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Quinta-feira, 25/1/2018
Os Doze Trabalhos de Mónika. 10. O Gerador de Luz
Heloisa Pait

Leia a primeira aventura de Mónika, À Beira do Abismo.

Como é que a cidade de Ambaíba havia aparecido no mapa deste grande Brasil? Foi pela mão do grande Leó Szilárd, herói da Primeira Guerra Mundial, que se viu isolado junto a seu batalhão no fronte oriental quando a Rússia assinou a paz com os alemães. Voltar, não podia; era parte do tratado. Então cruzaram a Ásia toda até Vladivostok, de onde chegaram a Lima de navio e de lá, margeando a costa americana, até Buenos Aires, Porto Alegre e Rio de Janeiro, cidade na época já apaixonante.

Retornando à Europa semi-destruída e pouco convidativa, com suas revoluções e contra-revoluções, obteve a representação da AEG para vender maquinário na América do Sul e pegou um navio de volta. Estranhamente, cruzando o Atlântico pela segunda vez, já se sentia voltando. Não sabia para onde, Buenos Aires, Rio de Janeiro, ou mesmo Lima. Mas voltava, disso não tinha dúvida. Desceu em Santos, tomou o trem para a Luz, visitou compatriotas e estabeleceu-se. Com as moedas de prata do antigo império, fez um par de castiçais, que a família ainda preserva com carinho.

Vendia e instalava geradores de luz pelas fazendas do interior. Projetou pequenas barragens. Assessorou companhias elétricas familiares. E Ambaíba? Tinha sido a primeira fazenda visitada, que comprou depois de juntar certo capital. Modernizou, atraiu gentes e quando viu, já era um povoado bem razoável que merecia um prefeito, ele, o seu Leó, como o chamavam afetuosamente. Mesmo os índios, com quem tinha excepcionais relações. Até hoje, Ambaíba é a única cidade de toda a região onde o Partido Indígena tem maioria na câmara, sem dúvida legado do engenheiro húngaro.

Era na antiga casa de fazenda de Leó Szilárd, hoje um centro cultural muito bem cuidado, que os principais eventos de Ambaíba se davam. Já tinha sido prefeitura e escola. Na ditadura, base da resistência armada e, estranhamente, também centro regional do serviço de informações. Agora, a cidade tão rica podia se dar ao luxo de destinar o lugar para a cultura e os eventos sociais. Um acontecimento como o de hoje trazia não só as autoridades locais, o prefeito e a primeira-dama, o presidente da câmara e seu amante, o líder da oposição, mas também lideranças públicas e celebridades artísticas de todo o estado. Maria Auxiliadora, ela mesma, lançava em Ambaíba suas memórias.

Auxiliadora havia começado sua carreira pública na antiga Embrafilme. Vinha de uma família com enorme tradição de serviço público; seu pai havia idealizado o Departamento Oficial de Propaganda, mas com a queda de Getúlio a família enfrentou o ostracismo intelectual. Eleito em 1950, querendo se distanciar do Estado-Novo, o ditador rechaçou aproximações com seus antigos colaboradores. O pai de Auxiliadora atravessava noites arquitetando a estrutura cultural do país, enviava suas propostas detalhadas aos poderosos dos vários partidos — UDN, PTB, PSD — pelo correio ou em almoços pesados na Candelária. Já durante o dia, passeava com os cachorros pela orla e aproveitava a aposentadoria integral.

Auxiliadora cresceu nesse ambiente. O pai faleceu no dia seguinte ao Comício da Central. Casar, ela não podia, pois perderia a aposentadoria do pai. Quando houve o chamado golpe dentro do golpe, procuraram o pai da Auxiliadora para reorganizar o DIP, sem saber que ele já tinha morrido. Maria Auxiliadora colocou-se à disposição e, baseada nos rascunhos do pai, fundou a Embrafilme. A moça sempre foi muito querida por todos. Parecia pairar sobre as ideologias, ao contrário do pai, um militante. Os cineastas a adoravam, os militares a adoravam, os estrangeiros a adoravam, a esquerda a idolatrava, apenas os homens não a comiam de modo algum: nem atores, nem diretores, nem figurantes, ninguém. Talvez o nome os intimidasse, talvez sua verborragia os entediasse, mais provavelmente tinham medo de algo dar errado e o dinheiro secar.

