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Segunda-feira, 22/11/2010
Freedom, de Jonathan Franzen
Sonia Nolasco

Ah, liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome!

Seria incorreto dizer, como alguns críticos têm dito, que o recém-lançado Freedom, de Jonathan Franzen, é uma espécie de continuação de seu brilhante The Corrections (2001), vencedor do National Book Award de Melhor Livro do Ano, nos EUA, e que se tornou best-seller internacional. The Corrections é considerado uma obra literária de gênio que definiu toda uma era na sociedade americana. Freedom (2010, Farrar, Straus and Giroux, 576 págs.), aborda outra era, pós-ataque terrorista em Nova York, 11 de Setembro de 2001. É outra sátira, ainda mais cáustica, à família contemporânea, à política, aos negócios inescrupulosos, à malaise do início do século. O tempo marcha, o relógio marca, e não há soluções. Seu gênero, descrito como "realismo histérico, pós-pós-modernismo", sacudiu os alicerces da literatura americana.

Inteligente demais para agradar as massas, não está ao nível popular de Stieg Larsson. Para começar, Franzen é um estilista extraordinário, respeitado pelos mais exigentes críticos ingleses como o equivalente a Martin Amis: sua narração se compõe de longas frases elegantes; a erudição transborda no talento linguístico do autor, assim como a ironia ferina; os perfis psicológicos de seus personagens são completos e perspicazes. Seria incorreto dizer que Freedom é melhor que The Corrections. Mas é possível que seja mais profundo e, portanto, mais duro de digerir. Sua preocupação: como achar significado num mundo repleto de distrações inconsequentes.

Freedom conta o epopeia dos Berglunds, típica família da alta classe média do Meio Oeste, de valores liberais honestos, contra o governo George Bush, e valores domésticos deploráveis. Como os Lamberts (Arthur, Enid e seus três filhos) de The Corrections, os Berglunds (Patty, Walter e seus dois filhos), de St. Paul, Minnesota, vivem de dramas psicológicos e sexo extraconjugal. Os Lamberts tentam a riqueza fácil explorando o caos da derrocada soviética na Lituânia; os Berglunds, capitalistas autênticos, tiram lucro da guerra no Iraque. Patty e Walter são da geração baby-boom, frutos dos anos 50, com direito a felicidade, paz e satisfação garantidas no futuro. Não foram informados de que enfrentariam terrorismo e crise financeira. Os filhos, Joey e Jessica, só dão decepção e tristeza.

De maneira evidente, Freedom prenuncia o fim do sonho da América liberal; a verdade do admirável e tão prático mundo novo, no qual estamos, pessoas sensíveis e humanitárias, acuadas pela tecnologia, na ponta de nossos dedos do século passado, e pelas nossas possibilidades infinitas. Não devemos evoluir além do que realmente somos, sugere Franzen, mas aceitar o que somos, incluindo nossas limitações e, com isso, aceitar o mundo do qual cada um de nós faz parte. O título se refere a essa liberdade, e a outras, sob vários ângulos. Uma das passagens mais significativas é sobre a família de Walter, de imigrantes suecos, e como seu avô, Einar, busca em Minnesota seu sonho de liberdade, que dá errado. O pai de Walter, alcoólatra e cruel, igualmente falha. Diz Franzen: "A personalidade suscetível ao sonho de liberdade ilimitada é também propensa a misantropia e raiva se o sonho fracassar".

A narrativa de Franzen é intrincada, mas em perfeita harmonia, como a de Charles Dickens: um batalhão de personagens e situações descritos em detalhes que vão aos poucos fazendo sentido e que, finalmente, se encontram e se fundem, compondo a obra-prima de um pintor realista. Simples de acompanhar: o tema central do romance é uma história de amor no velho estilo de ...E o vento levou, no qual a Guerra Civil americana (1861-1865) era pano de fundo. Franzen usa a etnografia de um casamento peculiar através de várias décadas, para refletir sobre os temores da meia-idade, e mostrar a fragilidade da vida contemporânea.

Mas a família do romance é praticamente um artifício: Franzen está de fato preocupado com os muitos e variados significados da liberdade no contexto da cultura e da política dos EUA. Joey, o filho exageradamente mimado por Patty, reage ao liberalismo dos pais e se envolve em política de extrema direita. Torna-se republicano, e acaba trabalhando numa firma de empreiteiros que explora as necessidades do Iraque. Ao mesmo tempo em que Joey se afunda no egoísmo e inanidade ética plantados pelo governo Bush, seu pai tenta continuar humanitário e se lança numa campanha contra o excesso de população como forma de salvar o planeta. Franzen pergunta se liberdade quer dizer liberar-se de alguma coisa ― responsabilidade, medo, dor, sociedade de consumo ―, ou se liberdade é para alguma coisa decisiva ― constituir família, carreira, um mundo melhor.

