mais próximo de uma autobiografia.

Da mesma época da faculdade, é a minha coleção da produção jornalística do Nélson Rodrigues, pela Companhia das Letras, com organização do Ruy Castro. Começando com “O óbvio ululante” (1995), o primeiro que me fisgou, até “O remador de Ben-Hur” (1996), passando por “A vida como ela é...” e “A menina sem estrela”, seu livro de memórias.

Li todos os onze volumes, com exceção das crônicas esportivas, que não me interessavam tanto, e de “Asfalto Selvagem”, que guardei para depois. Li os volumes da Suzana Flag também, quando Nélson escrevia como se fosse uma mulher.

E li todo o teatro, ou acho que li, graças ao volume da Nova Aguilar, que ganhei da minha namorada, quando me formei. O teatro do Nélson, como se sabe, é uma monstruosidade, e eu destacaria “Álbum de família”, “Viúva, porém honesta” e “Os sete gatinhos” (cito as peças que mais me marcaram, em vez de citar as mais óbvias).

Dessa mesma época de formação, digamos assim, eu citaria os livros do Paulo Francis, que eu lia religiosamente, no jornal, às quintas e aos domingos. “Waaal” (1996), que eu já li, reli, “tresli”, como ele diria. Também “Trinta Anos Esta Noite” (1994) e “O afeto que se encerra” (1982), livro de memórias.

Por incrível que pareça, nunca li a ficção do Paulo Francis, nunca engrenei. Nem li as compilações que a Folha lançou, pelo selo Três Estrelas, com artigos dele dos anos 70. Mas estão, aqui, à minha espera.

Do Nélson e do Francis, eu queria passar às minhas coleções do Book of the Month Club, ao qual eu me associei, nos anos 90, porque era barato - quando um real valia um dólar - e para ler em inglês.

Editado pelo BOMC, tenho, por exemplo, toda a obra da Jane Austen, que permanece intocada, bem como toda a obra de Hemingway, de quem li “Adeus às Armas”, sobre a Primeira Guerra, e os contos, onde ele foi um mestre, em língua inglesa, durante o século XX.

Tenho, ainda, os romances de Henry James e uma coleção de psicanálise/ psicologia, com o irmão dele, William James, também Freud e Jung. Um volume para cada um, com seleções dos principais textos.

Freud, confesso que já tentei ler de muitos jeitos... Tentei “A Interpretação dos Sonhos”, li arrastado “O mal-estar da civilização”, tentei até as palestras e os ensaios, tentei em outras línguas e traduções, mas, nada. Concluí que prefiro “ler *sobre* Freud” a “ler Freud”.

Três coleções de banca que foram muito importantes para mim e que eu fui comprando na época da faculdade, a R$ 9,99 cada volume: “Mestres da Literatura Contemporânea” (praticamente século XX), “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa” e “Imortais da Literatura Universal”.

Da primeira, cito Saramago, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, Jorge Amado, “Dona Flor e seus dois maridos” (que contraste) e “Lolita”, de Nabokov, que eu li, na época, e que me impressionaram. Mas tem Graham Greene, que eu também tenho pelo BOMC, e Norman Mailer, que eu ainda quero ler.

Da segunda coleção: mais Saramago, Jorge Amado, também Guimarães Rosa, que eu tenho em diversos formatos, e João Ubaldo Ribeiro, que eu prefiro ler pela Nova Aguilar. E da terceira coleção: “Ana Karenina”, que eu li na faculdade, “Os Irmãos Karamázov”, que eu li na Bahia (sim, em Trancoso), e “As Relações Perigosas”, uma aula sobre amor e relacionamentos.

Nesse embalo, comprei, ainda, uma coleção de Machado de Assis, com as obras completas. A poesia dele não me impressiona, nem o teatro. Acho interessante a parte jornalística e a crítica. Mas acabo preferindo, mesmo, os contos e os romances da fase realista.

Mesmo tendo lido Machado na escola, por obrigação, fui descobri-lo na faculdade, com “O Alienista”, que tem tudo a ver com esta nossa época de prender (e soltar) as pessoas, e “Quincas Borba”, que eu li despretensiosamente, e me encantei com a Sofia, sabedoria, segundo os gregos e um professor meu de literatura.

No embalo do Machado, adquiri uma coleção do Érico Veríssimo, mas li pouca coisa. “Olhai os lírios do campo”, para mim, é mais um bom título do que um bom livro. Não li “O Tempo e o Vento” inteiro, talvez devesse, preferi ficar com a boa impressão de “Um certo capitão Rodrigo” (ainda da escola). Folheei “Incidente em Antares”, as memórias e sua história da literatura. Hoje, ollhando, me chamou a atenção uma biografia romanceada da Joana d’Arc (quem diria).

Um pedaço significativo da minha biblioteca são os livros em francês, que adquiri principalmente quando fui estudar a língua em Paris. Óbvio que privilegiei os autores da França, desde os românticos como Victor Hugo e os Dumas até gigantes como Balzac, Flaubert e Proust.

A propósito, estou no terceiro volume da “Recherche”, mas leio a tradução que poetas como Drummond e Quintana fizeram, pela editora Globo. Proust é daqueles autores que te ensinam a escrever na sua própria língua (eu não teria como ler em francês diretamente).