Quando Collor fechou a Embrafilme, Auxiliadora fez como o pai: passou as noites fazendo projetos enquanto usava os dias para cuidar de si. Escreveu 7 roteiros completos de cinema com tudo o que havia aprendido no DIP, com o pai, e na Embrafilme, com os militares. Com a criação da Ancine, no governo de Fernando Henrique, o nome de Auxiliadora apareceu naturalmente para ocupar o cargo, um verdadeiro consenso. Fundamentalmente, os fundos públicos financiaram seus projetos pessoais, todos filmes experimentalmente longos, entre 5 e 7 horas, em locações de difícil acesso, lembrando na forma a obra de Tarkovski porém adaptados à cultura brasileira, avessa ao teor filosófico, à profundidade moral e à complexidade temática do diretor soviético.

Como poucos viam seus filmes nas salas de cinema, ela passou a projetá-los em telas públicas, fachadas cegas de prédios, paredes de túneis e muros altos de residências, com enorme sucesso de crítica: era o cinema integrado à cidade, rejeitando padrões comerciais e individualistas de cultura. Os cineastas todos se engajavam em suas produções, muito custosas e longas. Amavam Auxiliadora, fariam tudo por ela, iriam até o inferno pela Viúva do Cinema. Além disso, conseguiam com o equipamento, os atores e o pessoal técnico envolvido fazer meia-dúzia de longas a partir de cada produção da dedicada servidora pública. Era uma coisa abençoada mesmo. Se você observar bem, a cada ano as produções brasileiras do período têm a mesma paisagem e os mesmos atores. Muda todo o resto, a textura da imagem, a trilha sonora, chegaram até a idealizar tramas distintas, uma novidade na cinematografia nacional, fruto da necessidade.

Essa era Maria Auxiliadora. Uma verdadeira deusa. E Ambaíba teria a honra de hospedar o lançamento de suas memórias, que eram no fundo a continuação das memórias de seu falecido pai. O salão amplo e gracioso estava lindo e um buffet local havia sido contratado, servindo coisinhas gostosas e brasileiras: pequenas porções de escondidinho de carne-seca com pinga envelhecida, bolinhos de arroz-doce, broas de milho com geléia de jabuticaba por cima. Do retrato pendurado numa parede alta, o patriarca Leó Szilárd olhava tudo magnânimo, feliz com sua obra. Tinha sobrevivido à guerra e trazido o que havia de mais precioso na Europa para o interior brasileiro, a luz na forma de máquinas. Fundou uma cidade onde gentes produziam, moravam, viviam. Que mais podia querer? O sorriso irônico era obra do retratista, pois no fundo, todos sabiam, seu Léo morreu um homem realizado, amante da nova pátria e da cidade que fundou.

Mónika gostava do casarão. O centro cultural não tinha conexão com a internet, o que era uma verdadeira bênção. Vinha sempre estudar lá, sentava nas poltronas de couro do homem que, ela pensava sempre, podia ter sido seu avô. Por isso estava no lançamento. Mas não só por isso. Auxiliadora era prima de um alto funcionário do setor de emigração da cidade de Pécs que não havia criado nenhum problema durante a fuga da família de Mónica ao Brasil, e pelo qual tinham, pelo sim, pelo não, gratidão eterna, de tal modo que independentemente de gostos artísticos era sua obrigação familiar vir cumprimentar a cineasta e comprar-lhe as volumosas memórias. Esperou o salão encher, pois temia não ter assunto com Maria Auxiliadora. A livraria do centro cultural estava aberta, aproveitando que a cidade receberia leitores; Mónika folheou alguns deles e deteve-se no livro de Manuela Carneiro sobre o universo indígena nacional. Ela tinha o livro, mas ler era algo para o que hoje ninguém tinha tempo. Naquela meia hora, conseguiu avançar 50 páginas e sentiu-se culpada por ter apenas agora chegado naquele ponto da interessante narrativa.

