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Segunda-feira, 2/5/2011
Populares e eruditos
João Marcos Coelho

Ciscar em terreiros alheios é empreitada perigosa. Em geral, os resultados não costumam ser animadores. Foi com esse argumento que Nadia Boulanger, a mestra francesa de dez entre dez compositores por mais de 50 anos em sua famosa escola particular parisiense, conseguiu convencer dois nomes estreladíssimos da música do século XX a desistirem de aventuras "eruditas". O norte-americano George Gershwin e o argentino Astor Piazzolla, ambos talentosíssimos na prática da música popular refinada, ouviram dela que é melhor ser um Gershwin ou um Piazzolla de primeira do que um compositor erudito de quinta classe.

Em todo caso, ambos são casos emblemáticos dessa mistura que quase sempre desanda. Gershwin, obcecado em fazer a "grande música", recorreu ao orquestrador Ferde Grofé para "compor" suas obras "eruditas": a Rhapsody in Blue e o Concerto em fá, entre outras. A primeira, sobretudo, é popularíssima, mas os especialistas eruditos torcem o nariz para composições que são frouxas mesmo do ponto de vista formal. Já Piazzolla foi mais inteligente: fez incursões de fôlego curto no mundo erudito. Os movimentos de suas "Cuatro estaciones porteñas" não ultrapassam a minutagem de encorpados temas populares. O suficiente para impactar, mas não se enrolar prolongando desnecessariamente a obra só para que ela tenha a aparência de "grande música". Confira a inteligência de Piazzolla no CD Fronteiras do Duo Graffiti (selo Clássicos).

Essa inteligência Francis Hime e Tom Jobim — desculpem-me seus fãs — não tiveram. Primeiro Tom: dono de um songbook que se ombreia com Cole Porter e George Gershwin, ele se meteu a compor sinfonias que soam fracas. O CD Jobim Sinfônico é prova provada dessas deficiências estruturais. Tom nasceu para encapsular obras-primas em poucos minutos — seu gênio é comparável ao de um Schubert ou Schumann no domínio do Lied. O mesmo acontece comFrancis Hime e seu Concerto para violão lançado pela Biscoito Fino (com Fábio Zanon e Osesp). Hime é quase tão bom quanto Tom na criação de belas canções. Tanto que a mezzo soprano Measha Brueggergosman, em seu CD Nights and Dreams (selo Deutsche Grammophon, importado, 2010), incluiu sua canção "Anoitecer" ao lado de Lieder e melodias de Richard Strauss e Henri Duparc. Já o seu Concerto para violão é dificílimo para o solista, mas pouco consistente na escrita sinfônica. A fraqueza, como em Jobim, localiza-se na ausência de um desenvolvimento temático consistente. Episódios empilham-se ao acaso. A mesma impressão fica com a outra obra do CD, o Concertino para percussão e orquestra, de Nelson Ayres.

Mas, então, é impossível fazer boa música sinfônica se você é um compositor popular? Não, claro que não. Basta entender as especificidades de cada domínio. Mais do que isso: transpor esses limites deve constituir uma evolução imperativa de um itinerário criativo.

Dois exemplos. O pianista de jazz Keith Jarrett foi o primeiro, nos anos 1970, a enfrentar um recital de música improvisada sem nenhum tema conhecido. Improvisou por uma hora (confira no célebre CD The Köln Concert, ECM, 1975). Trinta anos depois, Jarrett gravou música dita erudita (concertos de Mozart, a obra de Bach para teclado, os Prelúdios opus 87 de Shostakovich) e conquistou um nível altíssimo de execução nos recitais improvisados (veja o álbum triplo Paris/London: Testament, ECM, 2009).

Brad Mehldau, aos 40 anos, tem atrás de si a dupla formação clássica e jazzística. Fez a série de CDs intitulados The Art of the Trio, com contrabaixo e bateria, entre 1995 e 2001. De lá para cá, tem explorado o recital-solo e permanece com o trio. Entre suas parceiras "eruditas" estão as cantoras Renée Fleming (Nonesuch, 2006) e Anne Sofie Von Otter (álbum duplo Naïve, 2010). Em ambos, suas canções soam como Lieder para o século XXI. E no recital solo recente na Sala São Paulo, improvisou de modo erudito: isolava pequenas células motívicas (rítmicas, harmônicas ou melódicas), explorava-as, retornava ao tema e apanhava uma nova célula para mais uma viagem improvisatória.

Tudo isso quer dizer o seguinte: apesar de o crossover estar na moda, de se dizer que os muros dividindo popular e erudito caíram por terra, os músicos só deveriam ciscar em terreiro alheio se esse gesto significar mesmo, do ponto de vista criativo, uma evolução lógica e necessária de seu desenvolvimento. Ou seja, pulem os muros, mas só por necessidade interior genuína. Aí terá valido a pena ― como comprovam Piazzolla, Jarrett e Mehldau. Caso contrário, são meras operações caça-níqueis.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Concerto nš 168, em dezembro de 2010.

João Marcos Coelho
São Paulo, 2/5/2011

 

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