Saindo um pouco da literatura, tenho muitos livros de filosofia em francês. Ou porque comprei, como Rousseau e Voltaire, ou porque o Tio Papi, meu tio filósofo, praticamente um francês, me mandou, como Hannah Arendt e Hegel.

Estudei alemão, mas só três anos (não o suficiente para ler, quero dizer). Tio Papi me mandou os Irmãos Grimm, mas não me aventurei. Me mandou, também, a poesia de Trakl, o amigo de Wittgenstein. (Aliás, este é mais um que li mais “sobre ele” do que “o próprio”.)

Em espanhol, castelhano, por incrível que pareça, não tenho muita coisa. Apesar de que foram leituras marcantes. Minha primeira foi “Cem Anos de Solidão”, em que me embrenhei e li em uma semana. “Dom Quixote”, numa praia, em 2009, é o melhor romance que já li. E Borges - que terminei em português, quando a Companhia das Letras relançou.

Ainda me esperam “La Rayuela”, de Cortázar, “El Laberinto de la Soledad”, de Octavio Paz, e um Roberto Bolaño, que, para mim, é o maior contemporâneo, em língua espanhola, depois de García Márquez (eu prefiro o Vargas Llosa ensaísta ao ficcionista).

Através do Digestivo, eu recebi um sem número de livros. Algumas editoras nos mandavam tudo, como Companhia das Letras e Grupo Record, por exemplo. Com Globo, Grupo Ediouro, Intrínseca, Campus Elsevier (entre outras), tivemos parceria. Sobre as demais, valia o seguinte: eu podia solicitar o livro que quisesse, elas me mandariam.

A maioria, eu passava pra frente, era impossível ler tudo. Se eu separasse um livro por dia, para mim, seriam trinta livros no final do mês. Enviávamos caixas, aos colaboradores, para que resenhassem (afinal, era isso que as editoras queriam de nós).

Afora as resenhas, o Digestivo remunerava os colunistas com livros. Também sorteávamos livros entre os leitores. E ainda sobravam muitos, que ninguém queria ler, e que eu desovava na Estante Virtual. Foi aí que eu descobri o e-commerce, que me levou até aqui.

Enfim: mesmo com esse movimento todo, de leituras, resenhas e até vendas, minha biblioteca, hoje, é resultado, também, dessa fase.

Tenho, praticamente, as obras completas desde os mestres como Ruy Castro, Sérgio Augusto e Millôr Fernandes, até os meus pares, e admirações, como Daniel Piza, Luís Antônio Giron e Ricardo Alexandre.

Fora os colunistas que já eram autores, ou se tornaram mais ainda, como Ana Elisa Ribeiro, Luís Eduardo Matta, Paulo Polzonoff Jr. (entre tantos outros).

Contudo, a fim de não esgotar a paciência do leitor, vou tentar concluir, agora, indicando para onde eu acho que a minha biblioteca está indo.

Quando saí do dia a dia do jornalismo cultural, com o Portal dos Livreiros - e me senti menos obrigado a ler, e a comentar, tudo o que estava sendo lançado -, resolvi me dedicar aos clássicos, que eu achava que havia lido pouco, ou quase nada.

Por uma dessas confluências da vida, esse momento coincide com o início da coleção da Penguin Companhia, através da qual eu li, e sempre cito, Homero, pela tradução do Frederico Lourenço, Ovídio, Montaigne e Goethe (entre outros).

Graças a esses, cheguei a Virgílio, por exemplo. Tenho Horácio, mas não engrenei. Em compensação, li a primeiro biografia de Fernando Pessoa e estou conseguindo ler as obras completas dele.

Considero que descobri a poesia graças a “Alguma Poesia”, do Drummond, e a “O Guardador de Rebanhos”, do Alberto Caeiro. Só ano passado concluí a leitura de todo Álvaro de Campos. E o Ricardo Reis só fez sentido, para mim, porque eu passei pelos romanos.

De um livreiro do Portal, adquiri, a um preço imbatível, as obras completas de Murilo Mendes, depois as da Cecília Meireles. Qual é o maior poeta brasileiro no século XX? Não tenho uma resposta definitiva ainda, mas desconfio que seja Vinicius de Moraes, porque ele realizou a travessia.

Meu ideal, hoje, é a Loeb Classical Library. Se um dia eu tiver a biblioteca deles, de gregos e de romanos, e conseguir ler a maior parte, poderei dizer que, como leitor, missão cumprida.

Termino, aqui, deixando lacunas e cometendo injustiças, evidentemente, pois não existe biblioteca perfeita, nem, muito menos, leitor perfeito.

O que eu acho importante, neste momento em que nossa civilização está em xeque, é não perdermos contato com o que nos faz humanos.

E, para mim, muito do que nos faz humanos está... nos livros! E a literatura, claro, é a melhor história de nossas vidas.

P.S. - Peço desculpas, antecipadamente, pelos erros de digitação. Escrevi andando, percorrendo a minha biblioteca, e devo ter errado alguma coisa.

P.P.S. - Ah, e se você quer comprar, já sabe onde ir, né? Portal dos Livreiros ;-)

Julio Daio Borges
São Paulo, 30/3/2020

 

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