Já que ia comprar o livro de Auxiliadora, resolveu recomprar o de Manuela, sem saber explicar por quê. Também não sabia por que acentuar o quê no final das frases, mas o fazia; nem tudo carecia explicações. Quando finalmente viu o saguão se enchendo, e o risco de ter que entabular conversa com a homenageada diminuído, entrou na fila de autógrafos. Passou então na frente de todos a diretora da faculdade de Ambaíba e enlaçou a cineasta num abraço apertado. Mónika surpreendeu-se. De onde havia surgido a diretora? De onde a intimidade? As duas mulheres riram juntas, abraçaram-se outras vezes, celebraram o reencontro, eram mesmo amigas.

Um renomado produtor de blogs enrolava sua gravata estampada e fazia gracinhas com todos. O filho de um dicionarista cumprimentava a todos com mesuras, como se sua indicação para a Comissão de Cultura dependesse da aprovação da fila de autógrafos de Ambaíba. Tinha uma bela esposa ao lado e o olhar doce de um membro da Stasi. O secretário da juventude da capital pedia absolvição silenciosa das acusações infundadas da imprensa, do ministério público, do fisco e do polícia financeira de Mônaco. Outras amigas do funcionário de Pecs falavam com os famosos e riam entre si.

Quem diria que a diretora viria no lançamento de um livro? A faculdade toda sabia que ela não lia nem escrevia, ainda que ninguém pudesse provar. A instituição tinha seus critérios, exames, classificações e mecanismos de promoção. Ler, entretanto, era algo subjetivo. Como comprovar essa habilidade, a de dar sentido a rabiscos? Não havia modo. Que prova, que exame poderia haver que atestasse suas dificuldades com as sequências alfabéticas? Haveria debates em comissões, bancas, conselhos, e nunca se chegaria a um consenso, então nem se levantava a lebre. O texto estava lá, quem afirmaria que ele dizia isso e não aquilo ou mesmo aquilo outro?

Mónika mirava a cineasta cujos filmes não eram vistos e a diretora da faculdade que não sabia escrever. Achava a amizade insólita, franziu a testa, buscou compreender. Mónika tinha esse defeito. Não deixava passar nada, tudo queria entender. Que tinha a presidente da Ancine a ver com a diretora da faculdade de Ambaíba? Que laços, que coisas em comum, que relação? Não sabia, e isso a incomodava. Será que a diretora gostava de filmes, e em especial dos nacionais, por não ter letreiros? Dos filmes de Auxiliadora, que lhe davam a sensação compartilhada de estar diante de livros grossos e misteriosos? Ou havia ali alguma relação de família, algum favor ancestral, como o que talvez a unisse ao funcionário de Pécs?

A verdade era que Mónika tinha pavor da diretora. Achava que alguém que havia conseguido se formar, doutorar, dirigir uma instituição de ensino superior sem nunca ter aprendido a ler era alguém perigoso, dono de alguma habilidade desconhecida. A cada autógrafo, deixava dois convivas passarem na frente, de tal modo que logo chegaria ao final da fila. De modo geral evitava a diretora e mais ainda em dupla com Maria Auxiliadora. Mónika era no geral corajosa, mas aquela situação a punha à prova. Deu um último passo para trás. Estava na soleira da porta do casarão de Leó Szilárd. Chocou-se contra uma parede quente e macia.

Era o tronco de um homem.

Está no ar a décima primeira aventura de Mónika, A Quatro Braçadas.

Esta é uma obra de ficção; qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência

Heloisa Pait
São Paulo, 25/1/2018

 

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