O momento em que cada um dos personagens principais sente sua verdadeira liberação não é descrito, mas bem percebido pelo leitor: a lição que cada um sofre para aprender. Essa experiência, nunca articulada pelos personagens, aparece apenas no diário de Patty. Ela foi campeã de basquetebol na adolescência, e não prosseguiu a carreira porque machucou o joelho; casou com Walter porque ele estava apaixonado e parecia um rapaz decente; passou 25 anos frustrada até se dar conta do erro, procurou aquele que ela pensava ser seu grande amor, transou com ele dois dias, continuou insatisfeita, e concluiu que desprezava sua própria liberação. Franzen descreve com cinismo como os desejos mais prementes estão apenas encobrindo alguma outra insatisfação e podem mudar num instante, e sugere que obter exatamente o que se quer pode causar incerteza e desilusão.

The Corrections transpira a atmosfera sociocultural dos anos 1990. Freedom recolhe as ruínas da destruição daquele tempo. O enredo vai dos últimos anos de Bill Clinton aos oito de George Bush na Casa Branca. Os Berglunds são apresentados ao leitor do ponto de vista de seus vizinhos, e descritos como "novos pioneiros" porque renovaram a mansão vitoriana de um bairro decadente que tinha sido elegante no inicio do século XX (ali cresceu F. Scott Fitzgerald). Walter, advogado numa companhia próspera, é um ambientalista tão fervoroso que vai trabalhar de bicicleta. Admira Ígor Stravinsky, leituras complexas, gosta de carpintaria. Os vizinhos acham esquisito que a família seja liberal. Os Berglunds são admiravelmente honestos e socialmente conscientes. São também intolerantes com o comportamento diverso dos vizinhos, a quem criticam. A implosão dessa vida aparentemente agradável começa quando Joey, 16 anos, bonito, esperto, mas inseguro, envergonhado pelo que considera atitudes radicais de sua mãe, namora Connie, filha dos vizinhos anárquicos, e acaba mudando-se para a casa dela. A filha dos Berglunds some da narrativa sem explicações, sendo essa uma das falhas do enredo.

Os capítulos seguintes se ramificam em direções surpreendentes. Primeiro, 150 páginas de uma espécie de autobiografia de Patty, escrita por ela mas na terceira pessoa, a pedido de seu terapeuta. Ficamos sabendo da sua infância e adolescência num bairro satélite de Nova York, seus anos escolares como "estrela" de basquetebol, sua alienação crescente às tendências artísticas dos pais, a intensa atração física pelo melhor amigo de Walter, Richard Katz ― músico de rock numa garage band ― e sua fase num estilo semi-hippie. Richard é o tipo que atrai as mocinhas e as destrói: misterioso, impudente, antissocial, exasperante, portanto terrivelmente desejável. Seu contraponto é Walter, calmo, bondoso, confiável. Patty casa com ele porque sente aí seu porto seguro. Além disso, Richard não parecia interessado. (Nessas memórias, Patty conta o episódio mais doloroso de sua vida: foi estuprada pelo namorado, correu em desespero para os pais, e eles não a apoiaram porque o rapaz era filho de ricos militantes políticos.) Essa "autobiografia" de Patty conclui com a mudança dela e de Walter para Washington, capital.

O enredo toma outras perspectivas, agora, pouco antes de 2004. Richard, fracassado como roqueiro, volta a sua vocação inicial, carpintaria, e aceita trabalhar para Walter numa aventura ambientalista: a construção de um parque para preservação de um raro passarinho canoro. Muitos fatos seguem acontecendo até que, em 2010, o memoir de Patty vem por acaso à tona, causando um estrago lamentável em sua relação com Walter e com Richard. O livro termina numa outra visão, positiva, do casal, pelos vizinhos de Washington: 40 anos casados e são tão felizes quanto parecem ser?

Podia-se ler como um dramalhão, não fosse o senso de humor irreverente de Franzen, um dos pontos altos do livro, ao lado de diálogos brutalmente verdadeiros. Numa época de romances triviais, torna-se um prazer especial ler sentenças harmoniosas, vocabulário rico de palavras precisas. A prosa de Franzen não agrada a quem gosta de ficção experimentalista, cenários vagos, personagens totalmente fictícios. Quem ainda acha que romance deve ser como os de Gabriel García Márquez, Thomas Mann, Don DeLillo, Leon Tolstói, Saul Bellow etc., densos, de narrativa poderosa, com contexto social e personagens bem estruturados, que saltam, vivos, de suas páginas, são leitores satisfeitos de Freedom, que, por tais razoes, levou quase dez anos para ser elaborado.

Num ensaio na revista Harper's Franzen definiu como "realismo trágico" sua ficção favorita; uma espécie de antídoto à "retórica do otimismo que tanto permeia nossa cultura". Todos os elementos de tragédia estão em Freedom: guerra, sofrimento, vingança, paixões ilícitas, ódio, ciúme, fracasso, desgraça, remorso, infância infeliz. Prato cheio para novela de TV. Mas os personagens estão constantemente fazendo novas descobertas sobre eles mesmos, tem discernimento de sua liberação, e lições sobre as contradicoes do coração humano. Embora tudo pareça sem perspectivas, o final do livro sugere que a nova esperança que mostrou não vai acabar em tragédia.

Para ir além





Sonia Nolasco
Nova York, 22/11/2010

 

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